Agora é oficial: desde 15 de maio, a história de Pelotas é patrimônio nacional. A cidade do sul do Estado foi tema de uma decisão inédita do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan): pela primeira vez, o órgão reconheceu, simultaneamente e em um mesmo lugar, um patrimônio material e um patrimônio imaterial.
O conjunto histórico formado pela Charqueada São João, pela Chácara da Baronesa (onde fica o Museu da Baronesa), pelo Parque Dom Antônio Zattera e por quatro praças, além de edificações de seu entorno, estão protegidos pelo governo federal. O tombamento ocorreu no mesmo dia em que o conselho do Iphan, composto por representantes de instituições públicas, privadas e da sociedade civil registrou a tradição doceira da região como patrimônio imaterial.
A resolução parte do argumento de que a produção de doces tem relação direta com a história da cidade e a economia do charque, que marcou o município entre o fim do século 18 e o começo do século 20. O reconhecimento tem como objetivo preservar tanto os prédios históricos — alguns deles já eram protegidos em nível municipal, estadual ou mesmo federal — quanto a tradição doceira que virou marca registrada de Pelotas e de municípios vizinhos.
Desdobramento de uma série de ações pontuais que envolveram principalmente a elite intelectual da cidade nos últimos anos, por meio de estudos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o reconhecimento é visto com entusiasmo pelo poder público local. Apesar de ter um dos maiores acervos de estilo eclético do país, com mais de 1,3 mil imóveis inventariados, parte da arquitetura de Pelotas padece com o abandono. A partir da nova fase, que prevê ações de preservação e gestão compartilhada dos prédios públicos tombados, a prefeitura espera conseguir tirar do papel o restauro de lugares emblemáticos, como a Chácara da Baronesa e a antiga Secretaria de Finanças do município, cujo prédio histórico está fechado desde 2008.
— A economia da cultura vem se desenvolvendo no município nos últimos anos, e a gente aposta muito nisso. Tem um potencial para ser explorado. Tenho esperança de que, com esse novo tombamento, a gente consiga o recurso para esses prédios — comentou a prefeita Paula Mascarenhas.
O pastel de Santa Clara
Circundando a passos rápidos um tampo de madeira coberto com uma toalha branquíssima, Ana Beatriz Simões Lopes Menna Barreto manuseia uma massa pálida, esticada até ficar com a espessura de uma folha de papel. Com uma tesoura, corta os pedaços que extrapolam as bordas da mesa improvisada. Usa uma pena de peru para pincelar manteiga no que ficou sobre a superfície antes de ligar um secador de cabelo de ventilação barulhenta para acelerar a secagem da massa, que logo é fatiada em peças retangulares.
Acomodadas uma sobre a outra, duas folhas finíssimas recebem uma colherada generosa de um creme amarelo vivo preparado horas antes. A massa com o recheio dentro é enrolada feito um charuto, e uma faca sem ponta é usada para dobrar as extremidades do rolo para cima. Segue-se uma rápida passagem pelo forno. Então, o pequeno embrulho, levemente dourado nas pontas, recebe a carícia de minúsculos grãos de açúcar e canela despejados pela mão da doceira.
O minucioso procedimento que resulta em um dos pastéis de Santa Clara mais famosos de Pelotas não leva mais do que alguns minutos. Nem sempre, contudo, essa foi uma tarefa simples para Ana Beatriz, neta do escritor Simões Lopes Neto. Ela começou a produzir doces há quase duas décadas. Até chegar ao ideal, que ainda hoje é vendido apenas sob encomenda, foram, nas suas contas, mais de 500 tentativas e pelo menos seis meses de trabalho árduo.
— Quando comecei a fazer doce, minha tia Suely dizia: "Tu tem de ter uma especialidade". Eu adorava pastel de Santa Clara, tinha paixão, mas não acertava. E, para poder vender, tinha que fazer o certo. Desistir é bem mais fácil, mas comecei a fazer para os chás das tias, para os encontros da família. Tive certeza que tinha acertado quando todas as velhas começaram a dizer que estava bom — sorri.
As especificidades da massa de um dos doces de origem portuguesa mais populares na cidade são um dos fatores que desencorajam novas doceiras — aos 61 anos, Ana ainda não conseguiu formar uma sucessora. Fácil de "rasgar" e suscetível à umidade e à temperatura, a massa proporciona um prazer singular a quem a experimenta: a combinação de uma delicadíssima crocância com a cremosidade dos ovos moles e o sutil aroma de canela percebido na fração de segundo que antecede a mordida — duas bastam para dar conta do doce e, fatalmente, desejar mais um. Foi o boca a boca, primeiro dos parentes, depois dos amigos e mais tarde de pelotenses em geral, que avolumou sua clientela, fazendo com que a receita familiar, produzida de modo artesanal, caísse nas graças dos pelotenses.
