Sancionada em janeiro a nova legislação nacional que tipifica o bullying como crime, um marco no combate a essa prática tão presente nas escolas, mas que vem sendo combatida em várias instituições, públicas e privadas.
O Colégio Anchieta, localizado no bairro Três Figueiras, em Porto Alegre, atende 3.160 estudantes, número superior à população de 30% dos municípios gaúchos. Para prevenir e lidar com os conflitos de tanta gente, a escola realiza projetos de combate ao bullying e ao cyberbullying pensados para cada etapa de ensino, que ocorrem em diferentes momentos do ano.
Quando a reportagem de GZH visitou a instituição, Isabel Cristina Tremarin, coordenadora do Serviço de Orientação Educacional (SOE), planejava junto ao Grêmio Estudantil as atividades a serem desempenhadas na Semana de Prevenção ao Bullying e Cyberbullying, entre os dias 8 e 12 de abril. O protótipo de uma cartilha destinada a estudantes foi entregue aos alunos da agremiação, para avaliação. O estabelecimento também criou versões destinadas a colaboradores e a pais e responsáveis. No material, constam informações a respeito e orientações sobre o que fazer quando uma situação é testemunhada ou vivenciada.
Integrantes do Grêmio Estudantil, Bruna Moraes e Martina Laux, que têm 16 anos e estão no 2º ano do Ensino Médio, dizem que desde pequenas participam de palestras e trabalhos sobre bullying e cyberbullying no Anchieta.
– No geral, eu acho que ocorre mais com crianças mais jovens, mas a gente sempre se unia e avisava os coordenadores e professores em geral. Com tempo, a gente vai amadurecendo. Hoje, não vejo muito bullying físico, porque as pessoas, acho que de tanto serem avisadas, percebem. Atualmente, acho que o que mais pode acontecer é o cyberbullying – analisa Bruna.
Nem sempre as agressões são objetivas – às vezes, podem ser simplesmente deixar uma pessoa de fora de um grupo no WhatsApp, o que a faz se sentir excluída, como observa Martina:
– Muitas vezes, a gente não tem noção do quanto as nossas atitudes podem machucar, especialmente na internet. Na nossa idade, não tem mais como os pais ou os professores intervirem muito, então, tem que vir do próprio aluno e da consciência dele. Essas campanhas são importantes para mostrar que tu pode estar destruindo uma pessoa por dentro com essas ações – ressalta a adolescente.
Para o estudante que está sendo alvo de bullying ou cyberbullying, Bruna recomenda que acione a família e a escola.
– Se fosse comigo e eu não tivesse muitos amigos na escola, eu falaria primeiro com meus pais, para ter o apoio deles e aí eu mesma conversar com os coordenadores da escola. Também tentaria, e sei que não deve ser fácil, conversar e impor respeito ao agressor, porque quando a gente atinge certa idade, a gente tem que aprender a se defender por conta própria – comenta a jovem.
Martina concorda e avalia que, às vezes, a solução é mudar o meio em que se vive, porque “o problema são as pessoas ao teu redor, mas, normalmente, tu não consegue mudar alguém”.
Segundo a coordenadora do SOE do Anchieta, o bullying é tratado desde a Educação Infantil, com a linguagem sempre sendo adequada a cada faixa etária:
– A educação se dá no processo de o aluno interagir com outros adultos, que não são da sua família, e com outras crianças que não são tão próximas. É ali que ele vai formalizando os seus conceitos e a sua forma de conviver.
O cyberbullying, conforme a educadora, amplificou um problema que sempre existiu, uma vez que as agressões passaram a acontecer também no ambiente virtual, que não é gerenciado pela escola.
– Além de lidarmos com o presencial, lidamos com um reflexo muito intenso do que acontece nas redes sociais. Aí, envolve família, aluno, instituição – pontua.
Os casos chegam ao conhecimento da escola de duas formas: pela observação dos profissionais que lá trabalham e pelo relato da vítima ou de um colega. Isabel diz que todos têm clareza sobre como devem proceder nessas situações e qual o encaminhamento a ser feito. O processo termina quando todas as partes entendem que houve uma solução.
– O “resolver” tem a ver com o que fica bom para todo mundo e atende as suas necessidades. Acho que essa é a principal questão, porque as necessidades são diferentes e nenhum caso é igual ao outro – destaca a coordenadora, que utiliza princípios da justiça restaurativa e da comunicação não violenta para lidar com os conflitos.
Sobre a nova lei antibullying e cyberbullying, Isabel diz que nada mudou para a rotina da instituição, que já tem processos bem estabelecidos há muitos anos nessa área. Ela gera, entretanto, algumas dúvidas, como a presença do termo “pena”, mas não de “medida socioeducativa”, que é aplicada quando aquele que cometeu o crime tem menos de 18 anos.
O Anchieta promove palestras, atividades em sala de aula, cartilhas educativas, entre outras atividades de conscientização sobre o bullying e o cyberbullying.
