É onde as gralhas anunciam a chegada de visitantes inesperados e onde a onça-pintada escolheu para ser sua única morada no Rio Grande do Sul que está o maior território de conservação de floresta nativa do Estado, em Derrubadas, no noroeste gaúcho. Encravado às margens do Rio Uruguai, na fronteira entre o Brasil e a Argentina, o Parque Estadual do Turvo tem também um cenário singular: a partir dele é possível avistar, na terra dos hermanos, a mais longa queda d'água longitudinal do mundo, o Salto do Yucumã ("grande roncador", em tupi-guarani), com 12 metros de altura e incríveis 1,8 quilômetro de extensão.
Casa de espécies ameaçadas de extinção, como a onça, o puma, o cateto e a jacutinga, e de árvores centenárias de 30 metros de altura, o parque completou 71 anos repleto de histórias contadas por quem conviveu ou ainda convive com uma vizinhança tão incomum. Até três anos atrás, para evitar o deslocamento, o Estado cedia casas aos funcionários para morarem dentro da própria unidade — distante cinco quilômetros da área urbana mais próxima. Depois de décadas, eles tiveram que deixar a floresta.
O auxiliar de serviços rurais Odil Zimmermann de Almeida, hoje com 68 anos, foi um deles. Há 37 anos no local, o mais antigo funcionário ainda em atividade no Turvo morou com a mulher e os cinco filhos em casas dentro da mata por três décadas, quando ainda era guarda-parque e fazia rondas. Hoje, mareja os olhos de saudade quando depara com a última das moradas, onde enfrentou diferentes desafios ao lado da família. A casa de madeira, com seis cômodos, está sendo engolida pela natureza.
— Criei meus filhos no mato. A gente gostava de viver aqui. O maior problema não eram os animais de grande porte, mas os borrachudos. As portas e as janelas da casa tinham de estar sempre protegidas — lembra.
Odil recorda que, nos primeiros 10 anos vivendo em uma área de mato tão fechado na qual o sol quase não batia, era comum deparar com os vizinhos selvagens. Em mais de uma situação, encarou uma onça a poucos metros de distância. Quando isso ocorria, bastava jogar um foco de luz na direção do grande felino para afastá-lo. Mas, em pelo menos duas situações, Odil não conseguiu contê-lo. Numa delas, perdeu o cão Amigo.
– Inventei de tomar um chimarrão na porta de casa, por volta das 20h. Já estava escurinho. Sentei e comecei a ouvir um "tendéu" do cachorrinho nos fundos do terreno. Quando cheguei perto, vi a onça grudando o meu cachorro nas "paletas". Não pensei, e me atraquei nela – diz.
Ele não precisou maltratar na onça. Apenas bateu um pau no chão para o animal largar o cão. Mas já era tarde para o cachorro. Em outra situação, o auxiliar de serviços rurais viu a onça devorar um pônei e uma égua. Não houve tempo de interceder.
– É o instinto de sobrevivência, ela não faz por mal – esclarece.
Na última casa em que viveu no Turvo, durante 16 anos, Odil instalou inúmeras lâmpadas no pátio – à noite, a iluminação afastava os bichos. Assim como Odil, Selfredo Bomm, 59 anos, funcionário há 36, ainda chora ao lembrar dos tempos vividos com a mulher e os dois filhos na unidade de conservação. Enquanto as famílias de ambos ficavam a menos de um quilômetro de uma das entradas do Turvo, eles acampavam até uma semana em diferentes trechos da reserva, sem contato com a civilização.
– Era a forma de mantermos os caçadores longe daqui. Algumas vezes, chegamos a trocar tiros com alguns e ajudamos nas detenções de outros, com apoio da Brigada Militar – afirma Selfredo.
Com chuva ou sol, à pé ou a cavalo, os dois abriam a facão as picadas nas matas, andavam por dentro dos rios e arroios em meio à floresta e avistavam espécies que poucos teriam a chance de ver numa caminhada comum.
— Em 1986, vimos pela primeira vez uma harpia sobrevoando a área. Foi a coisa mais linda — lembra Selfredo, citando aquela que é apontada como a ave de rapina mais pesada do mundo, e que teve presença no local confirmada por pesquisadores.
