De uma hora para a outra, aquele adolescente que gostava de ir para a escola começa a matar aula. A criança que dava oi para todo mundo, agora, passa reto. O pré-adolescente que contava tudo sobre o seu dia para os pais se torna monossilábico. Mudanças súbitas de comportamento como essas podem ser sinais de um sofrimento profundo, que, com frequência, estão relacionados a casos de bullying e cyberbullying.
Foco de uma nova legislação sancionada em janeiro, essas violências têm como alvo pessoas em fase de desenvolvimento, o que pode tornar seus efeitos colaterais ainda mais complexos. As vítimas apresentam sintomas como ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático, que geram casos de automutilação, evasão escolar, transtornos de autoimagem, baixa autoestima e quadros de fobia social que podem perdurar ao longo da vida adulta.
No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, 37,6% dos diretores de escolas brasileiras respondentes disseram ter registrado algum caso de bullying em 2021. Em nível estadual, o Rio Grande do Sul figurou em quarto lugar no ranking, com quase metade (49,5%) das instituições relatando episódios desse tipo. Apesar do índice alto, o Estado ficou em uma colocação inferior no número de colégios com projetos de prevenção a essa violência – uma em cada quatro escolas não possuía iniciativas de combate ao bullying, o que deixou o RS na nona posição do levantamento.
Psicóloga, doutora em Psicologia do Desenvolvimento e terapeuta cognitiva, Carolina Lisboa trilhou sua trajetória profissional atendendo vítimas de bullying e cyberbullying. Em sua definição, a prática envolve uma violência sistemática entre pares, que pode ter caráter físico, relacional ou verbal, e acontece dia após dia – diferentemente de um conflito pontual, que não necessariamente se repetirá. Outra característica é a presença de um agressor com seguidores que replicarão as ofensas e ameaças. Como consequência, o alvo sofre uma exclusão social.
– Em geral, as vítimas têm muito medo de falar, então, temos que estar atentos aos sintomas. Dan Olweus, que começou a estudar bullying, falava que a criança dizer que não quer ir à escola é o nosso primeiro sinal de alerta. Ela pode dizer que está tudo bem, porque pode estar sendo ameaçada na escola pelo agressor, e isso é comum, não só no bullying, mas em todos os tipos de violência. Temos que estar atentos, porque quando a reação não é de estouros de raiva, tendemos a não enxergar, e a sintomatologia depressiva ou ansiosa pode ser muito silenciosa – alerta Carolina.
Os casos de bullying acontecem com mais frequência entre pré-adolescentes e adolescentes, que passam pelo momento do desenvolvimento da cognição social, estabelecida quase que totalmente, segundo a profissional, com base em comparações. Nesse processo, que ocorre dentro de uma cultura de valorização de corpos magros, por exemplo, e de preconceito contra a população LGBT+, machismo e racismo, o que é visto como diferente ou socialmente inferior pode motivar violências.
– Começo a me comparar com os colegas e começo a gostar ou não gostar, sentir medo ou não, sentir angústia ou não, ansiedade ou não, alegria ou não. E, assim, vou excluindo situações ou pessoas que não me pareçam familiares, que me desafiem ou que possam me desacomodar na minha zona de conforto. E aí começa a acontecer o bullying – pontua a psicóloga.
Carolina salienta, ainda, que o processo de formação da identidade que se dá nessa época também pode gerar essas agressões, pois desencadeia ansiedades que são aliviadas quando o adolescente está em um grupo de pessoas que considera parecidas com ele, semelhança essa que é reafirmada quando alguém tido como diferente é excluído. A solução para evitar o bullying, no entanto, não é forçar uma adequação a algum padrão ou mudar o jovem de escola, por exemplo, o que pode revitimizá-lo.
– Agora, nós temos essa legislação, que inclui artigos no Código Penal para o combate ao bullying. Então, por que a vítima sairia da escola? Ela está errada? Se está sofrendo bullying por ser negra, ela tem que fazer um procedimento para deixar de ser negra? Se é magra demais, tem que fazer um tratamento para engordar e, aí, vai resolver o bullying? Cuidado: não podemos gerar a ideia de que a vítima está errada. Retirar a criança da escola deixa uma marca inconsciente – sinaliza a profissional.
Temos que estar atentos, porque quando a reação não é de estouros de raiva, tendemos a não enxergar, e a sintomatologia depressiva ou ansiosa pode ser muito silenciosa.
CAROLINA LISBOA
Psicóloga, doutora em Psicologia do Desenvolvimento e terapeuta cognitiva
Transferir o estudante quando a instituição de ensino está sendo omissa é compreensível, segundo Carolina, mas a medida pode fazer com que, ao longo da vida, a vítima se sinta um “peixe fora d’água”, que, inevitavelmente, será julgado pelos outros e acabará sendo expelido dos espaços que ocupa.
