Lá pelos anos 2000, o webdesigner Argemiro Rocha, 58 anos, costumava ouvir de pescadores da região que, no sul da Ilha Brasileira, morava um tal de Marcos Sujo. Até então, o único habitante conhecido daquele naco de terra encravado no encontro das águas barrentas do Rio Uruguai com o Quaraí era José Jorge Daniel, o seu Zeca. No ponto mais ocidental do Estado, pôr do sol do Rio Grande, seu Zeca vivia desde os anos 1960 com a família em uma casa de madeira sem energia elétrica ou água potável.
– Haveria outro morador? – questionava-se o webdesigner.
Argemiro foi tirar a dúvida. Empreendeu uma expedição até o sul da ilha. Estava determinado a encontrar, entre muitos mosquitos e árvores seculares, o sujeito que, a julgar pela alcunha, seria uma espécie de ermitão de vestes rasgadas e imundas. Ao chegar naquela ponta do Brasil, uma surpresa: ele não era uma pessoa, mas um amontoado de pedras cinzas cobertas por vegetação. Tratava-se, na verdade, de um marco imperial, construído na ilha para apontar a última fronteira à oeste do Brasil.
– Começamos a explicar para os pescadores que aquilo ali era simbólico, pois estabelece os limites do país. Hoje, toda a região tem consciência da importância desse monumento – diz Argemiro.
O marco imperial é símbolo de uma disputa secular entre o Brasil e o Uruguai. Embora não tenham levado os dois vizinhos à guerra, as rusgas volta e meia provocam mal-estar nos meios diplomáticos entre Brasília e Montevidéu. O Uruguai reivindica a Ilha Brasileira (chamada de Isla Brasileña pelos vizinhos) como parte de seu território. Guardadas as devidas proporções, é como a Argentina, que reivindica as Malvinas como sua, tema que já levou o país à guerra com o Reino Unido, em 1982.
Tudo começou em 1851. Dom Pedro II havia assumido o trono fazia uma década, e a Revolução Farroupilha terminara, com vitória do Império, apenas seis anos antes. Os limites fronteiriços entre o Brasil e os vizinhos não estavam claros. Não raras vezes, as disputas eram definidas a faca ou a espada. Naquele ano, Brasil e Uruguai assinaram, no Rio de Janeiro, capital imperial, o Tratado de Limites, que deveria pôr fim aos litígios, demarcando, de forma definitiva, a fronteira. No artigo III, item 2º do documento, fica estabelecido que o território brasileiro vai "até o ponto em que começa o galho do Quaraí, denominado Arroio da Invernada pela carta do Visconde de S. Leopoldo, e sem nome na carta do coronel Reyes, e desce pelo dito galho até entrar no Uruguai; pertencendo ao Brasil a ilha ou as ilhas que se acham na embocadura do dito Rio Quaraí no Uruguai".
Foi aí que se iniciaram os problemas. Para o Brasil, está claro que a palavra "ilha", no texto assinado entre os dois países, é a Ilha Brasileira. Para o Uruguai, não.
A demarcação da fronteira, na prática, começou dois anos depois, por uma comissão mista integrada por representantes das duas nações. O trabalho foi iniciado no extremo leste da fronteira do Rio Grande, na foz do Arroio Chuí. Em 1860, a comissão uruguaia foi desativada. Mas os trabalhos de instalação dos marcos continuaram por parte dos brasileiros. Hoje, são 1.174, de diferentes tamanhos, ditando a soberania das terras entre a foz do Arroio Chuí, no extremo sul do Brasil, e o canal do Rio Uruguai, no oeste gaúcho. Um dos últimos foi instalado em janeiro de 1862, na ponta da Ilha Brasileira.
Conta na história oficial que, em 14 de março daquele ano, chegaram, na então Ilha de Quaraí (como era chamada a Ilha Brasileira), 20 carretas carregadas com peças de mármore. Um alferes do Império e 25 soldados acompanhavam o comboio que construiria o monumento. Aquele que, mais de um século depois, os pescadores chamariam de "marco sujo".
O local que é ponto de litígio internacional consta nos papéis diplomáticos como Marco 13-P. O Uruguai alega que o Brasil construiu a estrutura de forma unilateral, desrespeitando o acordo. É um problema de interpretação. Para o Brasil, a Ilha Brasileira está localizada na foz do Rio Quaraí, que delimita fronteira. Para os uruguaios, o território fica ao sul da foz, ou seja, já no Rio Uruguai, portanto, dentro de sua área de soberania.
Nos anos 1930, a tensão se agravou. Teve inicio no Uruguai um movimento liderado por geógrafos e historiadores que pleiteavam que o Brasil, um gigante de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, poderia ser mais condescendente com o minúsculo Uruguai, país 48 vezes menor, com 176 mil quilômetros de área.
