Estávamos em um bairro periférico de Uruguaiana, a mais de 600 quilômetros de Porto Alegre, quando as primeiras entidades começaram a baixar e incorporar em quem permanecia por perto. Mãe Catita de Oxalá pousou um manto vermelho sobre a indumentária branca, e de repente todos fizeram fila para se ajoelhar diante de sua figura. Homens e mulheres começaram a girar como piões impulsionados pela batida do tambor. Em seguida, gritos, palavras incompreensíveis, copos e charutos começaram a circular pelo salão. Meia centena de pessoas caminhava, dançava, falava e se cumprimentava em transe. Diante de todos, um congá, o altar da umbanda, com quase quatro metros de altura, exibia divindades de diferentes tradições. Ali, santos católicos representam orixás africanos, em um sincretismo peculiar da fé brasileira – mas que se espalha a partir da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul para o Uruguai e a Argentina.
Nosso guia naquela noite, Jorge Quirino de Oxalá, olhou para o repórter e apontou para a porta de saída.
– Vamos ver como está do outro lado – convidou Quirino, falando alto para ser ouvido apesar do volume dos tambores.
Uma chuva de pingos grossos caía. O guia tomou a frente e nos dirigiu para uma saída secundária, onde evitaríamos boa parte da caminhada sob a água. Era um longo corredor que se estende entre a lateral da casa e um muro. Não havia luz e o piso acumulava poças em vários trechos. Ao chegar à calçada, logo se via aquilo a que Quirino se referiu como o "outro lado". Mais uma sessão de umbanda ocorria a poucos metros, bastava atravessar a rua, sem movimento algum àquela hora, para conferir. Ao contrário do terreiro de Mãe Catita, o espaço vizinho, conhecido como Casa do Pai Preto, realiza as sessões ao fundo de uma sala bem visível pelos transeuntes e com luz clara. Na entrada, alguns argentinos esperavam para tomar passe, espécie de bênção do ritual, dando os primeiros indícios de que o sincretismo local ultrapassa fronteiras.
Nossa equipe estava de saída quando Pai Preto se aproximou:
– Que Xangô guie teus caminhos!
Não era um momento para entrevistas. Segundo a tradição umbandista, Pai Preto compartilhava a presença de outro espírito em seu corpo, alterando sua consciência. Depois do transe, muitas vezes o participante que incorpora não lembra nada ocorrido na sessão.
Era apenas mais uma segunda-feira em Uruguaiana, e era possível assistir a duas sessões de umbanda a poucos metros de distância uma da outra – ambas com dezenas de participantes, apesar de a chuva deixar a noite pouco convidativa para qualquer tarefa fora de casa
O município da Fronteira Oeste preserva prédios históricos e conta com monumentos em homenagem a fatos e personagens importantes em sua zona central, porém, nenhum deles faz referência às heranças africanas da região, apesar de 25% de sua população se declarar negra ou parda, segundo dados do IBGE. Além disso, os negros, trazidos como escravos para trabalhar no campo para os portugueses, estão entre as etnias de presença mais antiga nas redondezas.
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É preciso rodar pelos bairros afastados do centro, por ruas de chão batido ou cascalho para encontrar casas em que a cultura afro-brasileira pulsa. Segundo Quirino, que é presidente da Aruanda Sociedade Espiritualista de Umbanda de Uruguaiana, um levantamento foi realizado em 1985 e elencou quase 300 terreiros em atividade no município. Hoje, ele estima que o número deva chegar a 400.
Com a proximidade da Argentina e do Uruguai, o município de 125 mil habitantes é um dos pontos mais acessíveis para a formação de pais de santo nos países do Prata. Não é novidade que as religiões de matriz africana angariam a simpatia dos hermanos. Segundo o pesquisador argentino Alejandro Frigerio, o primeiro avanço significativo da fé nos orixás sobre o Prata ocorreu ainda na década de 1960.
Frigerio afirma:
– As religiões afro-brasileiras começaram a chegar à Argentina no final dos anos 1960, mas permaneceram pouco presentes até os anos 1970. Há um grande crescimento na década de 1980, com o retorno da democracia, já que não há mais tanta repressão policial. Muita gente da região se iniciou no batuque exatamente nessa época. Antes, era principalmente a umbanda que atraía seguidores. Além disso, na época em que um peso argentino equivalia a um dólar, era muito vantajoso para os pais de santo brasileiros cruzar a divisa dos dois países para buscar simpatizantes.
