Único governador negro eleito da história do Rio Grande do Sul, Alceu de Deus Collares morreu às 2h40min desta terça-feira (24), aos 97 anos.
Vítima de pneumonia, ele estava internado desde segunda-feira (16) no Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre, que emitiu boletim médico na manhã desta terça informando o falecimento por "falência múltipla de órgãos" (leia a íntegra abaixo). Há oito anos, o ex-governador foi diagnosticado com enfisema pulmonar.
Collares deixa a mulher, Neuza Canabarro, os dois filhos — Antônio e Adriana —, a enteada Celina Carvalho e uma biografia marcada pela autenticidade.
O ex-governador será velado na quarta-feira (25), a partir das 11h, no Salão Negrinho do Pastoreio, no Palácio Piratini. Já o sepultamento ocorrerá no final da tarde no Cemitério Jardim da Paz.
Natural de Bagé, onde cresceu vendendo laranjas, Collares conservou a fama de falar como se discursasse: acentuando palavras com gestos largos, intercalando máximas com declamações de poesia gaudéria.
O poema mais repetido era dele mesmo, composto em 1977. Naquele ano, Collares gozava o posto de deputado federal mais votado do Estado — já havia sido vereador de Porto Alegre, mas antes fora centromédio do Guarany de Bagé, além de carteiro e telegrafista concursado. Intitulado O Voto e o Pão, o poema invocava ritmo de marcha. Collares repetia o estribilho "O voto é tua única arma/ Põe o teu voto na mão/ O voto é tua única arma/ Põe o teu voto na mão" e pavimentava a trajetória de líder popular.
Leia a íntegra do boletim médico
"HOSPITAL MÃE DE DEUS
Boletim Médico
O Hospital Mãe de Deus comunica com pesar o falecimento do ex-governador Alceu de Deus Collares nesta terça-feira (24), às 2h40min, em decorrência de falência múltipla de órgãos. Aos 97 anos, ele havia sido internado no dia 16 de dezembro.
Consternados, expressamos nossas condolências à família e amigos, compartilhando a dor pela perda.
Porto Alegre, 24/12/2024.
Dr. Daniel Souto Silveira - Coordenador do Serviço de Cardiologia
Dr. Euler Manenti - Diretor Médico"
Plano de governo arquitetado em motel
Após três mandatos na Câmara Federal, virou prefeito da Capital em 1985, na primeira eleição direta desde o golpe militar. Na mesma época, conheceu Neuza — uma professora 18 anos mais jovem, repleta de ideias para alavancar a educação do Estado. Os dois se apaixonaram e o prefeito divorciou-se da mãe de seus filhos, Antônia (morta em 2011), em uma separação conturbada.
Quando se elegeu governador, em 1990, Collares nomeou a novata primeira-dama como secretária da Educação. Tudo parecia bem — naqueles tempos, segundo ele, planos de governo eram arquitetados com Neuza em motéis —, mas a boa fase esbarrou na fúria da oposição.
Neuza figurou no centro de controvérsias: o calendário rotativo nas escolas, a reforma na ala residencial do Palácio Piratini, uma série de medidas foi apedrejada pelo PT. Por outro lado, Collares e a mulher eram festejados pela implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) — escolas de turno integral idealizadas por Leonel Brizola (1922-2004), ídolo de Collares e colega de partido desde o antigo PTB, que originou o PDT.
O desgaste no governo foi tanto que Collares desistiu de concorrer ao Senado em 1994. Voltou à Câmara com a pior votação de 1998, se reelegeu em 2002 e, mantendo a promessa de sempre apoiar a esquerda, aliou-se ao PT de Lula e Dilma Rousseff nos últimos anos. Logo o PT, que um dia fora seu maior adversário. Ainda assim, um partido de esquerda.
As facetas
VIDA E MORTE
Isso é coisa para morto, parece um memorial. Estou bem vivinho. Não quero ser nome de rua ou de escola. Quero ser reconhecido enquanto estiver vivo.
