Sem identificação no endereço, numeração na frente da casa ou linha telefônica, restam duas dicas para chegar à Florentina dos Santos Marques, no bairro Jardim da Paz, em São Borja: a miscelânea de folhagens e árvores no pátio e as indicações de uma cidade inteira. No município da Fronteira Oeste, todos sabem quem ela é e onde ela vive.
Antes de entrar na casa de alvenaria, é preciso passar por um estreito túnel verde formado durante cinco décadas em frente à única porta de acesso ao pequeno santuário criado dentro da morada. Quem chega pela primeira vez ao local surpreende-se com o espaço onde cabem, no máximo, três pessoas espremidas. No que um dia foram a cozinha e as salas de estar e de jantar, há centenas, talvez milhares de metros de fitas de cetim dispostas em varais improvisados e flores de plástico descoloridas pelo tempo e entulhadas nos corredores, sobre os móveis e embaixo da mesa e das cadeiras. São presentes deixados por quem – do desempregado ao doutor – visita Florentina em busca de suas previsões, bênçãos e preces, distribuídas há pelo menos três décadas. A crença dela é vinculada a entidades de diferentes religiões e a um misterioso homem que teria visitado São Borja em 1926, apelidado de Senhor Monge. Florentina, ou Dona Florzinha, como é conhecida, tem 80 anos. É uma benzedeira forjada na dor.
Foi a partir da perda do marido, o carpinteiro Marçal Marques, vítima de um derrame na década de 1980, que o dom até então desconhecido surgiu. Dos 18 anos, quando casou, até enviuvar, depois de mais de 30 anos de casamento, ela viveu com uma missão: cuidar da casa e do parceiro. Marçal era um solteirão próximo aos 40 anos, disputado pelas mulheres são-borjenses, quando se engraçou pela jovem vaidosa, conhecida por desfilar longos vestidos nas ruas da cidade.
Certo dia, ela recorda, o homem tomou coragem e a abordou no caminho para casa. Disse apenas que a pediria em namoro aos pais dela. No mesmo dia, ele cumpriu a promessa. Dona Florzinha, que não esconde ter simpatizado com Marçal na primeira conversa, teve a liberação da família e passou a namorar o marceneiro, de quem se separou apenas no dia da morte dele.
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Ela gastou todas as economias para cuidar do marido. Vendeu os terrenos pertencentes ao casal, ficando apenas com a casa onde vive até hoje e o presente de casamento dado pela sogra, Guilhermina: um quadro em formato oval com a foto do Senhor Monge. A imagem serviria para proteger a família. Guilhermina, recorda a benzedeira, foi uma das testemunhas dos milagres do homem que, conforme as crenças do povo, mesmo andando sob a chuva, não se molhava.
Católica fervorosa, Dona Florzinha acredita terem sido a própria fé e o quadro os responsáveis por protegê-la no momento de maior fragilidade depois da partida de Marçal. Numa tarde, durante um cochilo, ouviu barulhos vindos da cozinha. Pensou em ratos e resolveu espantá-los. Ao sair do quarto, deparou com dois homens dentro de casa. Eles não a agrediram, mas recolheram o que podiam antes de fugirem pelos fundos do pátio. A foto do Senhor Monge, pendurada na parede da sala onde hoje ocorrem as bênçãos, não foi tocada pelos ladrões. O furto a deprimiu ainda mais. Deixou de comer e perdeu a vontade de viver. A mudança veio enquanto orava.
Estava apavorada. Foi quando ouvi uma voz: ‘Filha, não fica triste. Reage!’. Daquela hora em diante, Comecei a benzer os mais conhecidos e a coisa se espalhou pela cidade.
DONA FLORZINHA
Benzedeira
— Daquela hora em diante, minha vida melhorou, melhorou. Comecei a benzer os mais conhecidos e a coisa se espalhou pela cidade – relata, numa espécie de eco que dá ritmo a sua fala.
Mesmo avessa ao esoterismo, ela garante ter aprendido a prever o futuro nas cartas depois de ter ouvido essa mesma voz.
— Eu tinha um jogo de baralho guardado. Então, veio aquela coisa me empurrando e me obrigando a estender as cartas sobre a mesa. Aquela voz dizia: “Isso quer dizer isso, isso quer dizer aquilo”. Desde então, virei cartomante — resume.