A região de fronteira do Rio Grande do Sul foi fundamental para essa disseminação. Em Santana do Livramento, por exemplo, ficou muito conhecida a Casa de Mãe Teta, responsável por iniciar grande número de uruguaios, que por sua vez levaram também a tradição para diversos pontos daquele país e da Argentina. Já Uruguaiana não ficou conhecida por uma linhagem tão disseminada como a de Mãe Teta, mas foi responsável por colocar milhares de argentinos em contato com os orixás, divindades africanas, nos anos 1980. Na época em que o câmbio favorecia a moeda do país vizinho, o curandeiro Carlos Eustaquio Barbosa, conhecido como Garrincha, fazia sucesso inigualável na região, sendo visitado às vezes por mais de 1 mil pessoas em um dia. A multidão aguardava horas para receber seu “toque mágico” – que durava poucos segundos. Sem vinculação com a matriz religiosa africana, Garrincha dizia ser um médium capaz de realizar diagnósticos e operar sob influência de espíritos de médicos de diferentes partes do mundo. Atendeu no município entre 1983 e 1985, ano em que foi acusado de exercício ilegal da medicina e decidiu se mudar para Buenos Aires.
Santo ou embusteiro? Era o que a comunidade local debatia sobre Garrincha. Independentemente da resposta, a casa do curandeiro foi o centro de uma estrutura que também beneficiou muitos religiosos de tradição negra. Em diferentes regiões da Argentina, agências de turismo difundiam o nome de Uruguaiana como sinônimo de alento e esperança a quem sofria com problemas de saúde, relacionamento ou trabalho. Nem todos os viajantes conseguiam se aproximar do concorrido Garrincha, mas encontravam conforto ao serem atendidos por religiosos de matriz africana, abundantes no município, que também iam ganhando fama.
– Nas madrugadas de quinta para sexta-feira, havia fila de cinco ou seis ônibus aqui na frente de gente para me consultar. Não eram filhos de casa de religião. Era gente que buscava uma palavra de paz, de conforto, algo que pudesse dar esperança de um amanhã melhor. Até hoje recebo esse tipo de visita, mas o fluxo deixou de ser tão intenso na medida em que a moeda deles foi se desvalorizando e eles passaram a viajar menos até a fronteira – lembra Pai Valmir, da Casa do Caboclo Sete Flechas.
Além de palavras de conforto, Pai Valmir também oferece em suas consultas trabalhos como os ebós, que podem envolver sacrifício de animais – a prática não está ligada à umbanda, mas à quimbanda ou ao batuque, duas linhas religiosas baseadas na fé africana. Muita gente passou pela casa do pai de santo em seus 40 anos de atuação.
E muita gente não foi só de passagem – Pai Valmir perdeu a conta de quantos filhos de santo iniciou e deixou aptos para abrir suas próprias casas, processo que pode levar entre oito e 10 anos. Com receio de atuar fora de seu país, ao longo do tempo ele abriu exceções para seus seguidores.
– Não gosto de trabalhar do outro lado da fronteira, pois lá as leis são diferentes. A gente não sabe exatamente como se portar quando sai do Brasil. Mas já fui até mesmo ao Chaco (província argentina) para a abertura de uma casa – conta Valmir.
A Casa do Pai Preto, onde também atua a Mãe Lourdes, já foi responsável por formar dezenas de religiosos da Argentina e do Uruguai. Na segunda-feira descrita no inicio da reportagem, pelo menos cinco argentinos estavam presentes na sessão. Uma delas era Mãe Mónica de Oxum, que tem um terreiro do outro lado da fronteira. Ela e outros colegas estão se organizando para estabelecer uma associação de religiosos de matriz afro-brasileira em Paso de Los Libres, onde atuam. Segundo os organizadores desse movimento, já há cerca de 200 terreiros na pequena cidade argentina, que conta com pouco mais de 40 mil habitantes.
– É um número grande de praticantes para uma cidade tão pequena – avalia Mãe Mónica. – A proximidade da fronteira foi fundamental para isso. Hoje, eu e outros pais de santo podemos formar gente na Argentina, mas todos os que estão capacitados atualmente precisaram se formar no Brasil, e geralmente com os pais de santo que atuam em Uruguaiana.
