Postar uma foto, comunicar um acontecimento pessoal marcante ou compartilhar um momento têm sido prática natural para usuários de redes sociais como Instagram e Facebook. Mas será que tudo o que vivemos deve ser publicado nas plataformas?
O debate sobre o tema ganhou novo capítulo no início do mês, quando os influenciadores Maíra Cardi e Thiago Nigro utilizaram seus perfis para comunicar a interrupção da gravidez da ex-BBB. Em um vídeo publicado no TikTok na quinta-feira (2), o casal contou como descobriu a perda do bebê, mostrando desde a chegada ao hospital até a consulta médica em que foram comunicados que o coração do filho não tinha mais batimentos.
A exposição do ocorrido repercutiu e gerou comentários negativos aos influenciadores, acusados por alguns internautas de estarem "espetacularizando a dor". As críticas ganharam maior proporção no sábado (4), quando Thiago usou o Instagram para comunicar que a companheira havia sofrido um aborto espontâneo.
Na publicação, que foi posteriormente apagada, ele mostra o feto abortado. "Nessa noite, a Maíra expeliu. Tantas coisas passando na cabeça… já tinha bracinho, dedinho…”, escreveu.
O conteúdo sensível chocou usuários das redes sociais. Em comentários, eles opinaram que o casal teria ultrapassado os limites da exposição. "Publicar foto do feto de um aborto? Quando chega a esse nível a necessidade de tornar público uma tragédia pessoal, é porque se está começando a perder a noção moral", comentou um usuário do Twitter.
"É um absurdo postar imagens de um feto morto para ter likes. Passaram de todos os limites", disse outro. Mas, afinal, há limite para o que podemos ou não expor na internet?
Comportamentos que não são aceitos na vida offline, também não cabem à rede social.
SOFIA SEBBEN
Pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista no uso das redes sociais, a psicóloga Sofia Sebben acredita que sim, existem limites que devem ser impostos ao nível de exposição.
Tais fronteiras começam pelo respeito às diretrizes que regulam as plataformas digitais. São normas pré-estabelecidas pelas redes sociais com o intuito de coibir publicações que podem causar impactos negativos aos usuários, como conteúdos de caráter violento, de nudez ou que incitam discursos de ódio. Contudo, a psicóloga destaca que os limites da exposição não devem ficar restritos somente à política das plataformas:
— Para além daquilo que viola as diretrizes da rede social, não existe um limite que esteja dito e dado. Mas sabemos que somente essas regras não dão conta de tudo, sobretudo quanto ao que cada um decide compartilhar acerca da sua vida pessoal. Neste caso, deve prevalecer o bom senso.
Ela acrescenta que "comportamentos que não são aceitos na vida offline, também não cabem à rede social".
— Precisamos lembrar que as redes configuram um espaço público. Antes de compartilhar algo, vale perguntar: "Fora da internet, eu faria isso de forma pública?" — completa.
O que leva à superexposição?
Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do Núcleo de Pesquisas, Estudos e Intervenções em Saúde Mental, Cognição e Comportamento (Nepsi), Mateus Levandowski aponta a existência de uma "cultura da visibilidade", que incentiva todos a estarem sempre presentes, visíveis e relevantes no ambiente digital.
Dentro deste cenário, é natural que os usuários façam "curadorias" da própria vida em seus perfis nas redes sociais, que se tonaram espécies de diários virtuais compartilhados. Trata-se de uma prática comum e inicialmente inofensiva, mas que pode trazer consequências negativas diversas.
— É como se houvesse uma pressão para mantermos essa curadoria sempre atualizada, para postarmos de forma constante e expormos tudo que acontece na nossa vida. Isso tem potencial para causar muita ansiedade a algumas pessoas — diz o professor.
Muitas vezes, a superexposição também está ligada uma necessidade intensa de conquistar validação, aprovação e reconhecimento através das redes sociais.