Apesar da tradição familiar — a avó fazia doces e duas de suas tias trabalharam no ramo —, tornar-se doceira só se mostrou uma possibilidade para Ana depois de um inconveniente na sua profissão anterior. Professora de pádel, ela teve de interromper precocemente suas atividades após lesionar os dois joelhos. Para recomeçar, escolheu reconectar-se com uma paixão de infância: o pastel de Santa Clara era seu preferido nos eventos familiares, alguns deles realizados no castelo construído pelo avô, onde viveu até os 12 anos.
Famosos, os chamados doces finos, como os pastéis feitos por Ana, são apenas um lado da tradição pelotense. O modo de produção varia: há doceiras caseiras, mas também existem fábricas. Lojas de diferentes tamanhos espalham-se pela cidade.
O sal trouxe o açúcar
Há uma curiosa contradição em Pelotas: a produção de doces só foi possível graças ao sal. Principal atividade econômica entre o final do século 18 e o começo do século 20, o charque teve influência direta sobre o desenvolvimento da tradição doceira. A venda de carne para o Nordeste permitia o acesso ao açúcar produzido naqueles Estados, que era trazido pelos mesmos navios.
Localizada às margens do Arroio Pelotas, a Charqueada São João, única a integrar o conjunto arquitetônico tombado pelo Iphan, funcionou em um dos nacos de terra distribuídos pelo governo português a imigrantes e foi uma das primeiras a exportar a carne depois da abertura dos portos. Seu morador mais conhecido, Antônio José Gonçalves Chaves, construiu a casa no começo do século 19 — como quase todos os charqueadores, tinha outro imóvel no centro da cidade. De lá para cá, outras três famílias viveram no local, que se habituou a receber visitantes ilustres.
Ainda no século 19, o biólogo francês Saint-Hilaire passou uma semana hospedado na charqueada para pesquisar a vegetação. Na década de 1950, o então estudante — e mais tarde presidente da República — Fernando Henrique Cardoso foi até lá durante sua pesquisa sobre escravidão. Na mesma década, Pelé, antes de tornar-se Rei, saboreou um churrasco junto com a equipe do Santos na casa.
Já no começo dos anos 2000, a estrela foi a própria charqueada — adquirida pelo avô de Marcelo Mazza Terra na década de 1940. A São João entrou no caminho do diretor Jayme Monjardim, que buscava locações para gravar a minissérie A Casa das Sete Mulheres. A partir da exposição na TV Globo, intensificaram-se as visitas à casa, que foi, aos poucos, se transformando em uma espécie de museu particular.
— Eu nasci dentro disso. Minha avó adorava receber as pessoas, estar com a casa cheia. Nunca passou pela minha cabeça ser diferente — conta Marcelo, que vive no local com a esposa e a filha.
Atualmente, é possível conhecer — é proibido filmar e fotografar — as dependências da residência. Há objetos utilizados pelos antigos proprietários, imagens da época em que o pátio era repleto de varais com charque pendurado, peças adquiridas em leilão pelas famílias que vieram depois — como telefones antigos e mesas de jogos. Em 2012, uma coleção com a obra completa de Erico Verissimo autografada, exposta em uma das salas, ganhou sentido místico para Marcelo. Meses depois de concluir a leitura de O Tempo e O Vento, recebeu uma ligação do agora amigo Jayme Monjardim pedindo para rodar no local cenas do filme de mesmo nome.
A cultura do charque teve seu auge com o fim do tráfico de escravos no Brasil. Com mais dificuldades para trazer novos escravos, os já existentes passaram a receber melhor alimentação para que pudessem trabalhar por mais tempo — até então, a região charqueadora era conhecida por ser das mais cruéis.
— Os viajantes falavam do mau cheiro, das moscas, das condições precárias. O próprio Gonçalves Chaves, que escreveu um livro em que defendia o fim da escravidão, foi descrito por Saint-Hilaire como um homem erudito, mas ríspido com os escravos — conta Ester Gutierrez, professora aposentada da UFPel que estuda as charqueadas há mais de duas décadas.
Estima-se que somente na região charqueadora, que chegou a ter mais de 30 fábricas operando de forma simultânea, tenham trabalhado 2 mil escravos — no começo do século 19, mais de 40% da população pelotense era negra. A maioria trabalhava na produção de charque, de tijolos — diversas charqueadas tinham olarias para os meses em que não havia produção de carne — ou na construção civil: parte do patrimônio histórico tombado em Pelotas, como o prédio da Santa Casa de Misericórdia e a Biblioteca Pública, foi erguido por homens escravizados.