Apesar de a região do Uruguai que fica nas proximidades da Fronteira Oeste já contar com um número maior de casas de religião de matriz africana, por conta do trabalho de formação de Mãe Teta, não é raro que os uruguaios também viajem até Uruguaiana para praticar sua fé. Um exemplo é Fabricio Bica, que é de Artigas e consome duas horas de sua semana na estrada para visitar a Mãe Catita.
É uma rotina que ele empreende desde os anos 1990. Membro de uma família que costumava se relacionar com as religiões de matriz africana, Fabricio buscou formação como pai de santo no Brasil – com Catita.
– Há terreiros na minha cidade, mas sinto maior confiança em Mãe Catita – ele explica.
Fabricio e Mónica tinham familiares que frequentavam casas de religião afro-brasileira – foram eles que os aproximaram dessas tradições. Mas há quem as descubra por si próprio – e a transforme em sua própria família. É o caso de Daniel de Xapanã, pai de santo que se tornou órfão de mãe aos 10 anos, quando vivia em Buenos Aires, e precisou se mudar com os pais e os avós para Paso de los Libres.
Aos 26 anos, Daniel perdeu o avô e a avó em poucos meses, ficando sozinho com seu pai, que sofria de cegueira. Foi nesse momento que conheceu a sua religião, tomando os cultos e as histórias dos orixás como orientação e esperança diante das perdas e dificuldades. Aos poucos, as coisas começaram a mudar para ele. Com problemas financeiros, estava prestes a ser despejado da casa na qual vivia com sua mulher, seu filho e seu pai, mas de repente foi contemplado com um grande prêmio em um sorteio: uma casa própria.
– Foi um milagre dos orixás – diz Daniel.
O Mestre Churrasco
Filho de santo formado por Catito de Iemanjá, de Uruguaiana, Daniel de Xapanã tem hoje seu terreiro em Paso de Los Libres e também está engajado na criação de uma associação que ajude a dar maior visibilidade à fé de origem africana e brasileira do lado castelhano da fronteira.
– Os orixás, os caboclos e os pretos fazem parte da minha família – afirma.
Na tarde de terça-feira, após a chuva ter parado, voltamos a nos embrenhar por ruas enlameadas. Uma delas nos deu acesso ao terreiro de um dos mais procurados pais de santo de Uruguaiana, Cláudio de Xangô, ou simplesmente Mestre Churrasco, como gosta de ser chamado.
Mestre Churrasco recebe nossa equipe metido em um paletó branco impecável, assim como sua camisa e sapatos.
– No passado, eu era hippie, andava de dreads nos cabelos, camiseta, cheio de guias no pescoço. Agora, estou sempre alinhado. Meu orixá, Xangô, me mostrou o caminho para ser assim – afirma, enquanto acende um charuto.
Churrasco credita sua própria sobrevivência a Xangô. Criado na vizinhança onde hoje está localizado o seu terreiro, o jovem Cláudio vivia metido entre adolescentes dispostos a arrumar briga em qualquer lugar e por qualquer motivo. Se não tinha faca ou outra arma por perto, o instrumento para ferir os oponentes era o "pombaço" – uma simples pedra catada do chão que voava, tal qual uma pomba, depois de ser arremessada em alta velocidade. Corpulento e bom de briga, hoje professor de capoeira, Churrasco e seus amigos eram o terror do bairro.
– Se sobrevivi, foi por causa do meu orixá. Hoje, meus companheiros que não foram mortos estão presos ou desapareceram – reflete o pai de santo.
Churrasco é um dos mais concorridos oficiantes da quimbanda em Uruguaiana. Derivação da umbanda, a quimbanda ganhou contornos próprios nas últimas décadas.
– Durante boa parte dos anos 1980, a quimbanda era vista como parte da umbanda. Ao final da sessão de umbanda, os exús chegavam e limpavam a sala que havia recebido as descargas. Depois, passou a ser vista como uma variante autônoma da umbanda, com uso de sangue e características específicas – explica o pesquisador argentino Alejandro Frigerio.
