Correção: O controle da pesca no Parque Nacional da Lagoa do Peixe é feito pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e não pelo Ibama como publicado entre as 14h de 29 de março e as 13h40min de 2 de abril. O texto já foi corrigido.
Uma tradição de pelo menos dois séculos no litoral gaúcho está com os dias contados. Estendida sobre os municípios de Tavares, Mostardas e São José do Norte, a vocação pesqueira da Lagoa do Peixe já chamava atenção em 1820, quando o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) registrou em livro sua visita ao local. Atualmente, são poucos os pescadores que resistem na região — e eles não deixarão descendentes no ofício. Enfrentam um dia a dia sem os confortos comuns de uma cidade, com muito trabalho e pouca estabilidade financeira, mas também com a liberdade de trabalhar sobre amplidão das águas de um cartão-postal do Rio Grande do Sul.
Demarcado como unidade de conservação em 1986, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe passou a ter a pesca controlada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) em 2000. A partir de 2007, com a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), esta instituição passou a ser a responsável . Quem já pescava naquelas águas recebeu uma autorização para seguir explorando seus recursos, mas que não pode ser repassada a filhos e outros familiares.
De olho no aumento da demanda provocado pelos costumes da Sexta-Feira Santa, a última geração de pescadores da Lagoa do Peixe trabalhava sem descanso de domingo a domingo nas últimas semanas, para abastecer as costas do Estado e de Santa Catarina de camarões-rosa, foco da pesca no local, além de enviar toneladas de siri para o Rio de Janeiro. Os pescadores moravam em acampamentos improvisados, sem energia elétrica ou água encanada. Foi assim a vida toda para muitos deles.
— Cresci vendo meu pai e meu avô pescarem nessa lagoa. Não importa se é dia de semana, sábado ou domingo, se tem sol, chuva ou temporal. Todo dia é dia de entrar na água. Tempo feio é bom sinal, porque o vento revira a água, faz o camarão subir e entrar nas nossas redes – observa o pescador João Flávio de Souza.
Aos 65 anos, João Flávio mantém uma rotina incansável no acampamento à beira da lagoa. Acorda todos os dias pouco depois das 4h, toma um café rápido e, até as 5h, já remou cerca de um quilômetro rumo às redes que deixou armadas na tarde anterior. Em duas ou três horas, recolhe os siris e camarões que entraram nos "aviões" – como é conhecida a estrutura de malhas que prendem a taquara sob a água. Nas margens, por volta das 7h, compradores do pescado estão com balanças e caminhões a postos para pesar o que cada pescador recolheu e anotar o valor devido em uma caderneta, já que os pagamentos costumam ser semanais.
Os preços, neste ano, não estão animadores para João Flávio e seus colegas. Duas semanas antes da Sexta-Feira Santa, o quilo do camarão rendia R$ 8 ao pescador. Cada quilo de siri é vendido por apenas R$ 1, mas como uma grande quantidade do crustáceo é invariavelmente capturada pelas malhas, acaba sendo um importante complemento de renda. Peixes que porventura fiquem alojados nas redes devem ser devolvidos à água, por orientação do ICMBio.
A safra varia de dia a dia. É possível pegar menos de 10 quilos de camarão em uma manhã e, na alvorada seguinte, com um pouco de sorte, recolher 50 ou 60. Pegar 20 ou 30 quilos de siri por dia é uma constante.
— Já tivemos ano em que o quilo do camarão rendia R$ 14 ou R$ 12. Neste ano, estavam pagando R$ 9, e agora está em R$ 8. Dizem que a crise chegou. Temos receio de que, depois da Semana Santa, paguem ainda menos pelo nosso trabalho – preocupa-se o pescador Pedro Carassai.
O siri é também o responsável por fazer os pescadores acordarem cedo. É preciso recolher as redes antes de o sol nascer, pois os crustáceos ficam mais agressivos pela manhã, devorando camarões e rasgando redes. Mesmo com temporal, é necessário entrar na água sem demora, sob ameaça das pinças afiadas do animal destruírem o instrumento de trabalho dos pescadores.
