"Extraordinário" era o adjetivo preferido do Professor Saldanha. Sempre que me via, ele bradava, escandindo as sílabas pomposamente, com sua voz de locutor:
– Extraordinário David Coimbra!
Não que me considerasse extraordinário, ele chamava todo mundo de extraordinário.
O Professor Saldanha era um jornalista que trabalhava na Assembleia Legislativa. Era baixinho, gordinho, usava óculos pesados e ternos antigos. Tinha vasta cultura. O repórter Gustavo Mota gostava de dizer para ele:
– Professor Saldanha, o senhor sabe muito do passado, mas não sabe aplicar no presente.
O Professor Saldanha ria e brincava:
– Extraordinário Gustavo Mota!
Muitas vezes, o Professor Saldanha me trazia livros da sua biblioteca:
– Leia este!
'Rumo à Estação Finlândia' traça a história do socialismo europeu desde a Revolução Francesa até a Revolução Russa, que completa seu centenário neste outubro que respiramos.
Eu lia e devolvia. Suas indicações sempre eram interessantes.
Um dia, ele disse que eu tinha de ler Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson. Falei que já havia lido. Ele contrapôs:
– Leste quando ainda não tinhas maturidade para absorver tudo o que o livro ensina. Tens de ler outra vez!
Foi o que fiz. Segui o conselho do Professor Saldanha, reli Rumo à Estação Finlândia e, de fato, sorvi o livro de outra forma. Quando engoli o ponto final, disse para mim mesmo: "Queria ter escrito isso".
Rumo à Estação Finlândia traça a história do socialismo europeu desde a Revolução Francesa até a Revolução Russa, que completa seu centenário neste outubro que respiramos.
O ótimo título tem explicação histórica: em 1917, a Rússia estava devastada pela I Guerra Mundial, chamada então de A Grande Guerra, porque eles não sabiam que as coisas sempre podem piorar. Na época, Lênin vivia no exílio. Os alemães tinham todo interesse em sua volta à Rússia, para que liderasse a sublevação contra o czar e estabelecesse a paz. Assim, eles poderiam se concentrar na luta no Ocidente. Sabedor disso, Lênin fez um acordo com os alemães e, protegido por eles, embarcou em um trem blindado em direção ao seu país, que já se consumia na ardência da revolta. Em abril, depois de uma longa viagem, ele chegou à Estação Finlândia, de São Petersburgo, onde foi recebido como herói. Ao conquistar o poder, Lênin cumpriu o pacto. Estabeleceu um tratado de paz com a Alemanha, que só não ganhou a guerra porque, exatamente naquele momento, os Estados Unidos entraram no conflito.
Edmund Wilson escreveu Rumo à Estação Finlândia nos anos 1930, antes de Nikita Kruschev revelar as atrocidades cometidas por Stálin, portanto. Essa impossibilidade de perspectiva histórica torna o relato impecável justamente até a chegada do trem de Lênin a São Petersburgo. Depois disso, o leitor tem de compreender que, hoje, detém mais informações do que Wilson detinha ao sentar-se diante da máquina de datilografia para compor o seu clássico.
Mesmo assim, Rumo à Estação Finlândia é uma obra definitiva para quem quer compreender um pouco do que aconteceu na Rússia cem anos atrás, e muito do que acontece hoje. Aproveite a Feira do Livro, que já vem aí, compre o seu e depois me diga o que achou.