Munido de uma pá de corte e uma marreta, o pesquisador, pós-doutorando em História e irmão marista Édison Hüttner sabia que enfrentaria o frio daquela tarde, em 26 de julho de 2013, para desenterrar parte da história do Rio Grande Sul, esquecida dentro de uma gruta na praça central de Camaquã, a 130 quilômetros de Porto Alegre.
Autorizado pela prefeitura, desmanchou a pancadas a cobertura de cimento presa à peça de metal escondida no fundo da cavidade – motivo da operação manual, cuja movimentação atraiu os olhares curiosos da população. O suor escorrendo pelas têmporas do pesquisador não vinha do esforço dele para abrir o buraco, mas do nervosismo de, a cada nova pá de terra, ter mais certeza de estar diante de uma relíquia secular. Uma bola de cimento no fundo do buraco a firmava dentro da gruta. Depois de quatro horas de trabalho árduo ao lado de um funcionário da prefeitura, foi surpreendido pelo próprio achado: a cruz que aparentemente tinha cerca de um metro de altura, na verdade, era de 2m24cm, pesava 26 quilos e guardava indícios de ser a mesma que ocupou o campanário da Igreja de São Miguel das Missões, edificada no século 18.
Coberta pela fuligem da queima das velas ao longo dos anos, a cruz de aço estava quase invisível. Menos para o olhar atento de Hüttner. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Arte Sacra Jesuítico-Guarani da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o pesquisador é conhecido nos meios acadêmico e religioso pela dedicação ao localizar e buscar a identificação de peças históricas e raras. Em 2010, ao passar em frente à gruta numa das idas a Camaquã, cidade natal e onde mora parte de sua família, teve o que acredita ser uma “ligação divina”.
— Quando vi aquela cruz lá dentro, pensei: “Ninguém faria uma dessas em Camaquã”. Ela era muito bem trabalhada. E meu olho já estava treinado — conta, satisfeito.
Dono de uma memória privilegiada, Hüttner jamais esqueceu a imagem. Quando concluiu outros estudos, em junho de 2013, voltou ao local com uma câmera fotográfica e uma fita métrica. Ao abaixar-se, visualizou no braço direito da cruz um símbolo do império espanhol: a marca SPHN cunhada no ferro. A suposta importância do artefato foi reforçada quando viu que a grafia era a mesma da época em que índios e jesuítas conviveram na região, entre os séculos 18 e 19. No mesmo dia, Hüttner e o irmão dele, o cirurgião bucomaxilofacial Éder, que costuma acompanhá-lo nas jornadas, solicitaram à prefeitura da cidade a liberação da pesquisa que levaria à escavação no mês seguinte.
Para comprovar a autenticidade e a importância histórica da cruz, o pesquisador recorreu a análises feitas em laboratório – que comprovaram a mesma identidade do ferro e do aço fundido na região das missões no período –, a imagens antigas (como uma litografia feita em 1846 pelo médico francês Alfred Demersay que mostrava a mesma cruz no alto da torre), a documentos jesuíticos codificados (guardados na Espanha e no arquivo secreto do Vaticano), e ao arquivo histórico de Porto Alegre (onde havia uma planta da Villa São João Batista de Camaquã, de 1857, mostrando o artefato no meio da praça). A descoberta foi informada e registrada no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a peça se tornou a mais importante do museu do município, por ser a única com mais de três séculos de existência.
— A cada nova identificação, tenho uma felicidade inexplicável. Nesse caso, tudo se encaixou tão perfeitamente, que não deixo de acreditar em algo divino sempre ajudando. Agora, ainda resta descobrir quem tirou a cruz de São Miguel das Missões e a levou para Camaquã. Tenho suspeitas muito fortes, mas sigo pesquisando — comenta, entusiasmado.
Tesouros submersos
Também exercendo a função de professor de Humanismo e Cultura Religiosa na PUCRS, Hüttner, hoje com 51 anos, percorre o Estado desde 2005 em busca de objetos religiosos que pertenceram às reduções dos padres jesuítas que vieram ao sul do continente, a partir do século 17, para catequizar os índios no Brasil, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai. Qualquer palavra ou símbolo encontrados nas relíquias auxilia o pesquisador a iniciar as conexões necessárias. Nesse período, pelo menos 15 tiveram a identificação confirmada após passarem pelas mãos do irmão marista, considerado um especialista no tema. Para cada uma das descobertas, produz um relatório com toda a prática desenvolvida do início ao fim da pesquisa. É uma espécie de diário de campo. Todos os detalhes são fundamentais para comprovações, ele diz. No caso da cruz da igreja de São Miguel, até a temperatura do dia foi relatada e serviu para ajudar na análise da amostra do metal no Laboratório Central de Microscopia e Microanálise da PUCRS. Apenas o diário dessa descoberta teve mais de 160 páginas escritas por Hüttner.
