Agendada por um representante da Fundação Nacional do Índio (Funai), a entrevista com o novo cacique da Terra Indígena Guarita — localizada nos municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco —, no noroeste gaúcho, estava prevista para começar às 9h, no escritório do órgão, na vizinha Miraguaí. Sem o consentimento do líder dos mais de 7 mil kaingangs que vivem na maior área indígena da etnia no Estado, seria impossível levar a cabo esta reportagem: a orientação a quem pretende ingressar nos 23 mil hectares, divididos em 16 setores kaingangs e dois guaranis, é solicitar a autorização pessoalmente ao cacique.
Chegamos com 30 minutos de antecedência. Porém, na última hora, o entrevistado havia decidido aguardar a equipe de GaúchaZH na escola da comunidade, localizada em Estiva, distrito que pertence a Redentora, onde a aldeia foi oficialmente reconhecida no começo do século 20 — antes do reconhecimento oficial, por parte do governo federal, como terra indígena, na década de 1990. Mais tarde, soubemos que se tratava de uma estratégia de nos introduzir à história do povo kaingang.
Devido à distância dos endereços, chegamos com 40 minutos de atraso à escola, onde seguidores do cacique mantinham a segurança do prédio. Antes de ouvir qualquer explicação, Carlinhos Alfaiate, 50 anos, quebrou o protocolo de apresentações, aproximou-se e cumprimentou a todos com sua característica voz baixa.
— Fiquem tranquilos. Tenho todo o tempo do mundo para vocês — sinalizando que na Guarita, se o cacique permitir, as horas correm de uma maneira bastante particular.
Primeiro kaingang eleito pelo voto direto, em 2000 (fora líder por quatro anos), Alfaiate voltou ao cargo máximo há um mês. Ainda redescobrindo a função que nos últimos 13 anos havia ficado nas mãos de um único cacique, ele diz estar reconstruindo “um cacicado esfacelado”. Muitos dos moradores não se identificam, mas confirmam que a Terra Indígena Guarita se dividiu nas mãos do cacique anterior, Valdonês Joaquim. Ele está preso desde novembro de 2017, sob acusação de dar apoio operacional a uma quadrilha que assaltou agências bancárias na região. Desde então, a área estava sem liderança. Agricultor, Alfaiate voltou a pensar em ser cacique depois de um pedido especial.
— Foram os jovens moradores da Guarita que se organizaram e exigiram nova eleição. Pediam uma liderança escolhida pelo povo kaingang — conta.
Sete candidatos demonstraram interesse no cargo, mas a disputa ficou polarizada entre dois deles. Para garantir a segurança, policiais militares foram deslocados para cada uma das zonas eleitorais. As aulas na Terra Indígena, em 2018, só começaram 10 dias após o anúncio do novo cacique.
Em 25 de fevereiro, urnas foram distribuídas nas escolas de 11 setores da Guarita. Carlinhos venceu por 39 votos – 1.494, contra 1.455 votos dados a Vilmar Sales. A partir daquela data, ele sabia que o tempo ganharia um novo significado pelos próximos cinco anos.
— O cacique precisa estar sempre disponível para o seu povo — define.
Para estar mais próximo da comunidade indígena, Alfaiate, a mulher dele, Marinês, 47 anos, e o filho mais novo, Amarilson, 20, se mudaram para a Estiva logo depois da confirmação da vitória. Desde então, a rotina do líder começa antes das 6h, podendo se estender até as 2h. A família compreende a missão.
— Ele está feliz por se dedicar, e a comunidade está feliz por ter um novo líder — comenta Marinês.— O cacique precisa estar sempre disponível para seu povo — define.
Para estar mais próximo da comunidade indígena, Alfaiate, a mulher dele, Marinês, 47 anos, e o filho mais novo, Amarilson, 20, se mudaram para a Estiva logo depois da confirmação da vitória. Desde então, a rotina do líder começa antes das 6h, podendo se estender até as 2h. A família compreende a missão.
— Ele está feliz por se dedicar, e a comunidade está feliz por ter um novo líder — comenta Marinês.
A principal tarefa do cacique é estar disponível 24 horas do dia para ouvir os anseios dos moradores – desde pedidos de assistência médica, passando por aconselhamento em briga de casal, até a liberação para eventos diversos nas comunidades e o encaminhamento aos conselheiros de casamentos. Na união entre kaingangs, existe um princípio importante que determina a aprovação.
