São José dos Ausentes, julho de 2000. A imagem do copo com água congelada sobre a mesa ficou gravada na memória de Anápio Donizete Pereira. Era madrugada do dia 14 para o dia 15, e o frio daquele sábado gelado fez com que o líquido deixado na cozinha se solidificasse.
— Chegou a -9,8°C. Nosso lago congelou. Foi uma das noites mais frias que enfrentei na minha vida — lembra Pereira, hoje com 42 anos, representante da quinta geração de uma família de origem portuguesa que há 130 anos se instalou aos pés do Pico Monte Negro, o ponto mais alto do Rio Grande do Sul.
Para ele, no entanto, morar a aproximadamente 1,4 mil metros de altura em relação ao nível do mar está longe de ser um sofrimento:
— A gente acaba curtindo. O topo da Serra é um paraíso e, no inverno, parece que o charme é diferente, porque tu acabas ficando mais acomodado dentro de casa. Tu tomas um vinho, comes um pinhão, vais para a volta do fogão prosear, tomar um café com leite da fazenda. Se não está muito frio, tu não consegues reunir toda a família. A temperatura baixa traz aconchego.
Os Pereira vivem na Fazenda Monte Negro, transformada, em 1999, em um ponto de turismo rural a 43 quilômetros do centro de Ausentes. Quem enfrenta a estrada pedregosa, quase intransitável, para chegar até lá, costuma ir em busca do frio. Que não é um frio qualquer, conforme Anápio.
— O frio ausentino é diferente: não entra na pele; entra no osso. Tem de ser morador nativo para aguentar o inverno todo. O turista vem, curte dois dias, vai embora. A gente não liga se vai amanhecer -8°C ou -5°C. Não faz muita diferença — diz.
O irmão dele, Francisco de Assis Pereira, 40 anos, lida com os animais da propriedade. Trata-se de um trabalho que precisa ser realizado diariamente, faça chuva ou sol, frio ou mais frio ainda.
— O dia a dia da gente é acordar cedo, fazer a ordenha, alimentar as vacas. No inverno, a temperatura é complicada. É dificultoso, mas a gente gosta. Frio é gostoso. O calor é bem pior do que o frio — garante Francisco.
Nessas horas, o calor dos animais e o "camargo", como é conhecido o café com o leite recém-ordenhado, ajudam a aquecer o corpo.
— A teta da vaca, o úbere, é quente. Vai te aquecendo com o próprio calor do leite, que sai quentinho do animal. É muito gostoso, tomamos todos os dias de manhã — conta Francisco, mostrando o carinho pelos bichos ao chamá-los pelos nomes: Bugia, Búfala, Estrela, Abelha, Andorinha.
— A lida tem que acontecer com qualquer tempo. Se tu pensares duas vezes em sair da cama em dia de frio, não sai — complementa Anápio.
Alexandre, 44, o primogênito dos irmãos Pereira, cuida do trabalho no campo, incluindo a condução de turistas em cavalgadas e trilhas. Não raro, a tarefa é acompanhada de uma densa neblina, que costuma surgir muito rapidamente. É a popular "viração", caracterizada pelo choque térmico entre o ar quente vindo do oceano com as correntes frias da Serra.
— Cai bastante a temperatura e tem de estar sempre com o ponchinho para aquecer. Tu podes sair da fazenda com sol quente, e chegas aqui, no pico da montanha (a quatro quilômetros de distância), e já está fechado de neblina — explica Alexandre.
Quando o céu está limpo, sem nuvens ou cerração, a vista do topo do pico é deslumbrante. Podem-se vislumbrar as luzes de cidades como Araranguá e Criciúma, em Santa Catarina, e Torres, no litoral gaúcho.
A matriarca dos Pereira, Maria da Silva, 63 anos, comanda a cozinha na casa da família. É ela quem prepara pães, bolos, biscoitos e geleias, entre outros pratos, consumidos diariamente. Popular nos Campos de Cima da Serra, a gila é uma das preferidas. Trata-se de uma fruta de formato semelhante ao da melancia, mas sabor e texturas que lembram as de uma abóbora, que é cozida lentamente até caramelizar.
