Daqui a algumas semanas, muitos gaúchos vão se dirigir pela primeira vez à Rússia. O interesse súbito no país distante é decorrência de uma das paixões brasileiras, o futebol — a Copa do Mundo começa em 14 de junho. O que muitos torcedores não sabem é que, há pouco mais de um século, um grupo de russos fez o caminho contrário e veio de mala e samovar para os trópicos. Não era a bola que estava em jogo, e sim a sobrevivência de suas famílias.
Uma pequena cidade, encravada entre a zona missioneira e os distritos rurais de Santa Rosa, conserva as maiores marcas da imigração russa no Rio Grande do Sul. Campina das Missões, a mais de 500 quilômetros da Capital, foi colonizada no início do século 20 por famílias que estavam isoladas na Sibéria, sonhando com calor e liberdade.
Segundo o IBGE, quase 20 mil russos entraram no Estado até 1912, empurrados pelo frio e pela instabilidade política. Eram famílias de colonos oriundas de diferentes regiões da Rússia que estavam se aglutinando na Sibéria em busca de terras para cultivar, já que as propriedades se acumulavam nas mãos de poucos, e para escapar de conflitos e perseguições ideológicas que culminariam na Revolução Russa de 1917.
Na linha Paca Sul, a cinco quilômetros de estrada de chão do centro de Campina, estão os maiores vestígios dessa época. Lá, uma igreja e um cemitério exibem marcas que, para um conhecedor, são sinais inegáveis da fé ortodoxa, cultuada pela maior parte dos russos. Diferentemente de outros cristãos, os ortodoxos usam uma cruz que lembra um crucifixo missioneiro, com duas hastes horizontais, mas também com um traço diagonal perto de sua base, alusão aos ladrões que foram crucificados ao lado de Jesus Cristo — a ponta direita da haste aponta para o céu, simbolizando o destino positivo do ladrão que admitiu seus erros e passou a acreditar que Cristo não havia praticado nenhum mal.
— Uma das primeiras construções dos imigrantes que aqui chegaram foi a igreja. Foi por meio dela que se agregaram e que também encontraram forças para vencer as vicissitudes, que não foram poucas naqueles primeiros anos — afirma o advogado Jacinto Zabolotsky, autor do livro A Imigração Russa no Rio Grande do Sul - Os Longos Caminhos da Esperança (1998).
Os ritos da igreja sofreram algumas transformações. As liturgias já não duram duas ou três horas, como antigamente, os homens não frequentam mais o templo com grossos casacos, tampouco as mulheres usam apenas saias compridas, que uma vez quase se arrastavam pelo chão.
No entanto, o uso do lenço, para não exibir os cabelos aos homens, segue parte do vestuário delas. O padre ainda reza de costas para a audiência, e em idioma russo. Nos bancos, o público se divide: mulheres ficam de um lado, homens de outro.
— Continuo frequentando a igreja. Antigamente, a gente vinha nas liturgias, acendia uma vela e carregava até a nossa casa. Havia quem morasse longe, que atravessa quilômetros, com vento e tudo, mas não deixava a vela se apagar. Era uma tradição muito bonita. Isso criou raízes fortes na gente. As crianças sempre tinham prioridade, ocupavam os bancos da frente e ganhavam doces nas festas — conta Nina Orizenko, descendente do padre que fundou a primeira igreja ortodoxa da região.
Em frente à igreja, há um cemitério das famílias ortodoxas, com relíquias históricas. A tumba mais antiga é de 1913, e uma cruz ortodoxa de madeira, ali instalada na década de 1920, resiste às intempéries. O espaço pode ser considerado uma galeria a céu aberto, com diversificados estilos de arte cemiterial. Há alguns túmulos ornamentados com anjos e outros ícones esculpidos no estilo barroco peculiar das missões jesuítico-guaranis, que ocuparam aquela região a partir do século 17.
Quem visita a linha Paca Sul encontra os espaços históricos bem conservados. A igreja de madeira se mantém com pintura renovada, ladeada por um galpão que há pouco recebeu novo telhado e calhas. O cemitério continua com as alamedas limpas e de fácil acesso, mesmo em dia de chuva, pois a terra vermelha da região é recoberta por uma densa camada de britas. Laurencio Tozevich, responsável pela administração da igreja e do campo santo, organizou mutirões no ano passado para dar nova apresentação às estruturas.
— Há 30 anos, pouca coisa era mexida. Esse cemitério estava um inço só. Pedi aos membros da comunidade que me doassem um dia de trabalho. Quem pudesse doar um pouco mais, ajudava a comprar britas. Tem muita gente boa que ajuda — conta Tozevich.
Zabezuk e as matrioshkas
Não é apenas no interior do município que as marcas da imigração ficam aparentes. Com pouco mais de 6 mil habitantes, Campina das Missões tem um monumento na praça principal dedicada a São Vladimir, que batizou a Rússia, ladeado pelo busto de professor Alexandre Zabezuk, mártir dos imigrantes. Zabezuk foi arrancado de uma sala de aula do município e torturado até a morte pela polícia do governador Borges de Medeiros, em 1924, sob a acusação de ser subversivo e comunista. Logo na entrada da cidade, há também um vistoso pórtico que destaca a chegada dos russos. Os monumentos foram erguidos nos últimos 10 anos, quando a comunidade passou a revalorizar a cultura de seus pioneiros, coincidindo com o centenário da imigração russa no Estado, em 1909.
