Aos 13 anos, João Alfredo Dresch, provocado por um amigo, desmontou e consertou sozinho um ferro elétrico. Antes de começar o trabalho, analisou a disposição interna de cada centímetro do aparelho desmanchado e recorreu à observação para trocar as peças antigas por outras. Apesar de desconhecer questões técnicas, comportou-se como se dominasse a engenharia mecânica que faz o equipamento funcionar. E, de fato, em poucas horas, ele estava novamente operando.
Pelas lembranças de Dresch, hoje um empresário de 72 anos, essa foi apenas a primeira das vezes em que a falta de conhecimento técnico específico não impediu que ele recuperasse ou mesmo criasse equipamentos eletrônicos. A mais improvável dessas ocasiões se deu quando ele se impôs o maior dos desafios: construir um carro elétrico.
O plano surgiu, em 2009, em uma viagem de férias à Itália. Enquanto caminhava pelas ruas de Roma, o autodidata de Lajeado, no Vale do Taquari, encantou-se por um carro estacionado e conectado a uma tomada, junto a um poste de energia elétrica. Falou com a proprietária. Conferiu cada detalhe do automóvel. Queria ele próprio ter um assim. Com apenas o Ensino Fundamental concluído, mais um curso especializado de eletrônica, firmou convicção de que seria capaz de fabricar um veículo semelhante no retorno ao Rio Grande do Sul. Ainda durante a viagem, visitou fábricas italianas e começou a fazer as contas dos gastos. Até a finalização da montagem, contrataria 10 profissionais de diferentes áreas – mecânico, pintor, engenheiro, entre outros. De frases curtas e sem rodeios, chegava perguntando se, caso construísse um carro elétrico, eles o fariam rodar. Apesar da incerteza, conseguiu reunir o grupo necessário para fazer surgir o projeto JAD (o nome é a união das iniciais do inventor).
Dresch não revela a quantia investida na façanha – inicialmente desacreditada por quase todos os que ouviam seus planos. Mesmo sem ter um esboço rabiscado, resumiu à equipe que queria um veículo somente com aceleração e freio, que fosse "bivolt" (recarregável em 110v e 220v) e que "coubesse em qualquer cantinho". O mais importante era não depender de combustível e de um motor convencional, evitando a emissão de poluentes. A meta era ser sustentável.
Foram quase três meses para montar o chassi do veículo. Depois, sem qualquer projeto de design, Dresch fez um molde de papelão em tamanho real. Ele mesmo o recortou até chegar ao visual desejado. A partir do modelo ideal, construiu o "esqueleto" do veículo com tábuas de compensado. Depois, cobriu-o com fibra de vidro. Mas precisou desmanchar três vezes a parte de cima até conseguir acomodar seu 1m71cm de altura dentro do veículo. Outro problema surgiu ao concluir a obra. A porta ficou estreita demais, impedindo a entrada no veículo. Foi preciso recortar a parte frontal e aumentá-la em 15 centímetros.
– Fiz umas 10 adaptações. Porque não sou engenheiro. Sou apenas um curioso. Mas tenho o costume de dizer: "Não erro; eu deixo de acertar. Se errei, estou perto de acertar" – diz Dresch.
Durante a fabricação da estrutura do JAD, o empresário percorreu lojas e ferros-velhos no Rio Grande do Sul e em São Paulo e andou até no Paraguai para encontrar peças – usadas e novas – que comporiam o protótipo. Os faróis vieram de uma moto Biz 125; o para-brisa, de um caminhão; o painel foi retirado de um Corsa; as sinaleiras saíram de um carro acidentado em São Paulo; as 14 baterias de teste vieram do Paraguai; e os bancos, retirados de uma Meriva capotada. Dresch os queria cobertos de couro, por isso, recorreu a um especialista em Porto Alegre. Porém, na chegada à capital gaúcha, foi recepcionado com descrença.
– Vocês revestem bancos para automóvel? – questionou ao estofador.
– Qual marca? – ouviu de volta.
– Nenhuma. Eu montei um carro.
– Mas que carro? Só se trouxer aqui para eu ver – disse o especialista, ainda desconfiando do cliente.
Dresch voltou a Lajeado, colocou o JAD em cima de uma caminhonete L200 e refez os 110 quilômetros até a capital gaúcha. Na chegada, precisou da ajuda de quatro surpresos funcionários da estofaria. Todos queriam conferir de perto o miniveículo antes de movê-lo. Na loja, apelidaram-no de "carro do Mr. Bean" – o atrapalhado personagem britânico criado por Rowan Atkinson, que dirigia um Morris Mini Cooper. Em três dias, JAD ganhou poltronas de couro branco e vermelho, com as iniciais do criador bordadas.
