Sargento reformado do Exército, Francisco Machado Ricardo de Ávila avistou certo dia militares uruguaios, com armas em punho, a bordo de um veículo perto da linha imaginária que delimita a fronteira entre Brasil e Uruguai no lugarejo de Vila Thomaz Vares Albornoz. Encheu-se de brio ufanista, como quem antevê uma ameaça à soberania brasileira. Foi até lá. Ao chegar perto da patrulha, reconheceu o rosto do militar uruguaio, seu companheiro de missão da ONU no Haiti. Iniciaram uma animada conversa.
É assim, entre semblantes de desconfiança e camaradagem, que moradores brasileiros da Vila Albornoz convivem com os habitantes da uruguaia Masoller. Apesar dos marcos posicionados na metade do século 19, a estrada de chão serpenteia entre um país e outro, desconhecendo a fronteira.
– Os marcos são colocados em linha reta, e nossa estrada é curva. Uma hora tu estás dentro do Brasil, outra hora, dentro do Uruguai. Parece uma cobra – compara Ávila.
Para os brasileiros, não há dúvida: Albornoz é Brasil, pertence ao município de Santana do Livramento, cujo centro fica a 74 quilômetros de viagem em uma estrada pedregosa. Para os uruguaios, a pequena vila de pouco mais de 120 moradores é parte do que eles chamam de Rincón de Artigas, reivindicado pelo governo uruguaio. Nos mapas impressos de escolas e repartições públicas de Masoller, a área aparece como "território contestado". O Google Maps também não resolve a questão: se você fizer uma pesquisa, verá apenas uma linha pontilhada no mapa, em forma de triângulo invertido, indicando uma zona de disputa internacional.
Maior do que a Ilha Brasileira, a região à qual os uruguaios se referem como Rincón de Artigas tem 237 quilômetros quadrados de extensão. Pode parecer pouco diante da imensidão territorial do Brasil, um gigante de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, mas a área reinvindicada pelos vizinhos é maior inclusive do que a capital Montevidéu, que tem 201 quilômetros quadrados. Em 1934, os uruguaios endossaram a suposição de que o marco 49-I, em frente a Masoller, estaria mal colocado. A comissão binacional que delineou a fronteira teria seguido o braço errado de um curso d'água, dando 22 mil hectares a mais para os brasileiros. Desde então, a chancelaria vizinha reclama para o Uruguai a área administrada pela prefeitura de Livramento. A partir de 1974, os mapas uruguaios indicam esse território como "limite contestado" e consideram que pertence ao Departamento de Artigas.
Mediante notas de protesto enviadas ao Itamaraty, o Uruguai exige que seja revisada a posição para o Arroyo de la Invernada (Arroio Invernada), que foi considerado limítrofe pelo tratado de 1851. O Brasil considera que o território lhe pertence legalmente e ignora as reclamações uruguaias, considerando que não há nenhum litígio pendente entre ambos, não aceitando realizar conversações a respeito.
A vila nasceu do desejo da família Albornoz de manter os trabalhadores da fazenda em território brasileiro próximo à sede. Doou terras para os peões e suas famílias nas proximidades dos marcos fronteiriços. A medida teve apoio do governo brasileiro de João Figueiredo, como forma de manter o território sob domínio do Brasil. Uma placa em bronze próxima a uma caixa d'água marca a inauguração: "Março de 1985", com os nomes do último presidente da ditadura militar, do governador do Estado à época, Jair Soares, e do prefeito Guilherme Costa.
No mesmo ano, o Uruguai protestou contra a construção da aldeia. Em 17 de agosto 1988, o país vizinho enviou novamente uma nota ao governo do Brasil, que respondeu em 4 de dezembro 1989, mantendo sua posição de não fazer mudanças com respeito ao limite.
Natural de Santana do Livramento, o estancieiro Fábio Cabral carrega na história pessoal um pouco dessa confusa relação entre os dois países: é casado com Ana Paula, filha de uma das fundadoras da vila, a fazendeira Regina Helena Albornoz. Na manhã em que ZH esteve na estância Madraga, sede da fazenda, o local estava sem luz havia 24 horas. Cabral desconfiava de que um animal voador tivesse se chocado contra as linhas de transmissão. Reclamara por telefone a presença de uma equipe da RGE Sul, mas ninguém havia aparecido. Em pouco tempo, sem energia para abastecer os motores do poço artesiano, também faltaria água. O sinal de telefone celular brasileiro é fraco. O da companhia uruguaia, pelo qual o estancieiro reclamou equipes de assistência, é seu principal contato com o mundo. Uma amostra de que brasileiros e uruguaios compartilham serviços de ambos os países.