— Há todo um esforço para segurar essas lembranças antigas, de como foi o nosso começo, para que as novas gerações valorizem essa história — afirma Ana Helenco Linz, filha de imigrantes.
Quem passa pela entrada da cidade vê uma escultura que reproduz a chegada de uma família ao local. Enquanto a mulher carrega um feixe de trigo, a filha traz uma porção de girassóis, símbolo da pátria que deixaram, e o homem fita o horizonte com uma enxada nos ombros. Vindos da fria Sibéria, esses imigrantes exultavam com a possibilidade de trabalhar em uma terra que não fica coberta por neve e gelo por seis meses a cada ano.
Descendentes dos pioneiros contam que, na Rússia do início do século 20, falava-se do Brasil como uma "terra prometida", onde havia solo fértil em abundância. Não era mentira. O solo não era coberto por gelo, mas também tinha um problema: era ocupado por densa vegetação e habitado por cobras, onças, escorpiões, aranhas e outras ameaças. Além disso, conviviam com a exótica presença de índios charruas, que parecia assustadora para os eurasianos — mas logo se revelou pacífica.
Quando os recém-chegados se deram conta do trabalho que seria desmatar toda aquela imensidão verde, houve desânimo, e os mais remediados voltaram para a Rússia ou seguiram para a Argentina em busca de melhores condições. A maior parte dos imigrantes, no entanto, resignou-se a dominar aquele solo, derrubando a machadadas imensos pés de cedro, louro, angico e canela para limpar o terreno e montar as primeiras casas.
Uma vez perguntei para minha mãe por que as mulheres russas eram tão voluntariosas, e às vezes até mesmo mandonas. Ela me disse que as mulheres muitas vezes tinham que cuidar da casa e da lavoura quando os homens estavam na guerra.
NINA ORIZENKO
Descendente do padre que fundou Igreja Ortodoxa na região
Tudo isso sob dias de calor intenso e permanente ataque dos mosquitos. Depois da primeira colheita, tiveram mais um revés. O trigo, guardado em rolos, apodreceu com o ataque de carunchos e formigas, insetos desconhecidos na Sibéria.
Os pioneiros demoraram a aprender a lidar com o clima e a natureza tropicais. Ficou conhecido na região o caso de uma matriarca surpreendida com um temporal quando estava longe de casa.
Ao voltar da tormenta, em vez de se secar, foi se aquecer junto ao fogão a lenha, que era o que costumava fazer quando apanhava uma nevasca antes de vir para o Brasil. Dias depois, a mulher adoeceu e morreu. Os familiares concluíram que ela havia "cozinhado seus ossos" molhada ao lado do fogão.
A vinda de colonos de diferentes partes da Europa para o Rio Grande do Sul no século 20 foi comum em muitas regiões. No entanto, uma característica distinguia as famílias russas. As mulheres, em vez de ficarem dedicadas apenas aos trabalhos da casa, também faziam serviços de campo, muitas vezes associados apenas aos homens. Participar das semeaduras e das colheitas era algo comum para as cinco filhas da família Orizenko.
— Uma vez perguntei para minha mãe por que as mulheres russas eram tão voluntariosas, e às vezes até mesmo mandonas. Ela me disse que as mulheres muitas vezes tinham que cuidar da casa e da lavoura quando os homens estavam na guerra — conta Nina.
Maria, irmã de Nina, completa:
— Isso quando as mulheres não iam para o próprio front de guerra.
As mulheres russas são homenageadas em um dos artesanatos mais comuns da Rússia, as matrioshkas. São bonecas divididas em duas partes que, depois de abertas, revelam outra boneca semelhante em seu interior, de dimensões menores, que, por sua vez, também guarda dentro de si outra boneca, e assim sucessivamente.
— A matrioshka representa a fertilidade da mulher do campo e também a permanência da cultura ao longo das diferentes tradições — explica Zabolotsky.
Até os anos 1950, o pessoal cultivava mais as tradições, frequentava a igreja de maneira mais constante. Os jovens levavam mais a sério o que era ensinado sobre o passado. Em algum momento, isso foi se rompendo.
ANA HELENCO LINZ
Filha de imigrantes
O advogado é um dos poucos descendentes que ainda preservam dentro de casa altares com imagens dedicadas à fé ortodoxa, comuns há algumas dezenas de anos. As estruturas contam com imagens de Cristo, algumas trazidas pelos antepassados na época da colonização da área. Zabolotsky também tem a uma coleção de ovos entalhados em madeira e outros materiais, artesanato muito comum na Rússia.
