Por volta do meio-dia de terça-feira (19), uma mulher de baixa estatura, cabelos curtos e postura encurvada chegava a passos curtos para tomar assento em uma das duas salas da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. Não era a primeira vez no dia que Delfina Santos, 67 anos, passava por ali — estava em sua terceira sessão de pintura nas folhas em tamanho ofício acomodadas à sua frente. Cada lenta pincelada era intercalada pela análise atenta de um pacote de biscoitos ou de uma embalagem de ducha elétrica e um sorriso silencioso a quem a observava à distância. O que a artista expressava no papel, porém, tinha pouco a ver com o que via dentro da sala. Em traçado que remetia a um desenho infantil, figuras humanas soltas ao lado de janelas predominavam nas imagens.
— Às vezes, ela vem duas, três vezes ao dia. Vai e volta, olhando os prédios, os pavilhões. De certa forma, parece que retrata o dia a dia — relata a psicóloga Gisele Sanches, que acompanha uma das turmas da oficina de pintura e desenho.
De cenas comezinhas como as retratadas por Delfina — uma das 120 moradoras do São Pedro — até a abstração de complexos universos interiores, todo o material produzido pelos pacientes do hospital psiquiátrico é comemorado pelos idealizadores da iniciativa. De segunda a sexta, a oficina promove atividades de pintura, desenho, bordado, escrita e escultura nas dependências do antigo hospício. É o triunfo da criatividade sobre o sofrimento de pessoas para quem, muitas vezes, expressar-se é um processo angustiante.
O acervo recebeu, neste ano, reconhecimento nacional. O projeto Arquivo e Testemunho: Acervo da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro reúne mais de 200 mil trabalhos produzidos por Delfina e outras centenas de pacientes que vivem ou passaram pelo hospital nos últimos 27 anos. Em outubro, seus idealizadores vão Rio de Janeiro receber do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade — além de R$ 30 mil —, que contempla iniciativas de preservação do patrimônio cultural, por, segundo o órgão, "ser uma iniciativa inovadora, que congrega as ciências humanas e políticas de saúde".
É o resultado de quase três décadas do trabalho dedicado de uma equipe composta por psicólogos, assistentes sociais e estagiários de Artes que se dedicam às oficinas. Sem incentivo financeiro do governo do Estado, que administra o hospital, as atividades são mantidas por meio de parcerias, doações, ações entre amigos, ou mesmo pela boa vontade dos funcionários, que por vezes levam os materiais utilizados nas atividades.
Duas salas de um dos pavilhões do São Pedro, destinadas às oficinas, barram a indiferença já na chegada. Dentro delas, além de mesas compridas, bancos e materiais de desenho e pintura, mensagens reflexivas ou bem-humoradas sobre a condição psicológica dos pacientes estão espalhadas pelas paredes, provocando desavisados: "não é sinal de saúde ser adaptado numa sociedade doente", diz uma delas.
— As pessoas que sofrem de problemas psiquiátricos, às vezes, têm dificuldade de se expressar pela linguagem que costumamos usar, mas se expressam por outras. Também tem uma questão social, porque nas oficinais elas começam a ter relações com outras pessoas, com compromissos. Aqui, preparamos a passagem: para que a pessoa possa se apaziguar com o mundo ou se aceitar do jeito que é — avalia e psicóloga Barbara Neubarth, coordenadora dos trabalhos.
Aqui, preparamos a passagem: para que a pessoa possa se apaziguar com o mundo ou se aceitar do jeito que é
Barbara Neubarth
Psicóloga
Apesar das dificuldades, o projeto de organizar e catalogar as obras produzidas pelos pacientes veio antes da inscrição na premiação nacional, cuja verba será investida em um espaço novo, atualmente em obras. Com R$ 4 mil obtidos em uma ação entre amigos, Barbara e outros profissionais envolvidos com as atividades reformaram, neste ano, a área que acomodará o acervo e as oficinas. Desde fevereiro, quando problemas de infiltração ocasionaram a queda de um pedaço do teto da sala que abrigava as obras dos pacientes, os milhares de trabalhos começaram a ser distribuídos entre estantes e arquivos, separados por ano de produção — estudantes da UFRGS realizaram a catalogação das obras, que serão digitalizadas para a criação de um museu virtual. Diferentemente do resultado das oficinas, que por vezes surpreende — dezenas das obras já foram expostas em museus, e produções literárias de pacientes foram publicadas —, o dinheiro vindo do governo federal, considerado bem-vindo para a melhoria do espaço, atendeu a expectativas:
— A gente ficou muito feliz, mas eu tinha muita fé. Sempre achei que éramos fortes candidatos. São 27 anos de trabalho sério — comemora Barbara.