Se tivesse nascido nos Estados Unidos, talvez Alceu Collares fosse cantor de jazz, com aquele vozeirão inconfundível. Ou ativista dos direitos humanos, como Martin Luther King. Mas Collares nasceu em Bagé, na Campanha gelada do sul do Brasil, e foi um Luther King à moda do Pampa gaúcho, sem desfecho trágico. Defendeu os direitos dos trabalhadores e mostrou aos negros que não deveriam baixar a cabeça.
— Se o negão aqui conseguiu, vocês também conseguem — dizia para quem reclamava da falta de oportunidades.
Collares sorveu da vida tudo o que lhe foi permitido e morreu nesta terça-feira (24), aos 97 anos, amado pela família, admirado pelos eleitores e respeitado pelos adversários. Vítima de pneumonia, ele estava internado desde segunda-feira (16) no Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre. Há oito anos, havia sido diagnosticado com enfisema pulmonar.
De vendedor de laranjas a governador do Estado, foi o primeiro prefeito eleito de Porto Alegre depois da ditadura, em 1985. Antes combateu na trincheira do MDB, porque o bipartidarismo só permitia a existência de um partido do governo e outro de oposição. Como deputado federal, Collares foi uma das vozes mais ouvidas do trabalhismo na Câmara. Discípulo de Leonel Brizola. Tentou trazer para o Rio Grande do Sul a experiência dos Cieps por acreditar que só a educação garante um futuro próspero e por entender que a escola de tempo integral era a forma de qualificar a educação no Estado.
Para a Secretaria da Educação Collares escolheu a então primeira-dama Neuza Canabarro. Dizia que era ela a pessoa em quem mais confiava. Juntos, os dois tentaram implantar uma novidade para a qual o Estado não estava preparado —o calendário rotativo. Sem apoio do Cpers, o Sindicato dos Professores, e sem tempo para convencer as famílias da novidade, o calendário rotativo foi uma fonte de desgaste para o casal. Collares e Neuza também sofreram com uma CPI em que foram massacrados pelos deputados do PT — uma das poucas mágoas que Collares carregou pelos anos seguintes.
Seu governo (1991-1994) foi marcado pelo protagonismo de Neuza, a quem Collares definia como “a mulher que manda no Rio Grande” e para quem fazia recorrentes declarações de amor. Dizia que um dos seus tangos preferidos era Qué tarde que has venido e acrescentava:
— Antes tarde, do que nunca.
No retorno de uma viagem oficial ao Japão, enquanto esperavam a conexão para Porto Alegre, Collares puxou Neuza para dançar em pleno aeroporto de Guarulhos.
No Piratini e nas viagens ao Interior, Collares era brincalhão. Não perdia a oportunidade de declamar seu poema O voto e o pão, hábito que conservou mesmo depois de deixar a vida pública. Em casa, limpava a garganta e recitava todos os versos com ênfase no refrão “o voto é tua única arma, bota o teu voto na mão”.
Leia a íntegra do boletim médico
"HOSPITAL MÃE DE DEUS
Boletim Médico
O Hospital Mãe de Deus comunica com pesar o falecimento do ex-governador Alceu de Deus Collares nesta terça-feira (24), às 2h40min, em decorrência de falência múltipla de órgãos. Aos 97 anos, ele havia sido internado no dia 16 de dezembro.
Consternados, expressamos nossas condolências à família e amigos, compartilhando a dor pela perda.
Porto Alegre, 24/12/2024.
Dr. Daniel Souto Silveira - Coordenador do Serviço de Cardiologia
Dr. Euler Manenti - Diretor Médico"
Neuza, um amor de quatro décadas
Quando Collares se separou da primeira esposa, dona Antônia, e começou a namorar a professora Neuza Canabarro, 18 anos mais jovem, os amigos não levaram fé. Acreditavam que se tratava de uma paixonite de homem maduro. Neuza foi chamada de carreirista e de outros adjetivos nada elogiosos, mas manteve a cabeça erguida e ficou ao lado de Collares por quase quatro décadas, sempre zelando pelo bem-estar dele.
Quando Neuza foi diagnosticada com um câncer de intestino e precisou fazer uma cirurgia, cuidou de deixar instruções escritas para o caso de morrer. Collares entrou em depressão. Disse que ela não poderia morrer antes dele, porque não sobreviveria sem ela.
— Estou muito abalada, mas com o sentimento do dever cumprido, consegui realizar o último sonho dele — disse Neuza à coluna, sem revelar que sonho foi esse.
Os dois passaram os últimos anos juntos, na casa da Zona Sul, onde ele recebia amigos e companheiros do PDT. Com dificuldade de locomoção, dependendo de uma cadeira de rodas, ele não podia mais frequentar os tradicionais encontros de ex-governadores. Então, os colegas passaram a se reunir na casa dele e de Neuza, onde passavam tardes memoráveis, contando histórias e lembrando de fatos do passado. Ninguém diria que um dia foram adversários, tal era o clima de camaradagem desses encontros. Em um dos últimos, em abril deste ano, estiveram Jair Soares (PP), Pedro Simon (MDB), Olívio Dutra (PT), Germano Rigotto (MDB), Yeda Crusius (à época no PSDB), Tarso Genro (PT) e José Ivo Sartori (MDB).