Naquela época, Brasil e Argentina também estavam resolvendo arestas de fronteira. Tinham ratificado uma Convenção Complementar na qual havia palavras que soavam como provocação aos uruguaios: o texto citava a Ilha Brasileira como território brasileiro. Foi a gota d’água para as autoridades de Montevidéu, que emitiram nota de protesto em 8 de setembro de 1940, afirmando que os interesses do Uruguai não haviam sido considerados no tratado: "A Ilha Brasileira se encontra localizada ao sul da desembocadura do Cuareim (Quaraí), em pleno Rio Uruguai", dizia o texto reclamatório.
Na nota, a chancelaria uruguaia também considerava que o território não havia sido demarcado, "já que o monumento no extremo sul da ilha foi construído em 1862 pelo Brasil unilateralmente". A rixa chegou ao auge em 1974, quando o governo uruguaio do ditador Juan María Bordaberry baixou um decreto determinando que todos os mapas oficiais do país passassem a assinalar a Ilha Brasileira como "limite contestado".
Para o Brasil, não há conversa: a ilha de 200 hectares, como o próprio nome diz, pertence ao país. Em 1985, o então presidente, José Sarney, ao visitar Montevidéu, foi alvo de um protesto de parlamentares uruguaios que gritaram slogans reclamando a soberania sobre a Isla Brasileña. Sarney, segundo testemunhas, ficou estupefato com a inesperada reivindicação da qual nada sabia.
A fronteira de carne e osso
Chegamos à ilha no barco a motor de Jairo Daniel da Rosa, 48 anos, neto do seu Zeca, em uma ensolarada manhã, após uma viagem de 20 minutos desde um terreno próximo à Ponte Internacional, entre Barra do Quaraí (Brasil) e Bella Unión (Uruguai). Os mosquitos atacam. Uma trilha de 400 metros entre árvores nativas conduz até o que sobrou da residência de seu único morador. Seu Zeca, morto em 2011, é reverenciado como o último guardião da ilha. A depender de pescadores e ambientalistas, nem marco fronteiriço seria necessário. Seu Zeca, nas quatro décadas em que ali morou, era a "fronteira de carne e osso".
Neto de inglês com avó índia, Zeca nasceu em Venâncio Aires e tomou gosto pela construção de barcos desde pequeno, no estaleiro que o seu pai mantinha nos fundos de casa. Foi essa profissão que o levou para perto da Ilha Brasileira quando trabalhou para o ex-presidente João Goulart.
– Em São Borja, construí barcos para Jango. Quando ele perdeu o cargo, perdi o emprego – dizia.
Depois do golpe militar de 1964, Zeca, a mulher e três filhos foram para a Ilha Brasileira. O que o atraiu foi a movimentação das balsas carregadas de madeiras que cruzavam para a Argentina e Uruguai. Ele foi balseiro e construtor naval. Era época do ciclo da exploração da madeira.
– As balsas chegavam, era preciso esperar um ou dois meses para liberar a documentação. Faziam casa aqui, seguiam trabalhando, às vezes ficava a família. Terminaram as balsas, meu avô ficou – conta Jairo.
Zeca plantava feijão, mandioca e verduras. Não tinha energia elétrica. Uma vez por semana, remava até o centro de Barra do Quaraí para fazer compras. Jairo se mudou para a ilha aos seis meses. Da infância no local, recorda as enchentes, as queimadas e as visitas de capivaras, cervos, tatus e lontras, que chegavam na porta da casa de dois cômodos.
– À noite, era um breu – descreve.
Jairo acompanhou o avô na ilha até seus últimos dias, quando, convencido pelos filhos e com a saúde precária, Zeca mudou-se para Uruguaiana, onde morreu aos 93 anos. Sua história inspirou a criação da ONG Atelier Saladero, que busca preservar a mata nativa, com exemplares que já não existem no continente devido ao avanço das lavouras de arroz.
– Procuramos mostrar que a ilha é um santuário ecológico – diz Argemiro, coordenador da ONG.
Em 2009, um incêndio destruiu quase 40% da vegetação da ilha. A ONG resolveu fazer um levantamento do que restou. Foram catalogadas cerca de cem espécies que praticamente desapareceram do continente. Participaram do trabalho biólogos brasileiros, uruguaios e argentinos. A lista foi enviada ao governo gaúcho, que, à época, mandou 10 mil mudas de árvores nativas para reflorestamento.
Ainda que disputada nos salões da diplomacia, a ilha é administrada pela prefeitura de Barra do Quaraí. O sonho dos integrantes da ONG é tornar o local ponto de referência para a cultura dos três países – é o único lugar, além da Tríplice Fronteira na região de Foz do Iguaçu, onde Brasil, Uruguai e Argentina ficam frente a frente. Por iniciativa dos membros da organização, foi formado o movimento Transnacional de ONGs.