A vida em provisório
Ao voltar da lagoa para o acampamento, há sempre tarefas, como reparar barcos, costurar redes ou buscar água potável. Já pelas 16h, é preciso entrar novamente na lagoa, para baixar as redes levantadas pela manhã ou trocá-las de lugar. Com o dia cheio de atividades e sem atrativos eletrônicos como televisão ou internet (por ser unidade de conservação, não é permitido estender rede elétrica sobre a área), às 20h muitos pescadores já estão na cama, descansando para iniciar novamente a jornada por volta das 4h. É assim de dezembro a maio, período em que a pesca está autorizada no parque. Fora da época, alguns pescam no mar ou trabalham nas plantações de cebola, mas grande parte precisa pagar as despesas do ano inteiro com o que recebe na temporada do camarão.
Ao longo dos cinco meses de pesca, quem mora nas imediações da lagoa, como na Praia do Farol, por exemplo, pode se dar ao luxo de dormir em casa e percorrer de carro ou moto trechos de dois ou três quilômetros até os pontos de pesca. Há também raros casos de quem mora no centro de Tavares e cumpre cerca de 20 quilômetros de carro diariamente até a lagoa.
— Não vale a pena dormir em casa — avalia Protásio Saraiva, pescador conhecido como Tazinho, que mora no Balneário Mostardense, a 40 minutos de viagem.
— Além do tempo de ida e volta, o transporte acarreta mais um custo. Como não se ganha muito com a pesca, fica pesado o deslocamento diário.
É por isso que ele e a mulher, Cenilda Rosa Alexandre, trocam a cada ano o conforto do lar, o banho quente e a energia elétrica por uma cabana de madeira e lona no Parque Nacional. Por conta das regras da unidade de conservação, tudo precisa ser provisório, facilmente desmontável. Nada pode ficar de um ano para o outro, facilitando a próxima vinda. Quando os pescadores deixam o parque, no final de maio, quase não há vestígios da longa ocupação humana que permaneceu ali.
Ao todo, 125 pescadores estão autorizados a explorar as águas do Parque Nacional da Lagoa do Peixe. Além de uma carteira de identificação, é preciso que cada um dos trabalhadores renove anualmente os lacres de suas redes junto ao ICMBio. Redes sem lacre de identificação podem ser recolhidas e acarretar multa. E a fiscalização é rigorosa: agentes da Patrulha Ambiental da Brigada Militar circulam pelos acampamentos e também pelas águas da lagoa.
É o que a gente saber fazer. Imagina eu chegar em uma cidade para procurar emprego. Vou dizer que sou pescador e ouvir: "Muito bem, mas aqui não tem mar, não tem lagoa, não tem rio, não tem nada para você fazer".
JOÃO FLÁVIO
Pescador
Além de pescadores autorizados, só cônjuges e filhos podem pernoitar nas barracas, e jamais sem a presença de quem detém a autorização — a não ser em caso de atestado médico, quando um pescador pode dar à esposa ou ao filho o direito provisório de pescar por ele.
Mesmos com tanto controle e baixo retorno financeiro, a maior parte dos pescadores não pensa em abandonar o ofício. João Flávio resume:
– É o que a gente saber fazer. Imagina eu chegar em uma cidade para procurar emprego. Vou dizer que sou pescador e ouvir: "Muito bem, mas aqui não tem mar, não tem lagoa, não tem rio, não tem nada para você fazer".
O fim da tradição
Em 2000, quando a pesca passou a ser exclusiva para os cadastrados no Ibama - atualmente, o ICMbio –, havia 195 pescadores atuando na Lagoa do Peixe. De lá para cá, o número baixou para 125, por conta de mortes, mudanças de residência ou aposentadoria. Como nenhuma nova autorização pode ser emitida, aos poucos o ofício vai desaparecer. Apesar das queixas de pescadores que queriam deixar o benefício de herança para seus filhos, Fernando Weber, chefe da unidade de conservação, afirma que isso não está sob cogitação:
— Em primeiro lugar, a lei não permite nenhum tipo de uso direto dos recursos naturais de um parque nacional. É exclusivo para educação ambiental e pesquisa científica. Além disso, o camarão-rosa está sobre-explorado, ou seja, se continuar a ser explorado como está, sem dúvida estará ameaçado de extinção com o passar dos anos.