MATEUS LEVANDOWSKI
Levandowski explica que, na ansiedade de atender à cobrança da atualização constante, pode ser difícil separar aquilo que deve ser tornado público e o que deve ser mantido em caráter privado:
— A ansiedade gerada por essa pressão pode ser grande a ponto de levar à imprudência, fazendo com que as pessoas pensem pouco e compartilhem aspectos das suas vidas de forma impulsiva. Muitas vezes, a superexposição também está ligada a uma necessidade intensa de conquistar validação, aprovação e reconhecimento através das redes sociais, o que mascara carências afetivas, sintomas de ansiedade e até de depressão.
A psicóloga Sofia Sebben observa que a pressão tende a incidir ainda mais fortemente sobre quem têm na exposição da vida privada um pilar de seu trabalho, como os influenciadores digitais. Nestes casos, pode ser ainda mais complexo avaliar e discernir sobre o que deve ou não ser mostrado.
Ainda assim, para a psicóloga, é preciso impor limites à exposição.
— Muitos influenciadores vivem de mostrar as suas rotinas e as suas intimidades. É quase como se estivessem em um Big Brother Brasil, mas na rede social. Porém, é importante que essa exposição seja feita com limites e, principalmente, com senso de responsabilidade sobre o que está sendo compartilhado. É uma forma de preservar tanto quem posta, quanto quem será exposto àquele conteúdo — diz a pesquisadora.
Alegrias e tristezas
Doutora em Psicologia e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a psicóloga Karen Szupszynski sublinha que a "curadoria" feita por meio das plataformas tende a privilegiar o compartilhamento de conquistas e momentos felizes, mas também pode incluir episódios de tristeza.
Com frequência, as redes sociais são utilizadas para compartilhar experiências de dor e de luto, tanto por influenciadores, a exemplo do casal Maíra Cardi e Thiago Nigro, quanto por pessoas anônimas. A prática não é necessariamente um problema, diz a psicóloga, mas precisa ser feita de forma ponderada.
A internet não deve ser o lugar onde as pessoas resolvem as suas questões emocionais e psicológicas.
KAREN SZUPSZYNSKI
Segundo ela, o risco da superexposição torna-se ainda maior em momentos de instabilidade emocional:
— É importante entender quais fatores estão motivando o ato de compartilhar um episódio de tristeza, porque a internet não deve ser o lugar onde as pessoas resolvem as suas questões emocionais e psicológicas. Quando o uso é feito com essa intenção, em um momento de vulnerabilidade, em que a pessoa não está sabendo regular as próprias emoções, é grande a chance de que a exposição ocorra de forma imprudente. Isso pode trazer consequências que vão deixá-la ainda mais vulnerável, e provavelmente não vão diminuir a dor que está sentindo.
Importância da educação digital
O debate sobre o nível de exposição deve incluir crianças e adolescentes, como enfatiza Camila Bolzan de Campos, doutora em Psicologia Social pela Universidade de Barcelona e coordenadora do curso de Psicologia da Universidade La Salle. Se para adultos a questão pode ser desafiadora, para quem está em processo de formação da personalidade e dos valores pessoais, o cenário tende a ser mais delicado.
— Além de estarmos falando de seres em formação, pesa a questão geracional. Há gerações que já nasceram em meio às redes sociais e que, por isso, podem enxergar de forma ainda mais tênue a linha entre o que é público e o que é privado, tendo dificuldades para estabelecer limites — diz a psicóloga.
Para Camila, é importante que pais e educadores estejam dispostos a orientar os jovens quanto ao uso das redes sociais. Isso implica em apontar o que deve e o que não pode ser compartilhado virtualmente e criar estratégias para evitar episódios de superexposição.
O entendimento é compartilhado por Levandowski, que exemplifica:
— Antigamente, as mães e os pais orientavam a não ficar até tarde na rua, a não aceitar bala de estranhos. Hoje, é preciso também ensinar os filhos a usar as redes sociais de forma consciente, porque elas são uma realidade do nosso tempo.