As famílias do agressor e do alvo da violência não são, via de regra, as principais responsáveis pelo bullying. No entanto, a psicóloga cita estudos que indicam que, com frequência, tanto as vítimas como os autores das agressões têm pais autoritários e que não mantêm uma boa comunicação com os filhos. A terapeuta também percebe uma falta de estabelecer limites nas crianças e adolescentes, especialmente entre os pais daqueles que cometem a violência.
Carolina destaca que não só a vítima, mas também o agressor sofre com o bullying:
– Os jovens não começam o bullying por querer, mas, quando veem, estão completamente reféns dessa violência. Minha tese é que os agressores também sofrem, mas têm medo de virar vítimas. Não estou justificando o comportamento deles, mas quero dizer que ninguém está se divertindo. Por isso, por favor, pais, professores, orientadores educacionais e equipes de psicologia das escolas, intervenham: os jovens não conseguem sair dessa dinâmica sozinhos.
Cabe à família passar às crianças e adolescentes valores sobre o que é certo e errado e, com isso, evitar que cometam o bullying. Criticar os padrões impostos pela sociedade e exaltar a diversidade, por exemplo, permite que os filhos ampliem sua visão sobre a beleza, o desempenho em esportes, a inteligência e sobre a felicidade. Outro exercício fundamental é o da empatia: propor ao jovem que ele se coloque no lugar de outros, para entender suas emoções.
– A empatia é um comportamento aprendido. A gente não nasce sendo empático e, se a gente não exercitar, a gente não consegue ser. Quanto mais promovermos a empatia dentro da nossa família com os nossos filhos, com certeza menos agressores de bullying esses nossos filhos vão ser – garante a psicóloga.
Àqueles que já são vítimas de bullying, é importante buscar ajuda psicológica, a fim de fortalecer a autoestima e ressignificar as distorções cognitivas que as levam a se sentirem culpadas pela agressão que sofrem. Outras atividades que podem ajudar nesse processo são esportes e expressões artísticas. Para além disso, no entanto, é imprescindível a participação – e a tolerância zero à violência – da família e da escola.
Diferentes instrumentos legais de informação, prevenção e punição ao bullying foram criados nos últimos 15 anos. No contexto nacional, a Lei 13.185 instituiu, em 2015, o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), que tem natureza preventiva. Em 2016, outro regramento estabeleceu o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência na Escola, celebrado em 7 de abril. Em 2018, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) passou por uma alteração, para incluir a previsão de que os estabelecimentos de ensino promovessem “medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência e a promoção da cultura de paz”.
Já os Estados sancionaram legislações sobre o assunto antes do governo federal – começando com a Paraíba, em 2008. O Rio Grande do Sul conta com uma normativa desde 2010, quando a Lei 13.474 apresentou o que é considerado bullying e previu a construção de políticas de combate e prevenção em escolas públicas e privadas.
Com a sanção, em nível federal, da Lei 14.811, em 12 de janeiro de 2024, as intimidações sistemática (bullying) e sistemática virtual (cyberbullying) passaram a ter previsão no Código Penal. No caso do bullying, a pena estabelecida foi de multa, e, do cyberbullying, de reclusão de dois a quatro anos e multa, ambas “se a conduta não constituir crime mais grave”. A mudança foi elogiada por muitos, mas também trouxe dúvidas sobre sua execução, em especial às instituições de ensino.
O advogado Luciano Escobar, especialista em Direito Educacional, consultor e assessor jurídico de instituições de ensino, critica o fato de a nova legislação nacional não caracterizar o que é bullying, algo que a estadual faz. Com isso, não especifica que a prática só ocorre entre pares. O profissional também pontua que a lei não é específica para a criminalização dessa prática, mas sim um conjunto de “medidas de proteção à criança e ao adolescente nos estabelecimentos educacionais ou similares”.
– É uma lei originada de um projeto de lei de 2021 que nunca teve esse título: era “institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra violências”, o que pode acontecer em muitos lugares, para além dos estabelecimentos educacionais. A lei marginaliza o ambiente escolar, porque diz que o ambiente de violência que existe e que causa danos à criança e ao adolescente é a escola ou similares. A responsabilidade integral em prevenir as violências está sendo depositada sobre a escola, e isso é um erro – defende o advogado.
Escobar pondera que a escola é uma reprodução menor de como a sociedade funciona, que tem como função dar conhecimento e informação, e, junto, educar para o coletivo. A instituição, contudo, recebe o aluno por cerca de quatro horas por dia, sendo que o tempo para convívio com os pares, de fato, é de 15 minutos, durante o recreio.