Aos poucos, a fama de Florzinha cresceu. A cada novo pedido realizado, um novo visitante surgia. Ela começou a receber gente até de outros Estados, como Rio de Janeiro e São Paulo. Pela sua casa, passam pessoas em busca de um emprego, homens e mulheres inconsoláveis com a separação, mães e pais desesperados pela doença de um filho, políticos em busca de um novo cargo, apaixonados à espera do amor não correspondido. Ninguém agenda horário. Se ela está em atendimento, o próximo cliente espera no pátio. Não cobra pelas benzeduras, somente uma quantia simbólica pelo jogo de cartas. Aos poucos, deixou de ser dona da própria rotina. Avessa à tecnologia, jamais aceitou ter um telefone, mesmo com a insistência dos admiradores em lhe darem um aparelho de presente. Quem quiser encontrá-la precisa ir até o local.
— Quando vejo, chegam dizendo que querem se benzer e mostrando o problema que têm. Benzo, eles voltam para dizer que ficaram sãos, não sentem mais nada. Sara da perna, sara do estômago, sara de tudo. Chega uma pessoa, e não vou dizer “espera aí, depois te atendo”. Atendo na hora. Me sinto felicíssima! Felicíssima! Não tenho hora para tomar meu mate, não tenho hora para almoçar, não tenho hora para jantar — afirma.
Apesar da fama de benzedeira, Dona Florzinha assegura ser apenas uma ponte entre o Senhor Monge e os necessitados. As orações, únicas para cada visitante, seriam feitas por ele. A benzedeira identifica-se como a zeladora da imagem amarelada, pendurada e quase escondida entre as fitas das graças alcançadas. Trata-se de uma das raras fotos que indicam que o homem passou por São Borja. Mas quem foi o Senhor Monge?
Juan Manuel Baptista era um caminhante, segundo consta, oriundo da Índia e que se comunicava perfeitamente em espanhol. Em texto publicado no jornal são-borjense O Fronteiriço, em março de 1999, o historiador e pesquisador Timótheo Ávila contou histórias que ouviu de sua mãe, Algemira Villanueva. Juan Manuel chegara ao Brasil vindo de Santo Thomé, na Argentina, em 1926. O mistério sobre ele teria começado antes mesmo de cruzar o Rio Uruguai. O que Algemira e outros moradores da época diziam é que o lancheiro João Laguna, responsável pelo transporte de passageiros entre as duas fronteiras, ofereceu carona ao homem de longa barba que carregava uma Bíblia nas mãos e usava uma esvoaçante capa preta. Ao recusar a oferta, narravam Algemira e outros moradores, Juan teria respondido:
– Gracias, mi hijo. Yo voy arriba de una oyita. (“Obrigado, meu filho! Vou em cima de uma folhinha”, em tradução literal).
Quando a lancha chegou ao lado brasileiro, Juan já estaria posicionado na margem. Aos olhos dos são-borjenses, teria sido o primeiro milagre do homem, que se identificava como enviado de Deus.
No texto, Timótheo ainda revela que sua mãe teria sido uma das pessoas abençoadas pelo homem, que a partir de então passou a ser identificado no município gaúcho como o Senhor Monge. Ao ser benzida por Juan Manuel, Algemira, até então uma dona de casa analfabeta, ganhou o poder de curar os enfermos, tornando-se também homeopata e espírita.
Outra das histórias ligadas ao Senhor Monge seria uma premonição da chegada de um são-borjense ao posto de homem mais poderoso do Brasil – o que ocorreu logo em seguida, quando Getúlio Vargas se tornou presidente, em 1930.
Em outra edição do mesmo jornal, no mesmo ano, Timótheo seguiu relatando as aventuras do Senhor Monge no município. Há, inclusive, uma foto na qual ele aparece segurando uma Bíblia entre moradores e alguns militares da cidade. Sem identificação do autor, a imagem teria sido feita numa praça no bairro Passo. Juan Manuel passou a ser protegido pelos militares depois de ser apedrejado por pedestres enquanto tentava erguer uma barraca improvisada na Rua da República. Havia quem temesse os poderes do homem. Os relatos das testemunhas dizem que ele não revidava e seguia em oração, pedindo bênçãos aos agressores. Segundo os relatos, Senhor Monge teria permanecido por alguns meses na cidade, antes de desaparecer sem deixar rastros.
— Ele era muito bonito. Olha bem firme para nós — observa Dona Florzinha, acariciando a imagem.
