Passados 40 anos desde que saiu de casa e abraçou a civilização, a costureira Maribel Edira Klipel da Silva voltou, em dezembro do ano passado, a morar na cabana isolada em que viveu até pouco antes da maioridade. Ela se desvencilhou de comodidades como um chuveiro de água quente, uma geladeira movida a eletricidade e um fogão a gás. Passou a viver com a sensação de estar em suspenso no tempo. Durante o dia, recebe turistas na sala de estar da choupana de madeira erguida por seus pais há 73 anos, localizada no que hoje é o Parque Nacional de Aparados da Serra, em Cambará do Sul. À noite, enquanto quem mora nas cidades desliga os abajures, ela apaga a lamparina acesa a gás e adormece ao lado do marido a poucas dezenas de metros do cânion do Itaimbezinho, penhasco de 720 metros de altura localizado na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina.
Em seus 57 anos de vida, Edira jamais viu a casa de madeira ter uma única lâmpada acesa com energia elétrica. Junto a nove irmãs e dois irmãos, cresceu correndo no meio de araucárias, troteando no lombo de cavalos e se banhando em cascatas de água límpida. Não se importava muito com os calçados grandes demais para o pé, comprados para durar bastante. As preocupações eram o frio que "engripava", as vacas bravas no caminho da escola e os pumas que atacavam ovelhas à noite.
— Vivi em Caxias do Sul durante 40 anos, criei dois filhos, fiquei desempregada e agora estou de volta. Era muito bom viver aqui (ao lado do cânion). A gente trabalhava, mas brincava muito, corria no mato, descia para o Itaimbezinho sem contar, porque o pai e a mãe não deixavam, por ser perigoso. Minha mãe puxava água no balde, carregava lenha no mato, fazia queijo com leite. E dizia que nunca passou trabalho – conta Edira, que divide a cama com uma colorida colcha de crochê ao lado do marido, Antonio Selomar Rodrigues da Silva, 64 anos.
Para chegar até ali, é preciso percorrer, desde o centro de Cambará do Sul, 18 quilômetros em estrada de chão. Uma vez no parque, deve-se costear a sede do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), percorrer a pé 1,5 quilômetro da Trilha do Vértice e, em vez de tomar a direita para avistar a Cachoeira das Andorinhas, pegar a esquerda (veja o mapa abaixo, ao final deste texto).
No pátio, além de uma horta e uma grande araucária, uma placa apresenta o local aberto a visitação desde 2015: "Café do Vô Marçal e Artesanato da Vó Maria", em homenagem aos pais, Marçal e Maria Klipp. O local é cuidado por Edira e pelo marido, mas também pela cunhada, a artesã Loeni Borges Klippel (o sobrenome mudou por erro do cartório de registros), 64 anos, e a irmã adotiva, Mônica Rosane Mendes de Oliveira, 51.
Quando Marçal e Maria eram vivos, sua residência era ponto de encontro de tropeiros e viajantes que acampavam (prática permitida até a década de 1980). Tomados de surpresa por uma virada no tempo, um frio insuportável ou uma neblina impedindo que se enxergasse mais de um palmo de distância, todos os incautos eram acolhidos. O casal dava um jeito de abrigá-los, aquecê-los perto do fogão a lenha, inclui-los na roda de chimarrão. Se estavam com fome, preparava-se uma refeição. Hoje, os herdeiros mantêm a tradição de deixar as portas abertas e conservam a cabana tal como era antigamente. No fim de semana, recebem o reforço da filha de Loeni, Vanessa Borges Klippel, 32.
— A gente era pobre, mas sempre ajudava os viajantes. Se alguém batesse na porta e pedisse um pouso, um café ou um almoço, meus pais sempre davam — rememora Edira.
GaúchaZH visitou o local em uma tarde de terça-feira e na manhã da quinta-feira seguinte. Parece que as sete décadas não passaram naquele ambiente. Não faria sentido um calendário colado na parede: nada ali remete aos tempos modernos. No banheiro, o chuveiro é um balde suspenso por uma roldana, e, no quarto, um andador de vime para crianças descansa no chão. Em outro cômodo, um tear e uma roca repousam em frente à janela de vidro.