Do que as escolas vêm fazendo muda muito pouco (com a nova lei), mas aumenta a necessidade do grau de consciência das responsabilidades que, individualmente, os educadores e a escola precisam ter.
LUCIANO ESCOBAR
Advogado, especialista em Direito Educacional, consultor e assessor jurídico de instituições de ensino
– E nas outras 20 horas por dia? Quem é o exemplo? A maior dificuldade que tenho, no trabalho de consultoria para escolas privadas, é fazer com que a gente descole o que é responsabilidade nossa do que é responsabilidade da família. O que nos cabe é fazer capacitações periódicas para entendermos o nosso papel enquanto professor e escola – afirma o jurista.
No entendimento de Escobar, diante da nova legislação e das outras preexistentes, as instituições de ensino precisam se enxergar como empresas e adotar procedimentos de compliance, para se adequarem aos regramentos. É necessário, por exemplo, criar procedimentos para todos os colaboradores, como a observação de situações e comportamentos que difiram dos usuais e a documentação dos episódios. Com isso, o estabelecimento consegue ter uma visão mais ampla dos casos envolvendo cada estudante e tem uma capacidade maior de comprovar que não foi omisso, em eventuais ações.
– Do que as escolas vêm fazendo muda muito pouco, mas aumenta a necessidade do grau de consciência das responsabilidades que, individualmente, os educadores e a escola precisam ter no aperfeiçoamento desses processos de controle e acompanhamento dos seus alunos – resume o advogado.
O jurista também questiona a tipificação penal específica para bullying e cyberbullying, por entender que é uma adjetivação de outros crimes já previstos anteriormente, como lesão corporal, calúnia, injúria e difamação.
Guilherme Corte, coordenador de Integridade e Atendimento ao Cidadão da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), considera importante a tipificação penal para o bullying e destaca que protocolos de paz e segurança nas escolas têm sido desenvolvidos pela rede estadual.
– Esses protocolos começaram a ser implementados já em abril de 2023, após um caso de violência em Blumenau (SC), que gerou um aumento na preocupação da sociedade. Começamos a pensar junto à Secretaria de Segurança Pública num primeiro protocolo, pegando referências nacionais e internacionais – recorda Corte.
Nem todo caso de violência deve ser tratado como crime. A nossa legislação estadual nem é interessante, porque demonstra que a primazia, na questão do bullying, é pelo processo de mediação e construção pedagógica dentro da escola.
GUILHERME CORTE
Coordenador de Integridade e Atendimento ao Cidadão da Secretaria Estadual de Educação (Seduc)
Um protocolo para prevenção e ação em casos de violência física já foi lançado para a rede, e uma cartilha está sendo disponibilizada para diretores e docentes, com orientações sobre o que deve ser observado para identificar possíveis casos de agressões e planejamento de ataques. Outros protocolos específicos sobre violência de gênero; racial; bullying e cyberbullying; sexual; e de combate ao capacitismo, à xenofobia e à intolerância religiosa.
Em linhas gerais, quando um caso de violência acontece na escola e um professor o identifica, ele conversará, primeiro, com o orientador educacional, para identificar os motivos da agressão e qual a gravidade daquele episódio, levando em conta os impactos psicológicos e a recorrência da situação. Se entender que é necessário, a escola pode acionar o Conselho Tutelar e até a Brigada Militar, que fará o encaminhamento para a Polícia Civil.
– Nem todo caso de violência deve ser tratado como crime. A nossa legislação estadual nem é interessante, porque demonstra que a primazia, na questão do bullying, é pelo processo de mediação e construção pedagógica dentro da escola – observa o coordenador.
No ano passado, a Seduc criou o Núcleo de Cuidado e Bem-estar Escolar, que conta com 36 profissionais, entre eles 20 psicólogos e 13 assistentes sociais concursados. Os servidores atuam junto à pasta e nas Coordenadorias Regionais de Educação (CRE), e são acionados pelas escolas quando ocorre um caso violento ou que possa ter causado danos psicológicos para a comunidade escolar. A equipe, então, realiza uma intervenção, que também está prevista nos protocolos.
No país, um grupo de trabalho interdisciplinar se dedicou, ao longo do ano passado, a fazer um estudo e propor um sistema nacional de combate à violência nas escolas, que envolve novas leis de combate ao bullying e aos crimes de ódio. Desde então, uma política nessa área está sendo desenhada pelo Ministério da Educação. Em nota a GZH, a pasta informou que a estratégia “está em fase de conclusão e será oficialmente anunciada em breve”.