— Estou sempre anotando. Faz parte do trabalho e ajuda a organizar as gavetas da memória — ensina.
Bloco de anotações e caneta não faltam na inseparável maleta de couro, onde ele também carrega outros utensílios necessários para o início de uma pesquisa: câmera fotográfica, lupa, lanterna de mão, fita métrica, binóculo, canivete e paquímetro. Apesar de saber dirigir, prefere viajar de ônibus. Só anda de carro quando transporta alguma peça maior para ser analisada na Capital.
— Prefiro ir olhando a paisagem, lendo, pensando e observando as pessoas. O ônibus me dá a tranquilidade necessária — justifica.
A fala mansa e o bom humor são outras características do pesquisador. É comum que faça uma piada em meio à conversa. Entre os mais próximos, já foi comparado a personagens da literatura e do cinema, como o professor de iconografia religiosa e simbologia Robert Langdon, criado por Dan Brown para os romances O Código Da Vinci e Anjos e Demônios, entre outros. Ele nega qualquer semelhança, mas acha graça das comparações. Outro lembrado é o professor de arqueologia Indiana Jones, do filme homônimo dirigido por Steven Spielberg. O espírito aventureiro de Hüttner o levou a uma viagem de barco de três dias pela Laguna dos Patos para colocar um marco no meio e no fundo do espelho d’água – localizado por GPS. Acostumado a caminhar longas distâncias para um achado, ele inclusive pensa em fazer um curso de mergulho para levar as pesquisas também às profundezas dos rios gaúchos.
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— Era comum, em outros séculos, embarcações afundarem ou viajantes se desfazerem de peças nas longas viagens marítimas. Há documentos relatando esse tipo de situação. Calculo que há um mundo submerso a ser revelado — afirma, seguido de uma risada ao lembrar do herói do cinema.
— Essa conversa de aventura e algo a ser revelado lembra mesmo o Indiana Jones, né?
Pelo Interior, evangelizando
Ao longo de mais de 20 anos de andanças pelo Brasil como evangelizador e professor, Hüttner foi acumulando fontes que o levaram a novas pesquisas. A mais recente, que será revelada ao público neste final de semana, chegou a ele a partir da ligação telefônica da família Frizzo, de Santo Augusto, município do noroeste gaúcho, há seis meses. O engenheiro civil Eugênio, 64 anos, e a mulher dele, a farmacêutica Nara Maria Postay Frizzo, 57 anos, conheceram o trabalho do irmão marista por meio da imprensa e perceberam nele a chance de desvendar um mistério de mais de 150 anos.
Em 2013, Eugênio ganhou de um amigo do distrito de Pedro Paiva, interior do município, uma escultura de madeira que, segundo o ex-proprietário, estava com a família havia um século e meio.
— Mesmo machucada pelo tempo, faltando umas partes, a estátua me despertou interesse porque ela tinha traços diferentes. Providenciamos a restauração e compramos um oratório especialmente para ela, mas não sabíamos se era um São Pedro ou um São Paulo — conta Eugênio.
O engenheiro tentou descobrir a procedência da estátua. Em vão. Foi Nara quem ligou para o pesquisador e pediu a ajuda dele, no ano passado. Hüttner foi até Santo Ângelo, cidade próxima, onde encontrou os Frizzo e recebeu a imagem.
— Na hora, percebi que se tratava de um São Pedro missioneiro, porque a maior parte das esculturas da arte sacra jesuítico-guarani foi feita com encaixe de membros por meio de cravos de madeira, com os mantos finos e ondulados e as sandálias tipo romana, com um pé descoberto. Os tipos de barba, cabelo e bigode no estilo barroco missioneiro também confirmavam isso — explica.
Na Capital, o pesquisador comparou a imagem a outras produzidas no século 18, analisou cada detalhe da estátua, fez estudos de policromia e a submeteu a uma tomografia no Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (Incer), para certificar-se de que a imagem era maciça.