O teto não tem forro e um pequeno fogão à lenha na sala é a única fonte de calor.
O que é perecível se esconde em uma caixa de isopor e, no galpão dos fundos, buracos denunciam vazios onde foi levantado fogo de chão. No pátio, seriemas caminham desengonçadas de um lado para o outro.
Quem quer se recompor das trilhas no cânion pode pedir pastel de pinhão, suco de laranja e almoço campeiro. Ou, ainda, comprar roupas de lã artesanal. A iniciativa de transformar a antiga residência em casa para turistas foi de Loeni, esposa do construtor Eraldo Kippel, 60 anos. Loi, como é conhecida, se uniu à família há quatro décadas e chama os sogros de vô e de vó. Habilíssima com as mãos, aprendeu com Maria a lida na roca e no tear, trançando a lã em cachecóis, toucas e palas.
— Hoje sigo os passos da vó Maria, fazendo o que ela fazia. O espírito dos dois está vivo aqui. Comecei a cuidar da casa para a história da família não se perder e para ter um retorno financeiro também – diz a artesã.
A cabana foi construída em 1945, antes da implementação do Parque Nacional de Aparados da Serra (o que ocorreu em 1959).
Há situações semelhantes, de residências erguidas em áreas depois transformadas em parques de preservação, em todo o país – invariavelmente, tornados casos de disputas judiciais. Como tropeiro, Marçal transitava pelos três Estados da Região Sul em viagens nas quais estirava peças de charque e queijo e garrafas de cachaça no lombo de burros. Cavalgava por dias para obter, em troca, açúcar, tecidos para fabricação de roupas, arroz e calçados. Aos 24 anos, em uma das andanças, se apaixonou pelo "perau" (como muitos chamam os cânions).
Tábua sobre tábua, Marçal, Maria e um compadre construíram com as próprias mãos a casa e o galpão nos fundos. A família festejou ali os casamentos dos filhos e os 65 anos de comunhão do casal. Sob o mesmo piso de madeira, nasceram os 10 filhos biológicos com auxílio de parteira. As exceções foram dois bebês — Eroni e Eraldo —, que Maria deu à luz sozinha.
Marçal até saiu cavalgando para buscar ajuda, mas a distância da casa em relação à zona urbana impediu que voltasse a tempo. Sozinha, nas duas ocasiões, a mulher cortou à faca o cordão umbilical.
Como quem se queixa da grama alta no quintal de casa, Marçal por vezes reclamava da neblina típica da região, que até hoje azeda o dia de turistas. Costumava dizer aos filhos:
— Um dia vou tapar esses peraus para acabar com essa umidade.
A casa das 10 mulheres
A experiência anacrônica de deixar para trás as facilidades tecnológicas pouco incomoda Edira. Pelo contrário, ela soa aliviada, como se o encontro entre passado e presente fosse coisa do destino.
— Hoje, a gente reclama por pouco. Não vejo problema algum em voltar para cá depois desses anos. Só fazem falta o chuveiro quente nos dias de frio e a eletricidade para carregar o celular e, assim, ter notícias dos filhos. Mas agora mantenho a casa cheia, como meus pais faziam — afirma.
A infância inusitada perto do Itaimbezinho é rememorada com afeto por Edira e Mônica Rosane. Sem energia elétrica, relógio ou rádio, restava ouvir o que a natureza tinha a dizer. Uma vez que os galos cantassem, todos levantavam para ordenhar as vacas. Quando a luz do sol aparecia pela fresta deixada pela porta entreaberta, era hora de a mãe preparar o almoço. Se o poleiro enchia de galinhas, restava à família recolher-se em casa e esperar a noite cair.
Longe de qualquer vizinho, um zelava pelo outro. Todos plantavam, todos mexiam com o gado. Até os sete anos, cada um já portava uma enxada.
— Naquela época, se tinha filho para ajudar na mão de obra. Ainda mais quem morava longe de tudo — observa Loi.
As filhas eram parte essencial da lida. Maria ensinava a cada uma um tipo diferente de costura, para diversificar a produção. Às gurias também cabia acompanhar os pais nas tropeiragens.