Na Escola Estadual de Educação Básica Gomes Carneiro, que fica na Vila Ipiranga, também em Porto Alegre, a aposta para combater o bullying e o cyberbullying é na proximidade com as famílias e na parceria com psicólogas voluntárias, que acompanham o dia a dia da instituição e propõem intervenções, quando necessário. Uma das iniciativas de destaque foi a gravação do curta-metragem Fiz-me Respeitar, lançado em 2018 e com exibições até em países da África, segundo a diretora, Susana Silva de Souza.
– Esse filme foi o pano de fundo para trabalharmos questões ligadas ao bullying. Também temos o Papo de Responsa, no qual colocamos todos no saguão, no ginásio ou nas próprias salas de aula para conversar sobre algum tema. Temos muita diversidade, com alunos que se sentem mal em outros espaços e procuram nossa escola por causa do nosso trabalho – comenta Susana.
Enquanto GZH estava na Gomes Carneiro, a porta da direção permaneceu aberta, e a sala recebia visitas frequentes de alunos, que, no total, chegam a 1,2 mil. Para além de atividades pontuais, a principal estratégia é criar uma cultura de proximidade e confiança, na qual todos se conhecem, identificam quando alguém não está bem e sentem que podem pedir ajuda.
A estudante Lívia Ribeiro, 17 anos, está no 3º ano do Ensino Médio e participou como atriz no Fiz-me Respeitar. Desde a 4ª série, quando ingressou na instituição, percebe que reina uma cultura da paz.
– Somos uma escola bem evoluída em questão de bullying. Desde que eu entrei, nunca vivenciei situações assim. Nunca sofri e nunca vi alguém fazendo. O que tem são essas brincadeiras de adolescente, que às vezes caem aqui (na direção), por serem uma coisa agressiva – recorda.
Quando percebe que a brincadeira incomoda alguém, ela e os colegas procuram repreender quem causa o incômodo. Já o cyberbullying foi mais frequente em uma época.
– Foram criados perfis anônimos no Instagram para espalhar fofocas. Ninguém sabia se podia acreditar ou não, nem quem era o dono do perfil – conta Bruna de Almeida, 17 anos, também do 3º ano.
Isso foi “moda” em uma época nos colégios, de acordo com Lívia. Na Gomes Carneiro, o autor foi descoberto e o problema, resolvido.
– Foi um trabalho de formiguinha, mas foi um período difícil, porque eles começaram a pegar pesado, tirar foto dos outros, dos professores. Entre eles mesmos aconteciam brigas de grupo – lembra a diretora.
Antônia da Rosa Requelme é mãe de uma aluna do 3º ano do Ensino Médio e de outra que, hoje, tem 21 anos e já se formou na Gomes Carneiro, mas, mesmo assim, segue participando da banda da escola. Quando matriculou as filhas lá, a mais velha tinha 13 e sofria bullying em um colégio particular.
– Quando viemos para cá, uma das coisas que ela mais me dizia era “lá na Gomes não tem isso”. É importante, principalmente para os adolescentes, que o ambiente seja assim – defende Antônia.
Na visão de Ana Paula Peraldo Martins, orientadora educacional e vice-diretora da instituição, o grande problema, hoje, são os grupos de WhatsApp – é lá que os conflitos começam e ganham proporção, até estourarem na escola.
– Os pais, infelizmente, não têm um controle sobre o uso do telefone. Então, isso acarreta, às vezes, chamar a família, registrar, conversar. Era algo que não existia antes. Tu chamava as crianças e conversava. Agora, não: falaram tal coisa, que contaram para a Lívia, que falou para a Bruna, que contou para nós, e a coisa toma uma proporção em que fica muito difícil resolver – observa Ana Paula.
Se algo mais grave acontece, a diretora para toda a escola e, muitas vezes, chama profissionais externos para trabalhar não só com os atores envolvidos no problema, mas também com a instituição como um todo, promovendo tarefas que gerem uma reflexão a respeito. Isso pode envolver redações, cartazes e definição de metas, por exemplo. A comunidade escolar adota, ainda, princípios da justiça restaurativa, promovendo círculos da paz para conversar sobre os conflitos.
A equipe da Gomes Carneiro fica atenta a sinais como a reclusão, evitar aglomerações, excesso de choro e a automutilação, que costuma ser escondida com roupas mais fechadas mesmo no calor. Susana aponta para a importância de acolher também os pais, e não só as crianças e adolescentes:
– Não adianta a gente acolher só o aluno. A gente se preocupa em dar uma orientação, sugerimos psicólogo. A gente traz psicólogo para fazer essa interface entre família, profissional e escola.
As psicólogas que atuam de forma voluntária costumam ir à instituição pelo menos uma vez por semana. Essas profissionais, com frequência, oferecem consultas com um valor mais acessível para alunos que precisam de tratamento.