Weber explica que as larvas dos camarões eclodem no mar, mas em seguida entram em estuários como a Lagoa do Peixe, onde se desenvolvem antes de voltarem ao mar para a reprodução:
— A pesca tanto em alto mar como nos estuários é muito forte, então, se acabarmos com a pesca em pelo menos um dos estuários, e a Lagoa do Peixe é um dos mais importantes nesse sentido, com certeza vamos melhorar o estoque pesqueiro. As unidades de conservação são criadas justamente com a função de manter a biodiversidade.
Sobre a impossibilidade dos filhos dos pescadores exercerem o ofício dos pais, Weber aponta que houve tempo para a preparação das novas gerações:
– Na época do cadastro, os filhos eram pequenos, então os pescadores teriam tempo de encaminhá-los para outras profissões. São poucos os casos de filhos que hoje acompanham os pais nesse trabalho. Além disso, estamos criando um curso para formar os pescadores como condutores de turismo dentro do parque, pois queremos abrir mais nosso espaço à visitação. A ideia é propiciar uma alternativa de renda às novas gerações.
Em que pesem as dificuldades e o baixo rendimento financeiro da pesca, há jovens que sonham em levar adiante a tradição familiar. Lucas Faleiro Vieira, 17 anos, é filho e neto de pescadores. Sua avó, Tomázia Vieira, que costumava pescar no local, deu à luz 14 filhos, sendo que quatro deles seguiram adiante no ofício, os quatro pescadores reconhecidos pelo ICMBio.
Na cidade, a gente trabalha trancado. Aqui, tem liberdade. Vou para a praia, pesco, dou uma caminhada e estou em casa. Isso deixa a gente se sentir livre.
LUCAS FALEIRO VIEIRA
Filho e neto de pescadores
Aos 90 anos, Dona Tomázia vive em uma casa de madeira à beira do mar, na estreita faixa de areia entre o oceano e a lagoa.
— Eu andava por aqui, sempre com meus pintinhos em volta – diz, em alusão à agitação dos filhos. — A vida sempre tem desafios, mas com o esforço na pesca, nunca nos faltou nada.
Lucas é filho de Bento, 50 anos, o caçula de Dona Tomázia. Atualmente, o jovem está autorizado a acompanhar o pai nas lidas com o camarão na Lagoa do Peixe, pois familiares diretos podem ajudar os pais no trabalho. No entanto, vai precisar abandonar a prática depois que Bento se afastar da pesca.
— É uma coisa da pessoa, passa pela tradição. Minha família me orientou para que eu estudasse e arrumasse um trabalho na cidade. Mas gosto de pescar. Por mim, pescaria pelo resto da vida — afirma Lucas. — Na cidade, a gente trabalha trancado. Aqui, tem liberdade. Vou para a praia, pesco, dou uma caminhada e estou em casa. Isso deixa a gente se sentir livre.
João Flávio também gostaria que um de seus filhos desse continuidade à tradição familiar:
– Amanhã ou depois nós morremos, e isso vai terminar. Não vai ter mais ninguém aqui dentro. Se desse para ajeitar do meu filho vir pescar no meu lugar, deixava a aparelhagem para ele e ia embora. Ele é empregado, ganha um salário que dá só para comer. Aqui não seria assim.
Mas também há quem lamente não ter oportunidades além da pesca, como José Rodrigues da Silva:
– Pesco porque preciso. Agora não está tão ruim, mas chegando mais perto do inverno é difícil entrar nessa água fria até o peito. Os dedos travam, a gente mal consegue mexer.
Uma única família
Gente simples, que pouco sabe de seu passado familiar, a maior parte dos pescadores da Lagoa do Peixe não está ciente de que pode descender de alguns dos primeiros colonizadores do Rio Grande do Sul. Há registros da chegada de casais açorianos ao local na década de 1730, alguns anos antes de regiões atualmente mais habitadas, como Porto Alegre e Viamão.
— Apesar do nosso jeito cantadinho de falar, que lembra os catarinenses, e estarmos numa região litorânea, que geralmente não é tão associada à tradição gaúcha, nosso região esteve na base da formação do Rio Grande do Sul — explica Luiz Agnelo Chaves Martins, o Gordo, historiador amador e presidente da Associação dos Proprietários das Terras do Parque Nacional da Lagoa do Peixe.