— É uma obrigação do cacique preservar as metades tribais. Quem é kamé não pode se casar com kamé.
O mesmo acontece com quem é kairu. Identificamos cada uma das metades pelos traços físicos, principalmente pelas unhas. Os kamé têm as unhas alongadas. Os kairu, redondas – explica Alfaiate, baseado na mitologia que diz que os kaingangs surgiram de dois povos para formarem um só.
Além de dedicar-se aos 16 setores da Guarita, como são chamadas as comunidades espalhadas pelo território, o cacique quer resgatar a união entre os kaingangs que vivem no local e suas raízes históricas e culturais. Os mais velhos foram convocados para reforçar entre os jovens os conhecimentos sobre o artesanato indígena, a língua kaingang é ensinada nas escolas e a figura do kuiã, líder espiritual, deixada de lado com o avanço das religiões católica e evangélica entre os indígenas, vem sendo resgatada.
Estamos desunidos, precisamos voltar a ser uma única Terra Indígena. As drogas estão atingindo nossos jovens. Vou trabalhar com conscientização e buscar formas de tratamento. Nossa cultura precisa ser resgatada. Hoje, apenas 40% dos moradores falam a nossa língua. Meu neto quer ter mais estudo do que eu tive, só que isso não impede ele de aprender e manter viva a cultura do povo dele.
CARLINHOS ALFAIATE
Cacique
No topo da lista de objetivos que o novo chefe pretende cumprir até 2023 está fazer com que os kaingangs produzam o próprio alimento. Alfaiate lamenta a falta de acesso a linhas de crédito em agências bancárias para os que querem começar a plantar, mas não têm renda comprovada. Hoje, 1.150 famílias recebem cestas básicas mensais, distribuídas pelo governo federal. Entre os produtos apontados pelo cacique que poderiam ser cultivados para consumo próprio e venda externa estão mandioca, batata, milho, arroz, feijão, amendoim e hortifrutigranjeiros.
— A terra é muito boa e a agricultura, junto com o artesanato, sempre foi o forte entre o nosso povo. Mas, quando você não tem dinheiro para começar uma lavoura, fica muito difícil de seguir — sustenta o cacique, que nas próximas semanas pretende se reunir com representantes dos municípios para discutir o tema.
O agricultor da Guarita
Aos 93 anos, João Maria Ribeiro é um exemplo citado pelo cacique dos kaingangs que fizeram da agricultura o principal meio de sustento na Guarita. Com memória afiada e disposição física de invejar os mais jovens, ele ainda trabalha no campo e conta nas escolas locais a própria história de luta. Desde a infância lidando na lavoura, só foi à escola durante um mês. Na época, era impossível caminhar 25 quilômetros diariamente para estudar. Isso não o impediu de aprender a juntar as letras e formar as palavras. A Bíblia acabou sendo sua escola.
— Quando criança, lembro de ter apenas três setores em toda a Guarita. Caminhava quilômetros e só via mato. Sempre foi bom viver aqui, apesar dos tempos difíceis — recorda o agricultor.
Dos 13 aos 28 anos, ele trabalhou para o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). A entidade, criada em 1910 pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, em parceria com militares, pretendia “civilizar” os povos indígenas. Segundo a Funai, órgão criado para substituir o SPI, o serviço mantinha no quadro funcional desde militares a trabalhadores rurais sem qualquer formação. A pedagogia nacionalista controlava as demandas indígenas, mas resultava em situações de fome e doenças. João Maria lembra as dificuldades enfrentadas pelos homens obrigados a trabalhar nas lavouras criadas dentro da Guarita:
Durante 15 anos, trabalhei de sol a sol e sem direitos. Eles (os agentes do SPI) batiam em quem se negasse a ir para a lavoura. Como pagamento, ganhava um sabão e um fumo. Às vezes, davam milho quebrado e restos de feijão. Só consegui sair quando fui trabalhar em outra área.
JOÃO MARIA RIBEIRO
Agricultor
Depois de percorrer todos os setores da reserva, encontrou na comunidade Bananeiras o lugar para viver com a sexta mulher. Juntos, criam galinha, patos e porcos e plantam os alimentos necessários ao sustento. Vivendo numa casa de madeira, com piso de barro, João Maria tenta reunir dinheiro para construir uma casa de alvenaria.
— Sigo trabalhando para conseguir ter uma casa de tijolos — afirma.