— Até os anos 1950, o pessoal cultivava mais as tradições, frequentava a igreja de maneira mais constante. Os jovens levavam mais a sério o que era ensinado sobre o passado. Em algum momento, isso foi se rompendo. Não sei se há uma razão específica para isso. São mudanças do tempo — afirma Ana.
O alfabeto cirílico, que nas primeiras décadas de colonização era ensinado nas escolas, é hoje praticamente desconhecido pelos campinenses. Da mesma forma, são poucos os que mantêm o hábito de falar o idioma russo em casa. Entre as contribuições à língua brasileira, estão palavras como vodca e estrogonofe, que fazem referência direta a produções típicas do país.
— O idioma russo que falamos aqui é diferente do usado hoje na Rússia. Como a comunidade daqui é pequena, o jeito de falar se manteve ao longo do tempo — observa Zabolotsky.
Consequências da II Guerra
Uma possível razão para que descendentes deixassem de celebrar suas tradições foi o medo. Nina Orizenko lembra que, depois do golpe militar de 1964, alguns parentes passaram a enterrar relíquias deixadas por pais e avós, com objetivo de escondê-las. Da mesma forma, tinham que ocultar ou até deixar de receber correspondências de parentes da União Soviética:
— Era uma época em que havia perseguição aos comunistas. Muitos diziam que havia comunistas espalhados por aqui. Começou a ficar perigoso ter qualquer tipo de ligação com a União Soviética.
Ana Helenco Linz não lembra de perseguições da ditadura militar em Campina das Missões, mas guarda na memória as consequências de outro momento histórico na pequena comunidade, a II Guerra Mundial. Ao lado dos russos, os alemães foram importantes colonizadores de região. Nos anos 1930, colonos das duas origens conviviam pacificamente, até que novos moradores começaram a disseminar uma ideologia macabra na cidade. Era o nazismo, que fez com que os casamentos entre jovens russos e alemães, até então comuns, começassem a rarear.
— Houve aqui um padre dos alemães que gostava muito do Hitler. Ele começou a disseminar essas ideias, e teve gente simples que acreditou nelas. Nós éramos jovens, íamos aos bailes, e os rapazes de origem alemã dançavam conosco, pediam para namorar, tomar um guaraná, essas coisas. Mas eles faziam isso escondidos, não contavam para os pais que estavam paquerando moças russas. Meu marido não foi nessa, casou comigo — conta Ana.
A dança da memória
Ana e Zabolotsky são os únicos membros vivos da primeira geração de ascendência russa na comunidade. O advogado também não se impressionou com as rixas da cidade e se casou com uma descendente de alemães. Sua mulher, Ilse Ana, revelou-se uma "russa de coração", como ele define. O casal viaja quando possível a São Petersburgo e Moscou, além de se manter conectado à cultura do país. Da TV dos Zabolotsky, raramente se ouve alguma frase em português, pois está na maior parte do tempo ligada em canais da Rússia. Além disso, o casal tem uma coleção de samovares, utensílio usado para preparar e servir chá, e no dia a dia fazem pratos da culinária típica, como o kotlete, um bolinho de carne, e o blini, massa recheada parecida com a panqueca.
Os dois lutam para expandir a cultura russa além da cozinha de casa. Um dos principais mecanismos para engajar a comunidade e levá-la a diferentes cidades é o grupo de dança Troyka. O coletivo, iniciado em 1992, conta atualmente com 30 integrantes, entre cinco e 19 anos. Diferentes coreografias são ensaiadas, demonstrando variedade de ritmos. A indumentária é criada com base na pesquisa de trajes tradicionais, feita com mão de obra de costureiras locais. Adereços mais complexos, como tiaras com bijuterias, são importados.
O Troyka não tem fins lucrativos. Os participantes oferecem uma contribuição simbólica mensal, usada para pagar monitores e cobrir outras despesas. Os espetáculos são singelos, sem virtuosismo por parte dos dançarinos, mas há coesão e ritmo entre eles.
— Não é porque somos de uma cidade pequena que não precisamos buscar qualidade no que fazemos. Os participantes estão sempre dando o seu melhor — avalia Ilse.
Os organizadores pretendem fazer com que os jovens estudantes, que dedicam suas tardes de sábado nos ensaios, aprendam a desenvolver sua educação física, a trabalhar em equipe e a expandir seus horizontes. O Troyka propicia que eles saiam da pequena comunidade para exibir suas raízes ao mundo. Além de já terem passado por todas as regiões do país, o participantes já realizaram apresentações na Argentina e no Paraguai.
Com a proximidade da Copa, o grupo de dança tem recebido um crescente número de convites para eventos. No final deste mês, vão participar do encontro Brasil Passa a Bola para a Rússia, em Brasília, nos dias 26 e 27. No dia 30, desembarcam em Porto Alegre para o Dia do Desafio, no Largo Glênio Peres.
E para quem será a torcida na hora de o Mundial começar? Brasil ou Rússia? Zabolotsky é diplomático:
— Vou torcer pelo Brasil quando ele estiver em campo. Mas quando for a vez da Rússia jogar, vou vibrar pelos russos. No caso de um encontro entre as duas seleções, que vença o melhor futebol.