Gordo aponta que, pelo menos desde o início do século 19, os habitantes locais se dedicavam à pesca. Ele mostra um trecho do livro Viagem ao Rio Grande do Sul, em que Auguste de Saint-Hilaire anota que já era comum em 1820 o costume dos locais cavarem um acesso da lagoa ao mar, para que peixes e camarões entrassem na água doce. Hoje, o trabalho é feito com retroescavadeiras, geralmente em setembro. "A Lagoa do Peixe se estende por detrás da casa em que nos hospedamos; têm pouca profundidade suas águas salobras", escreveu o francês. "Como fica muito próxima do mar, os moradores da região habituaram-se a abrir, de quando em quando, um sangradouro que comunica com o oceano; a lagoa enche-se de peixes que se apanham sem dificuldade."
Um modo de vida de mais de 200 anos está em extinção. Não estamos contra a natureza. Ao contrário, queremos que a população ribeirinha seja também guardiã desse ecossistema, como já foi até agora. É possível uma interação sustentável com o meio ambiente sem marginalizar essa população.
LUIZ AGNELO CHAVES MARTINS
Presidente da Associação dos Proprietários das Terras do Parque Nacional da Lagoa do Peixe
— Um modo de vida de mais de 200 anos está em extinção. Não estamos contra a natureza. Ao contrário, queremos que a população ribeirinha, de pescadores e pequenos produtores de gado que conhecem o local como ninguém, seja também guardiã desse ecossistema, como já foi até agora. É possível uma interação sustentável com o meio ambiente sem marginalizar essa população — afirma Gordo, que tem tentado sensibilizar o poder público para a continuidade da pesca e da pecuária no local.
Gordo também chama atenção para a interação entre os açorianos e a comunidade negra do local:
– Os casais açorianos tinham uma ligação muito forte com os negros. Ser escravo ou ser colono era ser um homem a pé naquela época.
Rosimeri Aguiar, é descendente de quilombolas do local. Ao lado do marido, Ademir José Aguiar, é uma das poucas mulheres envolvidas diretamente com a pesca — na maior parte das vezes, as esposas dos pescadores se dedicam a tarefas do acampamento, como limpar o ambiente e cozinhar.
— Gosto de trabalhar assim, na água. Em casa, na cidade, tem todos os confortos, mas prefiro estar aqui, na água ou no acampamento. A semana passa sem a gente perceber. Quando me aposentar, não quero deixar de vir para cá — diz Meri.
Tazinho aponta que, apesar de todos serem descendentes de pescadores, o ofício mudou com o tempo:
— Se você perguntar para qualquer um aqui, todos vão dizer que os pais e os avós pescavam. Era o que tinha para fazer na época. Mesmo quem tinha campo, trabalhava com o gado nas propriedades aqui em volta, vinha para cá pescar. Era uma pesca de subsistência. Eles pegavam o camarão e salgavam para conservar o ano todo.
Com o tempo, a atividade foi se profissionalizando e se adaptando a novos tempos. A pesca de arrasto, comum na região, foi dando lugar a redes cada vez mais sofisticadas, que diminuem a morte de peixes pequenos e descartam o camarão menor, deixando que este tenha tempo de crescer e cumprir seu ciclo reprodutivo. Além disso, as luzes usadas para atrair os camarões à noite, antigamente à base de gás de cozinha, hoje têm baterias alimentadas pelo sol. Tanto as adaptações das redes como das luzes foram propostas do ICMBio.
— A vida ficou mais fácil com esse sistema de luz — avalia Cenilda Rosa. — Antigamente, todo dia o mesmo caminhão que levava o camarão também deixava dezenas de botijões de gás.
O que não mudou ao longo do tempo foi o senso de comunidade. Nos acampamentos, não há cadeados nem trancas. Quando alguém sai de seu barraco e não fecha a porta, o único perigo é que os mosquitos entrem — à noite, suas picadas e seus zunidos são bem inconvenientes. Quando o tempo está aberto, sem ameaça de chuva, todos saem sem se preocupar em recolher cadeiras ou qualquer outro objeto. Ao retornar para a moradia improvisada, estão certos de encontrar tudo no lugar onde deixaram.
— Os pescadores todos se conhecem — diz João Flávio. — Aqui a gente grita um com o outro, conversa, não têm segredos. Se falta alguma coisa, a gente vai no barraco vizinho ver se tem, pega e depois devolve. Nós, pescadores, formamos uma única família.