Antes de se tornar evangélico, João Maria foi kuiã, uma espécie de líder espiritual dos kaingangs. Ele produzia chás com as ervas do mato para os conterrâneos. Apesar de a nova religião tê-lo afastado de parte das responsabilidades, não conseguiu fazer João Maria abandonar a produção de remédios caseiros. Até hoje, ele é procurado para curar infecções, depressões e pedras nos rins. Com a mudança recente no cacicado, a família de João Maria deverá voltar a ter um kuiã entre os parentes: o sobrinho do agricultor, o professor Miguel Ribeiro, 49 anos, está estudando para se tornar o xamã da Guarita.
Contra o preconceito
Por mais de uma década, a Terra Indígena Guarita ficou sem mentores espirituais, por falta de incentivo dos líderes e pelo avanço de outras religiões entre os kaingangs, condenando ao esquecimento alguns de seus costumes seculares. Preocupado com a situação, Miguel Ribeiro juntou-se a mestres de outras reservas gaúchas para resgatar o aprendizado. Além do poder de cura, os kuiã desenvolvem a capacidade de analisar os sonhos e de ver o que acontecerá com quem vive no grupo.
— O kuiã é importante porque é um líder que observa e respeita o ambiente natural. Conversando com os espíritos da natureza, ele ajuda o povo a se organizar melhor, seja para coletar o mel, para caçar ou pescar — esclarece Miguel, professor nas séries iniciais na escola indígena de Bananeiras.
Como futuro líder espiritual da Guarita, ele também se preocupa com o legado a ser deixado para a terra indígena, pois teme o distanciamento dos mais novos, arriscando um motivo:
— Só de existir como indígena já sou discriminado. Nos chamam de vagabundos e cachaceiros. Isso faz com que os jovens reneguem sua cultura.
Outra situação de descaso com a cultura kaingang está relacionada ao saneamento básico. Na Missão, a maior entre as comunidades da Guarita, com 200 famílias, há seis anos os moradores recebem água de um carro-pipa, desde a quebra da bomba que captava água. Por meio de nota, o Ministério da Saúde confirmou à reportagem a existência de um Sistema de Abastecimento de Água completo, instalado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que não foi restabelecido depois de ser vandalizado. Um novo poço está em construção, em etapas de higienização, coleta e análise de água e instalação de equipamentos (bombas d’água e instalações elétricas). Até a conclusão, sem data prevista, a Missão seguirá com água emergencial.
A chegada do novo cacique nos renova a esperança de que as autoridades nos ouvirão.
MIGUEL RIBEIRO
Professor e aprendiz de kuiã
Para Miguel, as mudanças farão os jovens voltarem a acreditar na Guarita. A estudante do oitavo ano da Escola Estadual Estiva Alana Lara Sales Mello, 13 anos, moradora da Linha São Paulo, é reconhecida como futura liderança. Aluna dedicada, é filha de Lairton Mello, vereador em Redentora pelo PDT, e de Josiane Sales, professora na comunidade Irapuá.
— Estávamos precisando de uma liderança mais forte para nos fazer acreditar no nosso futuro — diz a jovem Alana. — Quero ver água nas torneiras, sem que a gente precise ir até o rio carregar baldes. Mas meu maior desejo é que as mulheres da Guarita sejam ouvidas como os homens. Elas têm ideias, só que não têm espaço dentro da comunidade – completa.
Sabedoria de artesã
Mesmo sem jamais ter sido uma liderança oficial da reserva, a merendeira Carmelina Pinto, 58 anos, tem papel importante entre os moradores de Katiu Griá, a comunidade mais isolada e onde as crianças só falam em kaingang até a adolescência. Há 50 anos, ela domina a arte de trançar cipó-guaimbê. Hoje, na Guarita, 40% das famílias sobrevivem do artesanato produzido com material da região.
Das mãos calejadas de Carmelina surgem cestos, bolsas, brincos, colares e figuras de pássaros, entre outras. Duas vezes por ano, na Páscoa e no Natal, ela leva toda a produção do ano até a Região Metropolitana de Porto Alegre para vender o que produz.
Na reserva, Carmelina tem a tarefa de repassar às crianças a técnica aprendida com a avó. Ao lado do filho, o professor das séries iniciais Tito Tadeu Pedro, 40 anos, ela ensina aos pequenos como tirar da mata o sustento. Para isso, reúnem grupos de crianças e vão para a área verde mais próxima. A aula ocorre na floresta.
