
A série Adolescência, da Netflix, vem suscitando reflexões sobre a influência das redes sociais sobre crianças e adolescentes, e os perigos disso na vida real. Se, por um lado, a tecnologia ampliou as conexões, permitindo que jovens com dificuldades para socializar façam amizades, de outro, o uso das plataformas sem supervisão expõe os adolescentes a conteúdos nocivos.
Em casos mais extremos, isso pode levar a situações graves, como a retratada na série. A história ficcional é protagonizada por Jamie, estudante de 13 anos que é acusado de matar uma colega. A trama é marcada por temas como autoestima, os perigos das redes sociais, misoginia e a cultura incel.
O assunto ganhou repercussão com a série, mas a comunidade incel atua há anos, e sua ligação com casos de violência extrema vem preocupando especialistas. Apesar de ser algo pouco conhecido pelos brasileiros, pais e educadores devem ficar atentos aos discursos de ódio nas redes sociais, segundo o psicanalista Lucas Liedke.
A forma como tudo isso está acontecendo é inédita para todo mundo. O machismo e a misoginia sempre existiram. Mas a forma como os adolescentes se conectam hoje é potencialmente destrutiva.
LUCAS LIEDKE
Psicanalista
— Os adultos precisam conseguir conversar com crianças e adolescentes sobre esses tabus, esses sofrimentos que são novos, de alguma forma. A forma como tudo isso está acontecendo é inédita para todo mundo. O machismo e a misoginia sempre existiram. Mas a forma como os adolescentes se conectam hoje é potencialmente destrutiva — afirma.
Com a polarização política e a facilidade de acesso ao conteúdo de influenciadores digitais e comunidades mal-intencionadas em plataformas como Reddit e Discord, os adolescentes ficam mais suscetíveis a esses riscos. Uma das principais vozes por trás desses grupos de "celibatários involuntários" (incels) é Andrew Tate.
Abertamente misógino, o influenciador britânico-americano citado no seriado contabiliza milhões de seguidores nas redes sociais. Em mensagens e vídeos, ele contribuiu para fortalecer discursos que apoiam a violência contra mulheres. Atualmente, Tate é alvo de investigação da polícia britânica por acusações de estupro e tráfico humano.
Discursos violentos
O caso retratado na série é extremo, mas algumas tragédias observadas na vida real foram alimentadas por grupos online, de onde emergem diversas formas de discriminação, como racismo e xenofobia. Os especialistas destacam que é preciso atuar antes que a situação se agrave e chegue nesse ponto fatídico, como os casos de ataques, atentados e massacres em escolas que têm sido registrados.
Mas, afinal, como figuras e ideias tão controversas são capazes de mobilizar as pessoas e propagar esses discursos? Segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, a resposta tem muitas camadas. Uma delas é a própria lógica dos algoritmos, que favorece mensagens radicais e não impede a circulação de discursos de ódio.
Aquilo que gera atenção é fomentado, seja para as pessoas concordarem radicalmente ou discordarem radicalmente. Com isso, as redes acabam simplificando e reduzindo assuntos complexos.
LUCAS LIEDKE
Psicanalista
— O que é mais extremo gera mais engajamento. Faz parte da economia da atenção, ou seja, aquilo que gera atenção é fomentado, seja para as pessoas concordarem radicalmente ou discordarem radicalmente. Com isso, as redes acabam simplificando e reduzindo assuntos complexos. Para os adolescentes, esse é um prato cheio para entrar em um estado de alienação — explica Liedke.
Isso porque na adolescência, muitas vezes, os jovens buscam nas redes sociais uma válvula de escape para aliviar suas angústias, sobretudo quando já têm problemas para lidar – seja algum sofrimento na escola, alguma questão emocional ou psicológica, como depressão ou ansiedade, afirma o psicanalista.
Bullying e violência nas escolas
Ao assistir a série, ficam evidentes os riscos dos ataques online entre adolescentes. O que começou como uma situação de bullying e ciberbullying escalonou tanto que resultou em um crime hediondo. Em dado momento, o protagonista revela que era atacado virtualmente pelos colegas, que publicavam emojis e mensagens depreciativas para provocá-lo, classificando-o como “incel”.
Frustrado com os ataques e com o sentimento de rejeição, ele encontrou nas ideologias masculinistas um lugar de conforto, de apoio e pertencimento entre iguais, destaca Liedke. A série também envolve exposição sexual de menores, com a circulação de imagens de nudez de uma das personagens, crime que ocorreu dentro da escola.
Quando a gente é adolescente, a gente precisa se sentir igual aos nossos pares. (...)Ao mesmo tempo em que preciso formar minha identidade e ser único, eu não suporto ser diferente.
CAROLINA LISBOA
Terapeuta cognitiva
Conforme a terapeuta cognitiva Carolina Lisboa, doutora em Psicologia do Desenvolvimento, o bullying acontece em todas as escolas. Por isso, o papel dos pais e educadores é fundamental para evitar que brincadeiras maldosas e ataques que parecem inofensivos, de início, tornem-se problemas graves.
— Começa sempre como uma brincadeira, geralmente sem a intenção de agredir. Aí, vai ganhando popularidade e, quando vemos, temos uma situação de violência ou de exclusão instaurada, em que todos os envolvidos não conseguem sair daquilo. É como se eles não soubessem outro script. A tecnologia não é a causa, mas atua junto — ressalta.
Ela destaca que, nos meios digitais, a desinibição online contribui para que o sujeito tenha menos empatia em relação ao outro, o que favorece aos ataques. E, na adolescência, os jovens sentem a constante necessidade de pertencer a algum grupo, pelo receio de ficarem isolados.
— Quando a gente é adolescente, a gente precisa se sentir igual aos nossos pares. Precisamos de um senso de pertencimento. Ao mesmo tempo em que preciso formar minha identidade e ser único, eu não suporto ser diferente. Para eles, ser diferente é o fim do mundo — explica.
Com isso, os jovens podem acabar se engajando em atividades e grupos que não são, necessariamente, adequados. Por isso, os pais e professores devem observar sinais de alerta a todo momento, segundo Carolina:
— Eles podem começar a ter choro, irritabilidade, o desempenho na escola pode cair, podem não querer mais ir na escola, por exemplo. As vítimas têm muito medo de falar. Caso percebam isso, os pais devem tentar ir à escola para ver se está tudo bem, pedir que os professores observem, procurar psicólogos especialistas.
Ela ressalta que poucas escolas contam com programas de combate ao bullying, mesmo com a lei que obriga que as instituições tomem medidas para fiscalizar e prevenir o problema. A pesquisadora afirma que é importante desenvolver iniciativas não somente para identificar e ajudar as vítimas, mas as turmas, como um todo, e os agressores, que também sofrem.