— É uma escultura sacra missioneira barroca, feita em cedro policromado no século 18, cujo autor ainda é desconhecido. Mas suspeito de que seja José Brasanelli, que esculpiu inúmeras imagens na redução de São Borja entre 1696 e 1706, ou de um discípulo dele — reforça Hüttner.
Padroeiro do Rio Grande do Sul, São Pedro é considerado o príncipe dos apóstolos e festejado pelos católicos em 29 de junho. A peça de mais de 300 anos ficará exposta na Biblioteca Central Irmão José Otão, na PUCRS, deste sábado até o dia 29. A família Frizzo promete visitá-la.
— Somos muito católicos, e é uma alegria saber que se trata de um São Pedro missioneiro — diz Nara.
O amigo do Papa
A conexão de Hüttner com as ruínas da antiga Redução de São Miguel começou por acaso, há 34 anos, durante uma excursão organizada pelo Colégio Marista São José, de Camaquã, onde ele cursava o Ensino Médio. Filho de agricultores, impressionou-se com a imponência da estrutura histórica que um ano antes havia sido reconhecida como patrimônio mundial pela Unesco. O jovem curioso, mesmo sem qualquer conhecimento científico, dedicou as horas da visita a analisar cada detalhe dos restos do prédio. Entre os objetos históricos, o sino foi o que mais o impactou.
— Antes de partir, voltei à varanda do museu para ver o sino grande. Ao sair, a imagem dele havia ficado gravada em minha lembrança. Fiquei imaginando ele repicando na torre — comenta.
Nos anos seguintes, concluiu a formação de irmão marista em comunidades de Viamão, Passo Fundo e Caxias do Sul. Depois, cursou a graduação em Teologia na PUCRS. Entre 1996 e 1997, viveu com os índios ticunas e kokamas, no Amazonas. Lá, se apaixonou pela cultura indígena e escreveu o livro A Igreja Católica e os Povos Indígenas do Brasil: Os Ticuna da Amazônia, publicação presente em mais de 30 universidades dos Estados Unidos.
No retorno a Porto Alegre, Hüttner concluiu o mestrado. O doutorado ele fez na Pontifícia Universidade Gregoriana, na Itália. Apesar do foco dos estudos serem os indígenas do Amazonas, ele nunca esqueceu o sino missioneiro. Passou a pesquisar sobre ele nas bibliotecas por onde passava. Duas décadas depois da primeira visita às Missões, o irmão marista regressou ao local. Dessa vez, queria saber qual o verdadeiro peso do artefato.
— Cada livro dava uma característica diferente para o sino, e não havia referências sobre procedimentos de pesagem ou análises do metal. Foi o que me motivou a pensar num plano de trabalho que respondesse estas lacunas históricas — sintetiza.
Autorizado pelo Iphan, o pesquisador reuniu uma equipe e seguiu rumo a São Miguel das Missões.
— Hoje, não sei se faria isso. Nem discuti muito. Pegamos o carro, colocamos as coisas dentro e fomos. Pensei: “Ou viramos herói, ou, se quebrarmos o sino, nos tornamos vândalos” — recorda o pesquisador, como sempre, entre gargalhadas.
No diário de campo de 26 páginas, Hüttner registrou cada detalhe do que considerou um dia mágico”. No trecho a seguir, ele descreve como foi realizada a pesagem do sino:
Com cuidado e sem pressa, vimos o melhor jeito de prender as tiras de náilon entre a cabeça do sino e a mão da retroescavadeira. Feitos os ajustes, depois de longos anos em silêncio, o sino foi finalmente erguido, e então ouvimos o reboar de seu mágico som. Momento único e especial, pois agora, além da imagem, o seu som ficou gravado em nossa memória. Por fim, tiramos amostras de dentro e de fora do sino e o pesamos. O sino foi conduzido por uma caçamba da prefeitura, passando pela cidade até uma balança de rodoviária de caminhão/Cotrisa. O ticket da balança, nº 154464, demonstrava, pela primeira vez, o peso exato do sino: 910 kg. (18-03-2006 – 15h05mim).
A convivência com os indígenas no Amazonas e a saga com o sino das Missões só confirmou a ele o que considera ter sido o “chamado divino”, ocorrido na excursão escolar. A partir daquele momento, o irmão marista se tornou um caçador da arte sacra jesuítico-guarani espalhada pelo Estado.