— A gente não pode tirar o cipó-guaimbê jovem, aquele mais fino. Pegamos o que já está mais seco. Com a faca, retiramos a casca e raspamos até chegar no miolo. Só isso nos interessa — explica Carmelina, na língua kaingang, aos atentos alunos.
Apesar de reforçar que o artesanato ainda é a sua principal fonte de renda, a merendeira revela a dificuldade de encontrar material na natureza. O desmatamento para plantio por arrendatários ilegais de terras indígenas diminui os espaços verdes na Guarita. Num único dia, Carmelina chega a caminhar 16 quilômetros para conseguir material.
— Está difícil trabalhar. Já pensei em desistir, mas não sei fazer outra coisa. Se parar, vou morrer, e preciso passar o conhecimento adiante — garante Carmelina, que se comunica com dificuldades em português.
Música na escola
Assim como a experiente artesã, o gestor ambiental e professor Benjamin Perokag Crespo, 37 anos, faz questão de manter o idioma indígena vivo entre os pequenos moradores da Guarita. Para ele, o maior bem da comunidade é não deixar desaparecer a histórica língua da etnia indígena. Há 18 anos lecionando na escola da Missão, o sorridente mestre chegou à faculdade em 2011, quando ingressou na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para cursar a distância Gestão Ambiental. Nos quatro anos seguintes, sem abandonar as turmas de Ciências, Matemática e alfabetização em Kaingang, Benjamin ficava no Estado vizinho por 20 dias nas férias, e o restante cursava online.
Casado e pai de quatro filhos, três deles já adolescentes, o professor nunca pensou em deixar a Guarita para morar na área urbana.
— Sempre quis me aperfeiçoar, mas seguir onde nasci. Minha maior intenção é preservar e manter a nossa cultura viva — destaca.
Em sala de aula, ele utiliza um método diferente do costumeiramente usado para ensinar português às crianças. Para o professor kaingang, versos e músicas são importantes para a alfabetização:
— Não adianta forçar a aprender, como no beabá. A criança gosta de cantar e memoriza com mais facilidade. Tudo ao tempo dela.
Entusiasmado para mostrar à reportagem de ZH como os seus alunos aprendem o idioma, Benjamin convidou os estudantes do terceiro ano do Ensino Fundamental a cantar uma música tradicional da etnia.
O que não imaginávamos é que se tratava de uma homenagem à repórter, ao repórter fotográfico e ao motorista de ZH, antes que nós nos despedíssemos das Terras Indígenas Guarita. Juntas, as crianças começaram a cantar baixinho, acanhadas. Nas tentativas seguintes, ganharam fôlego e, em uníssono, repetiram os versos, antes de nos emocionar com longos apertos de mão e olhares nos olhos dos visitantes que tão bem receberam:
Inh sy ã ve ka ty
Inh myser ti,
Inh myser tavi tati*
(Quando vejo vocês, fico contente com vocês.)
Saiba mais
* A demarcação original da Terra Indígena Guarita ocorreu em 1918, pela Comissão de Terras de Palmeiras.
* O registro no cartório de Tenente Portela se deu em 1991.
* A redemarcação foi registrada pela Secretaria do Patrimônio da União em 1994.
* O Rio Guarita corta as terras de ponta a ponta e é o principal divisor da área em Tenente Portela e Erval Seco.
* Segundo a Funai, a Guarita foi reconhecida como sendo de ocupação tradicional, antes da chegada dos não indígenas.
* Hoje, o principal lazer dos mais jovens é o futebol. Há torneios envolvendo apenas os times de kaingangs. Em Bananeiras, por exemplo, existe a promessa da prefeitura de Redentora, sem data prevista, de construir um campo com arquibancadas, iluminação e vestiários. O convênio já está firmado com o Ministério dos Esportes.
Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas
São as terras indígenas de que trata o artigo 231 da Constituição Federal de 1988, direito originário dos povos indígenas, cujo processo de demarcação é disciplinado pelo Decreto 1775/96. No caso da Guarita, os kaingangs estão na região há mais de dois séculos.
Reservas Indígenas
São terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, que se destinam à posse permanente dos indígenas. Também pertencem à União, mas não se confundem com as terras de ocupação tradicional. Há terras indígenas, no entanto, que foram reservadas pelos Estados, principalmente durante a primeira metade do século 20, e que são reconhecidas como de ocupação tradicional.
Fonte: Funai