Apesar de serem testemunhas de situações incomuns envolvendo os animais, como nas vezes em que foram surpreendidos pelos veados lambendo os restos de sal na churrasqueira, os dois guardam memórias especiais das onças-pintadas. Num final de tarde, por exemplo, eles caminhavam na trilha em direção ao Salto do Yucumã quando ficaram a cerca de 15 metros de uma delas.
— Tremi os joelhos na hora, mas tentei demonstrar tranquilidade. Não consegui contar por quanto tempo, mas ela parou e nos encarou, até virar as costas e seguir para a mata fechada — conta Selfredo.
Odil e Selfredo foram contratados para atuar como guardas-parque no Turvo, quando este ainda estava sob responsabilidade da secretaria de Agricultura gaúcha. Em 2007, o Estado realizou um concurso para o cargo. Odil e Selfredo, então, tiveram de devolver as armas usadas por décadas, deixaram as casas existentes no parque e se tornaram auxiliares de serviços – responsáveis pela limpeza das trilhas e da área aberta aos visitantes. Hoje, acima de tudo, são defensores da fauna e da flora existentes no parque.
— As pessoas não têm ideia da importância de termos as onças-pintadas ainda vivendo aqui. Este lugar é precioso e precisa continuar sendo preservado — desabafa Odil.
O fascínio da onça
Segundo a chefe do setor de Fauna da Secretaria Estadual do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema), Caroline Araújo Dal Bosco, estudos científicos realizados entre 2004 e 2017 com o uso de armadilhas fotográficas identificaram apenas quatro onças-pintadas ainda vivendo na região do Turvo.
— Elas foram quantificadas por meio da comparação do padrão de pintas de cada animal, que é único, assim como as digitais nos humanos — explica.
Na região, esse tipo de felino é considerado uma espécie criticamente em perigo. Para tentar reverter a situação, em maio do ano passado, o Estado lançou o Plano de Conservação das Onças no Rio Grande do Sul.
— Os objetivos são melhorar a compreensão da ecologia da espécie, garantir a conectividade entre áreas prioritárias de conservação na unidade e seu entorno e realizar ações de educação ambiental e de divulgação. O plano está em fase de elaboração e formalização perante as instituições — resume Caroline.
A singularidade do Turvo e a situação da onça também despertaram a atenção de um grupo de pesquisadores da UFRGS, da Fundação Zoobotânica, da PUCRS e da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Desde o início deste ano, eles estão estudando o comportamento dos mamíferos carnívoros no bioma Mata Atlântica.
— Escolhemos seis áreas no Estado, da mais degradada pela monocultura da soja até a mais preservada no Rio Grande do Sul, que é o Turvo. É só nele que existem o que chamamos de espécies predadoras de topo, aquelas peças-chave na regulação das comunidades, equilibrando o meio ambiente. São os casos da onça-pintada e do puma. Eles predam as espécies mais abundantes, como a jaguatirica, que costumam acabar com as espécies de menor capacidade de competição, como o gato-do-mato-pequeno — explica a bióloga pesquisadora Flávia Pereira Tirelli, 32 anos, pós-doutoranda em Biologia Animal pela UFRGS.
Junto a outras três pesquisadoras, Flávia instalou 50 câmeras pelo parque para identificar e acompanhar a movimentação das espécies. Serão feitas duas coletas de imagens no local, em maio e em julho. O resultado da pesquisa deve ser publicado em 2019.
Enquanto os pesquisadores ainda tentam algum registro do felino mais importante a circular no Turvo, o fotógrafo norueguês Bjørn-Einar Nilsen, 53 anos, teve o privilégio de fotografar uma das onças a menos de 10 metros de distância, em julho do ano passado — algo raro, mesmo em se tratando da unidade de conservação.
— Foi por volta das 22h. Ela estava na estrada que dá acesso ao Yucumã, a 400 metros do Centro de Visitantes. Estávamos no carro, e a onça não demonstrou susto ou medo. Parou por instantes, tempo suficiente para fotografá-la. Foi emocionante — relata Nielsen, que colabora com o projeto Onças do Turvo.