Era, afinal, a casa das 10 mulheres.
— Quando criança, eu tinha medo de cair. Era perau pra lá, perau pra cá — brinca Edira. — Como tinha muita mulher na família, fazíamos o trabalho dos homens. Antes, eu erguia bruaca de arroz e de farinha de 50 quilos num burro. Hoje, estou velha, já não posso mais...
Geladeira era coisa para quem vivia em outra realidade: o charque era conservado com sal e outras carnes, fritas e mantidas em latas de banha. No café da manhã, o cardápio incluía pão, angu, polenta e leite das vacas. No almoço, arroz, feijão e ovo — eventualmente, carne ou pirão. No jantar, repetia-se o prato do meio-dia.
Banho? De preferência aos sábados, e de gamela, para ir à missa — sobretudo no inverno, quando não raro as temperaturas ficavam abaixo de zero. O hospital era a horta, onde se plantava marcela, alecrim, hortelã e caninha. A escola ficava a até 10 quilômetros de distância, mas todos os 11 filhos concluíram pelo menos o quinto ano do Ensino Fundamental.
A música da chuva
Mônica Rosane, que divide os dias entre o trabalho de faxineira em Cambará do Sul e a recepção de turistas na casa à beira do cânion, não nasceu na cabana, mas demonstra amor por aquelas vigas de madeira. Adotada no oitavo dia de vida, aproveitou o leite que dona Maria gerou para a filha recém-nascida Eliane. Uma mamava durante o dia, e a outra, à noite.
— A gente carpia, lavava roupa, puxava os bois na lavoura. Era uma época muito boa, de boas recordações. A primeira coisa que a gente teve de tecnológico foi um rádio de pilha. Minha mãe adorava ouvir as novelas — relembra Rosane.
Se, na década de 1940, Cambará se resumia a uma igreja e poucas casas, nos anos seguintes serrarias alcançaram a área próxima ao Itaimbezinho. O grande interesse eram as araucárias. Hoje, não há mais nenhuma empresa dentro dos limites do parque dos cânions.
— Seu Marçal achava um absurdo derrubar árvore, era muito protetor da natureza. No inverno, proibia os filhos de derrubar para lenha, só podia pegar o que já estava no chão. Ele não gostava nem que saíssem com facão, porque poderiam abrir a mata. As coisas tinham que ficar como a natureza tinha feito — descreve Loi.
O casal morou na cabana isolada até 2002. Quando a idade pesou, os filhos pegaram os velhos e "desceram o morro": foram morar com eles em uma casa em Cambará do Sul, em um terreno ao lado de onde Loi hoje vive com o marido.
Maria morreu em 2009, aos 90 anos, após sofrer com Alzheimer. Marçal se foi um ano depois, aos 92. Faleceu enquanto dormia, em casa. Eles tiveram uma vida plena e ficaram na memória de muitos viajantes, descrevem os seus familiares. O patriarca era lembrado como "o pai da paciência".
A mãe, como alguém que reclamava pouco.
— Tem gente que veio nesta casa há 40 anos e voltou agora para matar a saudade. Dizem: "Pena o seu Marçal não estar sentado na cadeira nos esperando com um chimarrão". Eu me emociono. E fico feliz, sabe? Eles trabalharam duro para ter isso aqui. Era a vida deles — diz Edira, com a fala pontuada por lágrimas.
Ao fim da manhã de quinta-feira, o vento cresce até balançar os galhos das árvores. A força faz as panelas penduradas na parede baterem entre si, gerando uma melodia muito particular. De repente, cresce um barulho de queda d’água até envolver toda a casa. É uma orquestra bem ensaiada.
— Viu que dá para ouvir daqui o barulho da cachoeira? Até o fim do dia vai chover — sentencia Loi.
Ao fim do dia, choveu em Cambará do Sul.
Serviço
Café do Vô Marçal e Artesanato da Vó Maria
Na Trilha do Vértice, Parque Nacional de Aparados da Serra, Cânion do Itaimbezinho, Cambará do Sul (RS).
Funcionamento: de terças a domingos, das 8h às 17h.