Na casa da benzedeira, as fitas e as flores artificiais deixadas ao Senhor Monge vão sendo consumidas pelo tempo — mas não pela memória afiada da benzedeira. Ela rememora as conversas com os clientes a partir de cada lembrança deixada na casa. O buquê com flores lilás foi deixado por uma mulher que havia pedido um novo emprego — e o conseguiu. O de flores vermelhas veio de um senhor em preces pela aposentadoria conquistada após dois anos encaminhando o processo. As quatro rosas amarelas no vaso azul foram a oferta de uma mãe cujo filho doente curou-se depois de suas preces. As três azuis, enroladas em um plástico, foram deixadas por uma mulher que chegou com o corpo repleto de feridas. Já havia tentado diferentes dermatologistas e nenhum acertava o problema. Depois de ser benzida, diz ter sarado.
— Acho que era sarna mesmo. Sarna mesmo — define Florentina.
Chorando, um homem pediu ajuda para reconquistar sua esposa. Com pena, a benzedeira fez as preces. Semanas depois, ele voltou com fitas coloridas, agradecendo pelo fato de que a companheira havia voltado para casa. O mesmo ocorreu com uma jovem, recém-separada do marido. Pensava em suicídio, caso não retomassem o relacionamento. Florzinha a pegou pelo braço e a repreendeu:
— Vai te sossegar! Tu vai morrer e ele vai ficar dando sopa para as outras!
Assustada e, ao mesmo tempo, agradecida pelo conselho, a mulher foi embora após a prece. Meses depois, voltou com um quadro embaixo do braço. Tratava-se de um desenho reproduzindo a imagem do Senhor Monge. Era um agradecimento pela volta do marido.
A história já conta mais de 10 anos, e o quadro de moldura azul segue até hoje sobre a mesa da cozinha, entre pratos, copos, os vasos com flores e até alguns anúncios de venda de casas e apartamentos. Sim: o homem misterioso também ajuda nos pedidos de negócios, incluindo a comercialização de imóveis.
— As pessoas deixam os anúncios aqui, na mesa, com telefone e tudo, porque sabem que passam muitos por aqui. Um deles pode ler e querer comprar, né? — comenta Dona Florzinha.
Há uma década, um funcionário público de 32 anos, que pediu para não ser identificado, encontrou nas preces da herdeira do Senhor Monge a paz necessária para enfrentar as dificuldades diárias. A indicação veio da própria família, que buscava em Florentina a saída para problemas de doença, tristeza e falta de emprego. Todos receberam as graças e trouxeram fitas e flores. Semanalmente, ele a reencontra para garantir uma nova benzedura.
A visita tornou-se rotina há dois anos, quando voltou ao mercado de trabalho depois de pedir ajuda divina. Nesse período, afirma, já conseguiu uma promoção.
— Minha mãe e minhas tias acreditam muito no bem que ela faz. Passei a acreditar quando me ajudou a ter aquilo que eu mais queria: um emprego com carteira assinada. Meu irmão também conseguiu depois de vir aqui. Só não me identifico porque não sei como as pessoas que não acreditam poderiam me ver na rua — explica.
Enquanto a reportagem entrevistava Florentina, uma jovem aproximou-se pedindo para saber o futuro por meio das cartas. Cliente antiga, costuma também pedir orações. Cada uma delas é diferente, como a equipe de ZH pôde conferir. Florentina fez questão de benzer a repórter, o fotógrafo e o motorista em momentos distintos. Rezando de forma distinta, em frente ao quadro do Senhor Monge, ela relata situações e dá conselhos.
Antes da oração, pede para o visitante ficar de frente para a imagem amarelada, com a cabeça curvada e os olhos fechados. É preciso concentrar-se no pedido. Florentina, que tem 1m50cm de altura, agiganta-se durante a prece. Posicionada atrás de quem busca a oração, de olhos sempre fechados, ergue os braços, coloca uma das mãos sobre a cabeça do visitante e, com a outra, faz inúmeras vezes o sinal da cruz de cima para baixo e de baixo para cima, passando os dedos sobre as costas. Na prece, evoca Deus, Jesus, “Senhor Monginho” e inúmeros santos e orixás, além de rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria, pedir auxílio para diferentes situações e, quase no final, citar o que seria um “conselho divino” — geralmente, voltado para uma situação enfrentada por quem a procura. O ritual, que nunca é igual, pode durar de dois a quatro minutos.