Para dificultar o trabalho de eventuais ladrões, ele criou as portas sem maçanetas. Elas são abertas apenas por controle remoto, assim como os vidros. Na ânsia de diferenciá-lo de qualquer outro automóvel, ainda escolheu uma cor pouco utilizada na época, identificada como "vermelho tangerina".
Aos risos, Dresch recorda um dos momentos mais tensos antes de finalizar o protótipo. Em 2011, voltava do Paraguai com 14 baterias no porta-malas quando foi parado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF). Eram 3h da madrugada de um inverno rigoroso. Após a abordagen inicial, na qual o agente da PRF informava a necessidade de apreender o material trazido do Exterior, a conversa tomou outro rumo.
– Você tem uma revenda de motos? – questionou o policial.
– Não. Estou fazendo um carro elétrico – respondeu Dresch.
– Tá rindo da minha cara! – duvidou o rodoviário.
Por sorte, Dresch guardava no porta-luvas da caminhonete uma fotografia do chassi ainda coberto com papelão.
– Mas isso é um carro de papel! – indignou-se o agente.
– Acho que ele está falando sério – comentou, logo a seguir, outro policial presente, após novas explicações de Dresch.
Ao fim do diálogo, o policial pediu que o empresário de Lajeado se dirigisse ao mesmo local, com o JAD, quando este estivesse pronto – o que ele ainda não fez, embora acredite que "os rodoviários o tenham visto na TV ou nas redes sociais". Isso porque, nos anos seguintes, o veículo no qual cabem "dois passageiros e um cachorro pequinês", como o dono o define, tornou-se famoso com sua ficha técnica incomum: 1m5cm de largura, 1m95cm de comprimento, alcance de 70km/h, autonomia de duas horas após carregamento na rede elétrica durante outras duas horas e baixo custo de rodagem (na época, R$ 0,10 por quilômetro, quando um carro popular consome, em média, três vezes mais).
Entretanto, o empresário teve dificuldades para ser reconhecido pelo Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran-RS). Ele ingressou com o processo de emplacamento em março de 2011, tendo de enfrentar 31 meses de espera e sete visitas ao Detran para apresentar as alterações exigidas. Apesar dos problemas, considera-se um homem de sorte: o Estado recém iniciara emplacamentos com a letra J, por isso conseguiu registrar as iniciais do nome na placa – que ficou sendo JAD-0713.
Dresch evita até hoje colocar o miniveículo numa estrada de grande movimento. Ele teme não ser visualizado pelos caminhoneiros. Nem por isso deixou de ir a outras cidades e Estados – mas na carona de veículos maiores. Para chegar a Capão da Canoa a cada temporada de verão, por exemplo, o JAD é levado sobre um reboque. O mesmo ocorreu nas feiras de automóveis, em Palhoça (SC) e Curitiba (PR). Criador e criatura também já percorreram as ruas do Rio de Janeiro e estiveram nos estúdios da TV Globo. Em 2014, a apresentadora Ana Maria Braga e o cantor sertanejo Daniel conduziram o JAD no programa Mais Você. A divulgação da invenção garantiu a ele respeito dos conterrâneos que, até então, mostravam-se incrédulos. Alguns o apelidaram de Henry Ford do Vale do Taquari, em referência ao empreendedor norte-americano que revolucionou a indústria automobilística.
– Meu maior orgulho é ter o primeiro carro genuinamente elétrico emplacado no Brasil. Tem quem ainda me chame de louco, mas não me arrependo de nada e não me preocupo com ninguém. Só comigo – garante.
Dresch não perdeu o ânimo nem com a terceira multa aplicada pelos funcionários da prefeitura de Lajeado, em 2014. Ele estava estacionando no oblíquo na área central da cidade para demonstrar a curiosos que o cercavam que, em uma única vaga, caberiam quatro JADs. Pagou a multa de R$ 85,13 por infração de nível médio e seguiu dirigindo o carrinho pelas ruas. Continua tentando, sem sucesso, conquistar o interesse de algum investidor. Fez parcerias, pensou em novos modelos, mas até hoje luta para fazer da invenção um modelo de série. Ele recebe ligações de interessados em comprá-la, isso sim. A maioria dos telefonemas vem do Nordeste. Mas o empresário admite não ter certeza de quanto custaria um JAD no mercado – calcula que até R$ 30 mil.