– Queremos que seja uma ilha de união dos povos, e aqui teríamos o maior orgulho de hastear as três bandeiras. Uma ilha como espaço transnacional. Seja de pesquisa, ensino, extensão, incentivo ao desenvolvimento ambiental e cultural – diz Argemiro.
Mas e quanto à disputa territorial?
– Há a contestação, é fato, mas eu considero uma contestação diplomática, considero platônica, porque a ilha é brasileira e nunca vai deixar de ser brasileira. Isso é incontestável. Não tem como a ilha ser uruguaia. Os uruguaios podem contestar, mas ela nunca vai deixar de ser brasileira – define.
Jairo, o neto do seu Zeca, complementa:
– Isso é uma coisa sem fundamento, tem vários registros. A história mesmo já diz que a ilha sempre foi brasileira. Coisa que não tem pé nem cabeça.
Apesar das rusgas e notas diplomáticas, Brasil e Uruguai nunca foram às vias de fato por causa da ilha.
A lenda do brasão perdido
Deixamos a ilha e cruzamos para o lado uruguaio. O caudaloso Uruguai está em dia calmo. A viagem seria tranquila, não fossem as redes de pescadores que engrenam no motor. No Parque Rincón de Franquia, somos recebidos por Gustavo Centomo, da ONG Grupama, e pelo guarda-parque Alejandro Mendoza. As boas-vindas são com sorrisos. Até avistarmos uma placa de sinalização com um mapa. Nele, como manda o decreto do governo uruguaio, a Ilha Brasileira aparece como "área contestada".
– Me dá coceira ver esse mapa – brinca Argemiro.
– Ah! Isso é tema da diplomacia, problema de Estado. No Uruguai, há vários limites contestados com Brasil – apressa-se em explicar Centomo, referindo-se à Vila Albornoz.
O uruguaio evita o tom belicoso. Prefere a política da boa vizinhança:
– Dizemos que (a ilha) também pertence a nós. É parte nossa. Mas estamos dispostos sempre a abrir as portas. Por causa desse tema, não vamos ser do contra. Somos irmãos, tanto com Brasil quanto Argentina. Por um pedacinho de terra não vamos brigar.
Da costa, é possível avistar o marco fronteiriço na ilha. Há cerca de 20 anos, um dos blocos de pedras, pesando mais de meia tonelada, caiu do topo do monumento. Em 15 de dezembro de 2013, os membros da ONG, usando instrumentos rudimentares, recolocaram-no em seu devido lugar. Mas deram falta do brasão imperial que, dizem, havia no bloco assinalando a posse brasileira. Mendoza, o guarda-parque, lembra de ter conhecido o tal escudo.
– Era lindo, de bronze – rememora.
Os uruguaios dizem que não sabem onde está. De tempos em tempos, um causo ressurge entre os ambientalistas, pescadores e guarda-parques. Lenda ou não, o boato é de que a relíquia foi vista enfeitando a lareira de um fazendeiro uruguaio em Artigas, município que fica a 140 quilômetros dali. Há quem garanta até saber o endereço. O assunto causa polêmica, e decidimos ir embora. Não sem antes uma provocação. Centomo conta que, até poucos anos atrás, havia ali, às margens do rio, um mirante de madeira.
– Dali, podíamos observar bem a nossa Ilha Brasileira – afirma, ressaltando o "nossa".
Procurada por ZH, a cônsul-geral do Uruguai em Porto Alegre Liliana Buonomo explicou que o tema está relacionado a "questões de soberania", que são atendidas pelo Ministério das Relações Exteriores do país vizinho. A representação encaminhou pedido de entrevista à chancelaria, em Montevidéu, mas não houve retorno. Já o Ministério das Relações Exteriores do Brasil reiterou, por meio de nota, que os limites entre o Brasil e o Uruguai foram definidos em tratados desde 1851: "Foram celebrados acordos em 1852, 1853, 1909, 1913 e 2005 com o único propósito de melhor definir a fronteira (...) na qual foram plantados 1.174 marcos". E destaca: "Não há qualquer disputa entre Brasil e Uruguai a respeito das fronteiras. A posição oficial do governo brasileiro tem sido a de sublinhar que não cabem interpretações das disposições do Tratado de 1851, que fixou definitivamente as nossas fronteiras com o país vizinho". O Itamaraty explica ainda que os mapas oficiais brasileiros, elaborados pelo IBGE, pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) e pela Divisão de Serviços Geográficos do Exército Brasileiro registram, "com acerto", essas áreas como território nacional.