A influência das escravas
As mulheres escravas, segundo pesquisadores, não chegavam a 15% do contingente nas charqueadas. Em geral, eram trabalhadoras domésticas. Foram elas que tiveram, nas casas grandes, o primeiro contato com a tradição doceira europeia que as senhoras tentavam reproduzir em suas cozinhas.
— Quando começamos a pesquisa, ouvimos de muita gente que o negro só servia para mexer o tacho. Desconfiamos e acabamos descobrindo que também cultuavam os doces e que eles dialogavam com a cosmologia das religiões de matriz africana — conta Flávia Rieth, coordenadora do Inventário Nacional de Referências Culturais que estudou as tradições doceiras de Pelotas e Antiga Pelotas.
Realizada entre 2006 e 2008, a pesquisa foi a principal documentação utilizada para a defesa do registro da tradição doceira como patrimônio imaterial junto ao Iphan. Ajudou a elucidar a relação entre a produção de doces e a história da cidade e a desmistificar o papel dos negros. Estudos mostraram que eles não só aprenderam a produzir os doces finos como atuaram de forma criativa, contribuindo para as "versões brasileiras" dos doces portugueses — o quindim, por exemplo, teve as amêndoas da receita original substituídas pelo coco graças às escravas.
Uma das mais surpreendentes constatações dos pesquisadores foi a simbologia atribuída aos doces dentro das religiões de matriz africana — Pelotas conta com mais de mil terreiros. Eles eram usados em oferendas aos orixás, para agradá-los, e servidos à comunidade durante as celebrações religiosas.
— Casa de religião é casa de axé, e a comida é o maior axé de todos. A vida precisa de equilíbrio, então tem o salgado e tem o doce. Na religião, o doce está associado à prosperidade, ao movimento — relata Mãe Gisa de Oxalá, 59 anos.
Registrada Elena Soares Freitas, Mãe Gisa é a diretora espiritual de uma terreira fundada por um tio há mais de 40 anos. Junto com o marido, a tia e um dos filhos, prepara quase todos os doces servidos nas festas. Nessas ocasiões, o local precisa ter comida para oferecer à comunidade durante 24 horas ininterruptas.
As preparações na terreira amarram pontas da história de Pelotas. São feitos desde os doces finos, como quindins (são centenas para cada evento), olhos de sogra e ninhos de fios de ovos, até os doces coloniais, como as frutas em calda e as cristalizadas — no dia em que a reportagem visitou o local, trabalhavam na produção de compotas para a festa de Cosme e Damião, que ocorreria naquele fim de semana.
Vendendo história
Para muitas famílias, a transferência do saber doceiro é motivo de orgulho. Na casa de David Jeske, porém, a possibilidade chegou a ser descartada pela mãe, Maria Helena. Impulsionada a trabalhar com doces por necessidades financeiras, sonhava com um futuro diferente para o filho único, que, na infância, a ajudava a vender o que produzia em casa no transporte público.
— Fui criado no meio do doce, mas não fui criado para ser doceiro. Para minha mãe, não era a coisa mais digna a se fazer — lembra o empresário de 29 anos.
Apesar da resistência da mãe, o primeiro emprego de David foi na fábrica da família, onde fazia o trabalho braçal, preparando massas. Os planos profissionais eram outros: interessado em questões ambientais, o jovem começou a cursar Biologia. Ao longo do curso, sucessivas desilusões com o mercado de trabalho o levaram de volta aos doces, agora com outro viés: inspirado no que viu em outras cidades, quis ampliar o negócio com uma loja.
Cerca de cinco anos atrás, a Imperatriz Doces Finos foi uma das primeiras a abrir as portas no Mercado Público Central de Pelotas após a sua restauração. Sob o comando de Jeske, as queijadinhas, os camafeus e os pastéis de natas ganharam um espaço gourmetizado, expostos na vitrine da loja decorada com azulejos que imitam ladrilhos hidráulicos, música ambiente e diferentes tipos de cafés.
Mais tarde, ele inaugurou uma loja na rodoviária do município e adquiriu uma fábrica de doces coloniais e outra de chocolates. Tudo de olho em um futuro que dialoga com o passado, revisitando-o. Além dos doces tradicionais, criações inéditas, muitas vezes temáticas — antes da final do Gauchão entre Brasil de Pelotas e Grêmio, fez doces com a paleta de cores dos dois times —, merecem lugar nas prateleiras.
Sem tirar o olhar dos doces, mira cada vez mais a exploração do turismo da cidade onde nasceu e cresceu. Anos atrás, adquiriu um ônibus estilo jardineira, o Expresso Quindim, com o qual faz passeios com grupos até a fábrica da Imperatriz, em Capão do Leão. A ideia é que, no futuro, os passeios sejam realizados dentro da cidade, para o público em geral — está fazendo um curso para poder atuar como guia turístico.