O patriarca, Domingos, apelidado na região de Guardião do Monte Negro, morreu em janeiro. Seus ensinamentos seguem na memória dos jovens, como o neto Pablo, que aos 18 anos diz não ter intenção de abandonar o Interior para viver em outro lugar:
— A gente gosta da lida na fazenda, então isso influencia a ficar aqui. Às vezes penso em fazer uma faculdade, mas penso também que tem que dar sequência no trabalho aqui, seguir a geração, porque, se eu sair, vai que meus primos saiam também? Aí a fazenda vai acabar. E isso aqui não pode morrer.
A cultura do frio
— Me encanta o frio. Eu me sinto muito bem. Além de ser uma questão física, de tu respirares melhor, isso já vem arraigado da cultura dos nossos antepassados, de sentar todo mundo ao redor do fogão, fazer os planos para o dia seguinte. Uma manhã que amanhece branca de geada é linda. A viração tem uma magia. E temos as belezas naturais. O frio é um algo a mais, a cereja do bolo.
A declaração é de Elenara Velho, que aos 42 anos é uma apaixonada pelo frio. Ela nasceu na vizinha Bom Jesus e, há cinco anos, vivem em Ausentes trabalhando como condutora de turismo rural.
— Nos lugares quentes, as pessoas ficam até tarde da noite proseando em barzinhos, nas praças... A gente sabe que não tem muito disso. Entardeceu, todo mundo está na sua casa, aproveitando o fogão a lenha. O pessoal até se reúne, mas a gente fica mais fechado. Não fica tanto ao ar livre. Nossas comidas são comidas fortes. É o carreteiro, é o puchero (espécie de cozido no qual são utilizadas carnes, legumes e temperos variados), é uma carne assada na brasa, tu já estás ali aproveitando o calorzinho do fogo, abre um vinho para acompanhar.
O fogo constitui um espaço de compartilhamento. E o fogão a lenha, um ponto de convívio e partilha.
— É uma coisa mágica — diz Elenara. — Tu fazes um fogo e já vem todo mundo, fica ao redor, coloca um pinhão na chapa. Além de aquecer o ambiente de forma natural, aquece a alma. Não há nada melhor depois de um dia cansativo de trabalho.
Ela não reclama nem mesmo na hora de deixar o conforto de casa e sair para o trabalho quando a temperatura está próxima de 0°C. Por conviver com pessoas diferentes a cada dia, acaba não tendo uma rotina tão repetitiva. Além dos turistas, ela presta trabalho a fazendas da região. E o dever no campo não pode esperar. Chapéu na cabeça, faca na bota, encilha arrumada, um até logo ao gato Negão e aos cachorros Mandrake e Duke. É hora de partir para a lida no lombo da égua Candy.
— O que me faz morar em Ausentes é eu poder enxergar todos os dias a minha linha do horizonte verde e não ter rotina. Como trabalho com vários grupos, com passeios equestres e trilhas, um dia estou num lugar, outro dia sou levada, pelo trabalho, a outro.
ONDE FICAM
Ausentes
> São José dos Ausentes tem pouco mais do que 4 mil habitantes e 15 hotéis ou pousadas, num total de cerca de 550 leitos disponíveis.
> O Instituto Nacional de Meteorologia possui uma Estação Meteorológica Automática no município desde 2006.
> A menor temperatura já registrada pelo equipamento foi -5,5°C, em 7 de junho de 2012. A maior foi 31,3°C, em 8 de dezembro de 2014.
> Em 2018, a mínima foi -2,7°C, em 16 de junho.
Monte Negro
> O Pico do Monte Negro, ponto mais alto da localidade de mesmo nome, fica a 1.403 metros de altitude em relação ao nível do mar.
> O pico em si tem 80 metros de elevação em relação aos campos que o cercam.