Afirmação de Collares ao comentar sobre os troféus, diplomas, fotos e medalhas que a mulher, Neuza, organizou em seu escritório na Capital.
O ORGULHO
Como governador, Collares pôde se orgulhar da implantação dos Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps. Nessas escolas de turno integral, as crianças tinham aulas de modo formal e informal, em bibliotecas, laboratórios, refeitórios, áreas de lazer e de esporte. O aluno entrava às 7h, recebia cinco refeições durante o dia e saía às 17h, de banho tomado.
O INFERNO ASTRAL
Collares sofreu seu maior desgaste político durante a CPI da Propina, instalada em outubro de 1993, em seu governo. A comissão investigou acusações de um empresário que afirmou ter pago propina para conseguir liberação do pagamento de obras do Estado realizadas por sua empreiteira. O relatório responsabilizou 37 pessoas e 19 empresas por corrupção.
O INÍCIO
Alceu Collares nasceu em 7 de setembro de 1927, mas seu pai — um descarregador de carvão casado com uma índia charrua — demorou para registrá-lo em Bagé. Na identidade, a data de nascimento sempre foi 12 de setembro.
João, o pai do ex-governador, foi entregue a uma madrinha quando ainda era bebê. Quando a mulher foi registrá-lo no cartório, não sabia o sobrenome do menino. O escrivão, então, sugeriu o dele próprio: Collares.
O HUMORISTA
Comigo não tem grê-grê para dizer Gregório.
Frase frequente de Collares sobre sua característica de dizer o que pensava.
Tira esse olho gordo de mim! Saravá!
Resposta ao deputado federal Vieira da Cunha, colega de partido, que chamara Collares para discursar ressaltando seu vigor aos 79 anos, em 2006.
"Samaritano demais" e "meigo" foram adjetivos que usou para qualificar Olívio Dutra e Germano Rigotto, respectivamente, sucessores no Piratini.
O POLÊMICO
Embora a liderança de Brizola seja grande, o trabalhismo é maior que o brizolismo. Alberto Pasqualini (idealizador da doutrina trabalhista) dizia que um partido não deve ficar na dependência de um líder, por mais carismático que seja.
Em 2003, Collares enfrentou o comando histórico de Brizola, que mandava no PDT desde sua fundação:
Com todo respeito aos adversários, sou melhor que todos aqui.
Deixando a modéstia de lado, em um debate na eleição de 2006, quando tentou retornar ao governo do Estado.
Trajetória política
1960
- Aos 33 anos, forma-se em Direito pela UFRGS
1964
- Elege-se vereador de Porto Alegre pelo PTB
1970, 1974 e 1978
- Deputado federal mais votado do MDB gaúcho
1985
- Eleito prefeito de Porto Alegre, pelo PDT
1991 a 1994
- Governador do Estado
1998 e 2002
- Eleito deputado federal
O poeta
- Poema de Alceu Collares escrito em 1977. Ele o declamava sempre que podia:
O Voto e o Pão
Mandam no teu destino
Mas ele é teu, meu irmão
Ergue teus braços finos
E acaba com a exploração
Faz a tua revolução!
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
Tua casa está caindo
Pouca comida tem no fogão
Tua mulher está mal vestida
Teu filho de pé no chão
Faz a tua revolução!
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
Escravismo, feudalismo, capitalismo
Socialismo, tudo em vão
Vai milênio, vem milênio
E continuas na escravidão
Faz a tua revolução!
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
Cristianismo, judaísmo, hinduísmo
Todos querem a tua salvação
Tu rezas noite e dia
Ninguém ouve a tua oração
Faz a tua revolução!
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
Construíste, com teu trabalho
Toda a riqueza desta nação
Por justiça, tens o direito
Vá pegar o teu quinhão
Faz a tua revolução!
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
A liberdade é o pão do espírito
Do corpo, a liberdade é o pão
Desperta pra luta, amigo
Faz a tua revolução!
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão
O voto é tua única arma
Põe o teu voto na mão