Com a mesma vaidade pela qual era conhecida na juventude, Florzinha pinta os cabelos em tom avermelhado, mantém a sobrancelha desenhada à lápis preto e troca as cores das longas unhas conforme o humor. Verde é a cor favorita porque lembra as matas, sustenta a curandeira.
Na casa onde vive há mais de 50 anos, seja inverno ou verão, Dona Florzinha gosta de usar um longo casaco de lã marrom. O motivo, explicado por ela aos risos, é porque serve também como vestido — ainda que, por baixo, ela esteja usando outro vestido, como foi durante os três encontros que manteve com a reportagem.
O chinelo de tecido é o calçado favorito. E é assim, junto com um sorriso largo, que recebe todos os visitantes. Não há qualquer cerimônia para o encontro.
Florzinha garante não sentir falta dos luxos dos tempos de casada, quando o marido a presenteava com roupas e joias novas — tempo de bonança que ficou para trás com os gastos despendidos com a saúde do homem. Hoje, aceita todos os tipos de mimos deixados pelos visitantes — até pão caseiro é doado como agradecimento — e admite gostar de ter comida farta na geladeira.
Ela deixa a morada apenas uma ou duas vezes por mês, sempre para ir ao supermercado ou às lojas localizadas no centro de São Borja. Mas não fica muitas horas fora porque se sente melhor distante da multidão. Já pensou em eliminar a solidão adotando um cachorro.
Por que não concretizou o desejo, Dona Florzinha?
– Temo o dia de amanhã, não sei se ainda estarei entre os vivos.
A televisão de 14 polegadas e o chimarrão são os grandes companheiros das jornadas diárias iniciadas por volta das 7h. Ela está sempre disponível para os clientes que aparecem. Faz um intervalo ao final do dia, usualmente entre 18h e 20h, e só encerra a jornada perto das 23h. Diz não entender direito por qual motivo precisa desse hiato diário no início da noite.
– Só o que sei é que perco as forças quando as 18h vão se aproximando.
Um profundo cansaço toma conta do corpo, “quase lhe tirando a consciência”, e é preciso deitar em silêncio até reencontrar motivação para levantar da cama, reenergizada – geralmente, duas horas depois.
Pela manhã, ao acordar, e à noite, antes de dormir, cumpre um ritual diário. Por vezes, confessa, é preciso sacudir-se para conseguir forças para repeti-lo, mantendo a tradição.
– Logo de manhã, me levanto e vou me lavar. Já me levanto e vou me lavar. E rezar. E rezar. Aí, depois eu rezo e vou providenciar o meu mate. Porque, às vezes, eu já tô louca para parar de rezar e ir tomar mate. Aí, eu digo (para si mesma): “Mas, relaxada, vai rezar! Como é que tu vai trocar Deus por uma água quente? Vai rezar, relaxada! Caminha!”. E aí eu vou rezar.
Nos cômodos da casa, ainda há espaço para imagens de Santa Rita, Nossa Senhora, Santo Expedito e São Jorge. Mas é Oxóssi, que no sincretismo religioso representa São Sebastião, que tem a maior admiração de Dona Florzinha.
Trata-se do orixá da fartura, da caça, dos animais e das florestas. Admiradora das flores e das matas, por acreditar na energia divina advinda da natureza, a benzedeira deixou as rosas, as árvores e os arbustos tomarem conta do pátio e do acesso à casa. Foi a forma encontrada para se sentir mais próxima — dentro, mesmo — de uma floresta. Diz que, quando está plantando ou colhendo flores, sente a “felicidade completa”.
— Tem gente que diz: “Eu não gosto da terra. Não gosto da terra”. Pois eu adoro a terra, porque é dela que recebemos tudo. Tudo. Aquela planta ali é diferente desta aqui. A outra é diferente daquela. Isso tudo vem do poder de Deus e das bênçãos divinas — justifica.
No exato momento em que ela concluiu o raciocínio, um joão-de-barro, que da ponta do telhado da casa acompanhava havia alguns minutos os passos de Dona Florzinha pelo pátio, bateu asas na direção dela.
— Olha aí, é uma benção divina! — exclamou a benzedeira, apontando para o passarinho que passou perto dela no caminho até as árvores do terreno, de onde seguiu acompanhando o caminhar da mulher.
*Colaborou Matheus Bernardes, aluno de Jornalismo da Unipampa que participou do projeto Primeira Pauta em 2017.