– A gente é fronteiriço. Esse litígio de área é só em Brasília e Montevidéu – diz Cabral.
A cinco quilômetros da sede da estância, Vila Albornoz parece uma vila fantasma. Não há nenhum morador nas duas ruelas que confundem o visitante. Há casas com janelas e portas fechadas às 10h da manhã. Na pequena venda, onde uma bandeira brasileira aos frangalhos tremula pelo vento pampiano, esperamos 10 minutos sem que aparecesse algum comerciante. Portas abertas, como um típico lugarejo do Interior daqueles em que moradores não temem assaltos. Se houver um crime – o mais comum é abigeato –, a única coisa a fazer é recorrer à Comissaría de Policia de Masoller, já que, do lado brasileiro, a Brigada Militar (BM) aparece a cada 15 dias, segundo moradores.
Duas pátrias, dois irmãos
A ausência do Estado só não é total por conta da pequena Escola Municipal Bento Gonçalves, onde Luana Neira Silva, 22 anos, resiste como única professora desde julho do ano passado.
– Quando cheguei aqui, levei um susto, porque fazia seis meses que a escola estava fechada. Não tinha professor. É difícil querer morar na zona rural, é difícil querer ficar. A assistência é mínima – afirma, enquanto se divide para atender aos alunos de séries e idades diferentes na mesma sala.
Com 23 estudantes, Luana leciona do jardim ao quinto ano no Ensino Fundamental. Mora na própria escola, onde Ávila, o sargento reformado, atua como segurança. Ensina o português, mas está habituada ao portunhol dos estudantes. Além do convívio com os moradores, que compram produtos mais baratos do lado uruguaio, as famílias de Albornoz buscam atendimento médico no posto de saúde do outro lado.
– Sei que eles (os governos) brigam, que é uma zona de litígio, mas vejo que seria uma boa se o Brasil entregasse a área para o Uruguai. Porque o Uruguai dá maior atenção do que o Brasil. Estamos muito longe de tudo. As pessoas não têm assistência, tanto que os alunos chegam ao nono ano do Ensino Fundamental e não estudam mais – lamenta Luana.
Ávila, que se orgulha de ser "gaúcho e brasileiro", conversa à frente de uma cisterna onde os letreiros anunciam: "Exército Brasileiro. Braço forte, mão amiga".
– Não existe isso (disputa territorial) aqui. É tudo na amizade, na brincadeira. Uma hora estamos no Uruguai e, daqui a pouco, no Brasil. Para nós, são duas pátrias, dois irmãos – ele diz.
Do lado uruguaio, a camaradagem é a mesma. Mas a infraestrutura e os serviços são melhores. A poucos metros da escola onde Luana é a única professora, há dois colégios, um deles o Liceu Rural de Masoller, com Ensino Superior. Nos mapas da biblioteca e nos livros pedagógicos, a área de fronteira aparece, como manda a lei uruguaia, como "limite contestado", história que é ensinada aos estudantes no terceiro ano. Professor de Geografia, Nestor Bustamante, 27 anos, explica de forma enfática a divergência histórica aos alunos:
– Tomando o tratado de limites, esse território pertence ao Uruguai.
Um dos alunos, o brasileiro Guilherme Cardinal dos Santos, 13 anos, não reconhece fronteiras. Está acostumado a conviver com amigos das duas nacionalidades e sua fala tímida alterna português, espanhol e, na maior parte das vezes, o portunhol.
– Não sei (se é Brasil ou Uruguai), ando junto com todos eles aqui. Todo mundo fala portunhol – diz Guilherme.
Ao lado do jovem, o professor Bustamante arrisca uma brincadeira:
– Para recuperar o território, teríamos de ir às armas com o Brasil. – A saída seria um enfrentamento bélico – diz, para em seguida recuar:
– Não, não. Ainda mais com Brasil... Sempre mantemos uma relação de paz. Creio que não seria uma saída.