Ele quer ver o carro tornar-se famoso como sua criação anterior, que foi patenteada há 18 anos e é conhecida até no Exterior – e nada tem a ver com automóveis. Durante três décadas, o empresário foi revendedor de fermento no Vale do Taquari. Com o fechamento da fábrica com a qual trabalhava, foi a São Paulo adquirir uma máquina para embalar o produto repassado por outro fornecedor. Desistiu ao ver uma engenhoca desmontada na loja: na mesma hora, pensou que poderia produzir uma semelhante.
Ainda no avião, no retorno ao Sul, desenhou aquela que viria ser a empacotadora a vácuo puro J.A.D. Projetada para todos os tipos de cereais, ela produz até cinco pacotes de 500g ou um saco de 25kg a cada 12 segundos. Dresch, então com 54 anos, parou de fornecer fermento para dedicar-se apenas à comercialização da própria criação. Mais de 240 máquinas já foram vendidas. O dinheiro arrecadado com as vendas serviu para ajudar na estabilidade financeira da família – o empresário é casado há 50 anos e tem três filhas – e ajudar na fabricação do carro.
Filho de um padeiro descendente de alemães e de uma dona de casa de origem italiana, diz desconhecer de onde vem a paixão por inventar. A única certeza é que, depois de consertar o ferro elétrico, aos 13 anos, como descrito no início desta reportagem, percebeu que poderia ir além. Aos 14, autodidata, começou a trabalhar numa loja de consertos de eletrodomésticos. Sempre disposto a aprender, ganhou do patrão um curso de eletrônica em São Paulo. Por lá, reconstruiu com outras peças até uma máquina de costura. Após servir ao Exército, comenta ter dado um longo tempo nas invenções ao casar e ter as filhas. A inspiração voltou com a empacotadora.
– De vez em quando, estou descendo as escadas de casa na direção da garagem e fico parado olhando para o JAD. Tem horas em que não acredito que o fabriquei.
Quando não está viajando para vender a máquina a vácuo, aproveita para tirar o JAD da garagem. Considera que o carro virou uma extensão do próprio corpo. Dentro do veículo, esquece o mundo à volta. É como se estivesse em outra dimensão, garante. Só retoma a consciência ao ser chamado por algum admirador. Foi o que ocorreu ao fazer demonstrações para a reportagem de GaúchaZH, em uma rua de pouco movimento de Lajeado. Após estacioná-lo de ré, num espaço de menos de 1m50cm entre outros dois veículos, Dresch foi parado pelo educador físico Mauro Castro, 38 anos. Timidamente, o morador de Porto Alegre, que estava na cidade para um congresso, aproximou-se com um celular pedindo para fazer um vídeo do carro – e, claro, tirar fotos com o seu inventor.
– Se cobrasse R$ 1 por foto, já tinha dinheiro suficiente para colocar o carro nas lojas – comentou Dresch, para gargalhadas de todos.
Em 2016, o empresário recebeu apoio da Universidade de Passo Fundo (UPF) para produzir o projeto do JAD II, um elétrico mais potente e com mais autonomia. Estudantes da área da Engenharia debruçaram-se na criação de esboços até o início deste ano. Mesmo sem investimento financeiro de algum parceiro, Dresch decidiu tirar do papel uma das propostas dos alunos. Entre as novidades do JAD II (veja imagem abaixo), estão a opção também para cadeirantes, a velocidade e a autonomia: o carro deve alcançar 120km/h, podendo rodar até 400 quilômetros antes de ser recarregado.
Desta vez, Dresch conta com o auxílio do também inventor autodidata Adilson de Brito, 37 anos, que estudou até o terceiro ano, já construiu um carro anfíbio e criou uma máquina de limpeza usada pela prefeitura de Lajeado. Pelo menos 70 dias de trabalho já foram dispensados à criação do novo modelo, ainda mais silencioso do que o anterior. A reportagem andou no novo protótipo, e a sensação foi de estar flutuando ao circular em ruas de blocos de concreto. A dupla promete apresentar o JAD II até dezembro deste ano.
– Não vou morrer sem encontrar um investidor para o meu automóvel. Quero, pelo menos, deixar um bom legado. Com R$ 5 milhões, faço chover para cima – assegura Dresch, sem perder o entusiasmo característico.