Sempre contando com a memória afiada, a curiosidade incessante e a fé inabalável, Hüttner desvenda novos achados e faz amizades importantes. Entre essas, está a do Papa Bento XVI, que o ajudou a abrir portas liberadas para poucos – as do Arquivo Secreto do Vaticano.
— Durante o período em que estudei na Itália, escrevi um místico com narrativas, poesias e orações. Enviei a obra ao papa Bento XVI. Para minha alegria, recebi uma carta dele como forma de agradecimento. Graças a ela, em 2011 fiquei dois meses no arquivo secreto do Vaticano para reforçar as minhas pesquisas. Foi muito importante encontrar documentos, relatos e livros antigos existentes somente naquele local — conta.
Todo os relatórios produzidos por Hüttner fazem parte do projeto do pós-doutorado em História, ainda em construção. Inquieto, o pesquisador tem novas metas para os próximos anos. Uma delas é encontrar instrumentos musicais produzidos no período em que os jesuítas estiveram no Rio Grande do Sul. A mais ousada exigirá dedicação quase exclusiva: começar um estudo nas igrejas de Porto Alegre para encontrar peças missioneiras perdidas.
Numa rápida visita à mais antiga igreja da Capital, a Nossa Senhora das Dores, cuja pedra fundamental é de 1807, o pesquisador suspeitou de pelo menos três estátuas e conversou com a museóloga da igreja, Caroline Zuchetti. Antes de voltar à antiga igreja, porém, tem outra missão.
— E essa, se eu conseguir confirmar, poderá mudar parte de uma história! — deixa escapar.
Sem entregar que pesquisa é essa, arregala os olhos e só diz que a peça a ser investigada pode ter vindo do continente africano. Pelo jeito, o próximo capítulo das aventuras de Hüttner já começou a ser escrito.
Por onde Hüttner andou
São Miguel das Missões
No histórico município missioneiro, foi confirmar as características do sino das ruínas de São Miguel.
Passo Fundo
Lá, identificou a procedência de dois anjos de pedra arenito que enfeitavam a gruta de uma escola frequentada pelo próprio Hüttner quando era estudante. Eles foram encaminhados ao acervo do Museu das Missões.
Santa Maria
Identificou o sino jesuíta mais antigo de que se tem notícia no Rio Grande do Sul, fabricado em 1684.
Santo Augusto
Foi chamado para classificar uma estátua de São Pedro e confirmar que ela tem características missioneiras.
Camaquã
Confirmou que a cruz da Praça de Cruz é, no município, é a mesma que fazia parte da torre da igreja de São Miguel das Missões, hoje em ruínas.
Panambi
Descobriu e confirmou a procedência de um manuscrito jesuíta (lunário) que pertence ao conjunto da tradição de fábrica de livros impressos e manuscritos da antiga Província Jesuítica do Paraguai (séculos 17 e 18). Contém a latitude e longitude das 30 Reduções Jesuíticas feitas por Buenaventura Suares (1740), tido como o primeiro astrônomo da Amérrica.
São Nicolau
Identificou uma estátua de São Nicolau, que havia sido roubada da Igreja Matriz da cidade na década de 1960 e que fora encontrada em Santa Maria.
Alegrete
Confirmou que imagens de Nossa Senhora da Conceição e de Santo Antônio que estão no Museu de História Natural do Centro de Pesquisa e Documentação de Alegrete (Cepal) pertencem ao conjunto de peças do Mosaico Jesuítico-Guarani da Província Jesuítica do Paraguai (séculos 17 e 18).
Caçapava do Sul
Confirmou que os sinos hoje usados na torre da Igreja Matriz estiveram na Província Jesuítica do Paraguai, no século 17.
São Jerônimo
Foi responsável por identificar e classificar uma imagem da Imaculada Conceição Missioneira datada do século 18.
Santa Maria
Identificou três estátuas missioneiras de Nossa Senhora da Soledad, de Santo Antônio e Nosso Senhor dos Passos.
Em cartaz
* A escultura de São Pedro está exposta na Biblioteca Central Irmão José Otão da PUCRS até 29 de junho.
* O horário de funcionamento da biblioteca é de segunda a sexta-feira, das 7h35min às 22h50min, e aos sábados, das 7h35min às 17h30min.
* Os visitantes precisam fazer um cadastro na recepção.