Nielsen é marido da gestora do parque, a bióloga Solange Dias de Deus, 38 anos. Pela primeira vez, a unidade de conservação está sob o comando de uma mulher. Desde fevereiro de 2017, ela tem a responsabilidade, junto com os guardas-parque e os auxiliares de serviços rurais, de manter intactos os 17,5 mil hectares. Antes de se transferir para o Interior, Solange morava em Gravataí e trabalhava em Porto Alegre. Diz que não pensou duas vezes quando a secretaria a convidou para deixar o serviço administrativo (ela é bióloga do Estado desde 2010) e se aventurar na floresta, com o apoio do marido.
Solange e Nielsen vivem numa casa de alvenaria ao lado do prédio administrativo do parque, no único ponto do Turvo onde celular e internet são acessíveis. Estar entre as árvores centenárias e os animais silvestres é o passatempo favorito da bióloga. Antes de juntar-se à Divisão das Unidades de Conservação do Estado, Solange já sonhava com o dia em que atuaria no Turvo.
— A família ainda se espanta quando digo que meus companheiros são as onças-pintadas e os tamanduás-mirins. E que tenho umas vizinhas fofoqueiras, as gralhas, que me avisam quando temos novos visitantes, as serpentes e os tucanos, por exemplo — diz, rindo.
Projeto para o turismo
Nos primeiros dias confinada no parque, Solange percebeu que, depois que escurece na floresta, o melhor é ficar dentro de casa. Certa noite, enquanto cozinhava, ouviu passos ao lado do prédio. Suspeitou que fossem de um animal pesado. À espreita, pela janela, não conseguiu identificá-lo. Pela manhã, ao observar as pegadas, teve a certeza: era uma anta.
O parque é o principal atrativo turístico da região. Colonizada por alemães, a partir da década de 1930, Derrubadas ganhou este nome quando os primeiros desbravadores depararam com uma gigantesca área de mata devastada pela exploração de madeira e, depois, a abertura de espaço para o cultivo do trigo e da soja.
Derrubadas, com seus 3,5 mil moradores, e pelo menos outros 32 municípios das regiões Celeiro e Planalto Médio, que compõem a Rota do Yucumã, dependem do turismo, que vinha despencando nos últimos sete anos, desde que o Salto passou a ficar quase o tempo inteiro submerso – afastando quem viajava especialmente para vê-lo.
As prefeituras suspeitavam da instalação da usina de Chapecó, em funcionamento desde 2010, pela situação. O Operador Nacional do Sistema Elétrico negava. Até que, em 2016, o Estado iniciou um estudo para descobrir os motivos do fenômeno. Constatou que a usina, situada a cerca de 160 quilômetros do Salto, era de fato a responsável pela maior vazão, obstruindo o raro espetáculo da natureza antes visualizado em sua plenitude.
Como resultado, no início deste ano, a Agência Nacional de Águas (ANA) publicou, no Diário Oficial da União, uma resolução estabelecendo novas regras de operação para a usina, que é administrada pelo Ministério de Minas e Energia. Segundo a norma, deve haver comunicação entre o ministério e a Sema para que a secretaria publique, em seu site oficial (sema.rs.gov.br/parque-estadual-do-turvo), todas as tardes de quinta-feira, as condições de visibilidade para o fim de semana.
A resolução funcionará em formato de teste até agosto deste ano. Desde março, já é possível observar o Salto do Yucumã em sua totalidade durante os fins de semana – quando não há chuva intensa nos sete dias anteriores.
O Parque Estadual do Turvo
* O parque busca proteger os processos naturais chaves para a persistência e evolução das comunidades, em especial os processos de sucessão, o regime hídrico do Rio Uruguai e dos arroios tributários.
* Trata-se do último refúgio gaúcho de espécies como a anta e a onça-pintada. A viabilidade das pequenas populações de onça no parque se mantém apenas em função das ligações com as áreas florestadas da Argentina e com possíveis contatos com as populações mais numerosas da bacia do Rio Iguaçu.
Fonte: Secretaria Estadual do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema)
Como visitar
* O Parque Estadual do Turvo é aberto à visitação de quarta-feira a domingo, das 8h às 18h. O horário limite de entrada é 16h30min.
* Preço: R$ 16,50 por pessoa.
* Para chegar até o parque é preciso andar por uma estrada de terra de 15 quilômetros, em meio à floresta. Para visualizar o salto, é preciso caminhar ainda 600 metros por um trajeto de pedras que é, na verdade, o leito do Rio Uruguai exposto quando o nível da água está baixo.
* Contato: (55) 3616-3006.