— No começo, eu queria uma loja no shopping. Acabou no mercado por questão de custo, só que eu percebi que a questão do patrimônio transformava a loja. Foi quando eu comecei a descobrir o turismo. Vim querendo vender doce, mas percebi que, na prática, também vendia história — conta.
Sobrevivendo ao tempo
A interação com a natureza é parte fundamental da produção de alguns dos doces mais característicos de Pelotas e da chamada Antiga Pelotas, região que abarca os municípios de Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo, São Lourenço e Turuçu e onde diversas famílias se dedicam à produção de compotas, frutas cristalizadas e passas.
É no pátio de casa que é feita a secagem das passas de pêssego e goiaba produzidas há mais de cinco décadas por Jordão Silveira Costa, 74 anos. Depois do preparo em um tacho de cobre, as frutas são recheadas e levadas ao sol em tabuleiros telados. O processo leva dias para se completar: é a interação lenta com a luz solar que permite que as passas fiquem com textura seca por fora e macia por dentro.
— Parece que não pode mais ser assim, então estamos providenciando estufa. O tacho também não pode, mas fazemos assim porque é tradição de 70, 80 anos atrás. Tentamos mudar para a panela inoxidada, mas ela não se presta. Queima mais o doce — lamenta o morador de Monte Bonito, 9º distrito de Pelotas.
A produção colonial é a mais afetada pelas regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Muitos dos utensílios utilizados desde a chegada dos imigrantes, que desenvolveram essa cultura na região, são proibidos pelo órgão nacional. Esse tipo de doce de Pelotas, que também foi desenvolvido pelos negros na região, pode ser o principal beneficiado pelo reconhecimento como patrimônio nacional. O registro prevê a elaboração de um plano de salvaguarda para que a tradição seja preservada. Nele, são incluídas ações como a articulação junto aos órgãos que regulam a atividade para possibilitar a produção à moda antiga.
— Aparentemente, a legislação sanitária foi elaborada visando a produção industrial de alimentos. As mesmas exigências feitas aos processos fabris são dirigidas aos processos artesanais, o que compromete a continuidade de ambas tradições, não só pelo alto custo da adequação dos ambientes, como também pela interferência sobre os processos de confecção dos doces — avalia Beatriz Muniz Freire, técnica do Iphan no Rio Grande do Sul.
Um passeio pelo passado
Se o músico e escritor Vitor Ramil tivesse um único pedido mágico ao seu alcance, não teria dúvidas: gostaria de, por um dia, passear pela Pelotas dos anos 1920. Caminhar pelos ladrilhos ainda preservados sentindo o cheiro que emana dos porões, cruzar as vias de paralelepípedos até o banco de qualquer praça e mirar o horizonte comprido entre os sobrados. A Pelotas do imaginário. A Satolep das casas.
Preservar a memória da cidade onde nasceu e da qual não pretende sair mais — fixou-se nos anos 1980, depois de uma temporada no Rio de Janeiro — é uma constante na vida e na obra de um dos pelotenses mais conhecidos Brasil afora. Uma Pelotas invertida na pronúncia e revisitada nos textos — por vezes com a geografia modificada — é o cenário dos dois livros escritos por Vitor, que se inspirou no passado para projetá-la: foi nas imagens de um álbum da década de 1920 que ele enxergou Satolep.
— A cidade é um pouco a casa da gente. Eu sinto como se Pelotas fosse uma extensão da minha casa. Quando eu escrevi Satolep (seu segundo livro), muita gente veio me dizer que nunca tinha se dado conta de que Pelotas tinha tantas casas antigas — recorda.
Apaixonado pela arquitetura dos prédios históricos, Vitor Ramil é também morador de um patrimônio da cidade. A casa em fita onde vive com a mulher e o dálmata Mango é um imóvel inventariado com mais de cem anos de história. O artista dedica boa parte do tempo livre para cuidar da limpeza e da manutenção. Frequentemente, faz restauros — como estava trocando o piso, encontrou a reportagem em um parque.
Sob o céu ainda imenso da Pelotas de 2018, lamenta a destruição de parte do patrimônio ao longo dos anos — à época do primeiro inventário municipal, na década de 1980, há quem tenha posto imóveis abaixo do dia para a noite — e comemora o tombamento.
— Preservar é trabalhoso, mas também uma questão de criar consciência. Antigamente eu andava pela rua sofrendo. Hoje em dia, relaxei. Me chama atenção o tempo que levou (para o tombamento), mas isso não importa, o que importa é que agora está acontecendo.