Umbanda, batuque – também chamado de nação – e quimbanda são as três vertentes da fé de matriz africana mais praticadas no sul do Brasil. São variantes brasileiras da religiosidade dos escravos africanos, mas que tomaram caminhos próprios por se desenvolverem em espaços e tempos diferentes, assim como o sóbrio zen budismo e o colorido budismo tibetano são variantes da crença na iluminação de Xaquiamuni Buda. No entanto, diferentemente do budismo, que conta com templos e oficiantes exclusivos para cada vertente, é comum que mães e pais de santo pratiquem as três vertentes no mesmo templo – chamado de terreiro ou ilê. A maior parte dos ilês de Uruguaiana tem pelo menos duas estruturas semelhantes a altares: o congá, direcionado para a umbanda, geralmente decorado com profusão de imagens, e um quarto de santo, para o batuque, que passa a maior parte do tempo fechado, mais discreto.
No quarto de santo de Mestre Churrasco, estão dispostas apenas as imagens de Xangô e de alguns ícones cristãos, mas que também representam orixás. Nossa Senhora Aparecida é Oxum Docô; Jesus Cristo, Oxalá; e Nossa Senhora das Graças, Oxum Pandá. Contudo, o importante dessa estrutura não é o que está visível – atrás e ao lado dos santos, há cortinas ocultando pedras que assentam na casa a presença dos orixás. Quando ali é deixada alguma oferenda, como banana ou outra fruta, é para alimentar o que está invisível.
– Antigamente, os escravos enterravam o objeto que estavam adorando e fingiam adorar um santo católico, para não serem apanhados pelos senhores que proibiam o culto africano. Com o tempo, houve o sincretismo, ou seja, cada orixá foi associado a uma imagem diferente. O quarto de santo representa isso – explica Jorge Quirino.
Além do quarto de santo, Mestre Churrasco também mantém um pejê de exu, repleto de imagens fantasmagóricas e macabras que remetem a Exu, orixá historicamente associado ao diabo cristão. No pejê, as oferendas que encontramos não foram frutas, como no quarto de santo, mas garrafas de uísque e espumante.
Nas últimas duas décadas, a quimbanda tem se proliferado por diferentes partes do Brasil e de seus países vizinhos.
– Na Argentina, há batuque duas ou três vezes por ano, embora algumas casas façam mais; umbanda, também, poucas vezes; e, na maior parte do tempo, há quimbanda, embora o ideal seja equilibrar os três – observa Frigerio.
Em Uruguaiana, a quimbanda ganhou status de moda. Às sextas-feiras há sessões que podem reunir mais de cem pessoas.
– Em Uruguaiana a gente brinca que não há boate, mas há quimbanda – conta Elza Kurtz, que mantinha um programa de rádio sobre religião com o marido Theo Gomes.
Mestre Churrasco se preocupa com a espetacularização de Exu. Trabalhos encomendados para atingir graças como reatar um casamento ou curar uma doença podem alcançar cifras altas, o que atrai a cobiça de sacerdotes pouco preparados.
– Tenho receio com a distorção do rito. A quimbanda cresceu muito e virou uma máquina de fazer dinheiro. Como o Exu é associado à terra, o contato precisa ser de pé no chão. Tem de sentir a energia da mãe Terra. Hoje, os homens usam sapatos, e as mulheres, salto alto. Isso não condiz com a ancestralidade da força que estão buscando. Isso é a vaidade. Religião é fé e culto. Nada mais. Não é vaidade nem soberba. Você vai numa festa e vê Exu bebendo cerveja e Pomba Gira bebendo Keep Cooler. Exu é cachaça. Pomba Gira é champanhe. Dizem que o Exu precisa evoluir. Acredito que o espírito não evolui. Isso é palhaçada, falsidade, charlatanismo.
Além de numerosos filhos de santo no Brasil, Mestre Churrasco já tem mais de uma dezena de seguidores levando de sua fé à Argentina, assentados nas cidades de Colón e San José, e no Uruguai, em Bella Unión, Salto e Artigas. Ambos os países vizinhos, na comparação com o Brasil, têm menos população negra. Mas Mestre Churrasco prova que a fé não depende da cor:
– O que faz com que pessoas de outras etnias se aproximem da religião africana geralmente é uma carência espiritual, preenchida ao ouvir o toque de um tambor, ao ser bem recebido em um ilê e observar nossa forma de agir um com o outro. Tratar as pessoas com respeito, perdoar e servir são coisas que vão se perdendo no dia a dia, mas que preservamos em nossa tradição. Religião é também preservar valores.