A transformação com os carros elétricos não deve alterar os atuais pesos e medidas na indústria automobilística. No entanto, o mesmo não pode ser dito sobre o setor energético, com sérias implicações de ordem geopolítica. Nas últimas décadas, o planeta tem sido refém dos países produtores de petróleo, tem assistido a conflitos bélicos em série pelo controle das regiões aquinhoadas por grandes reservas e tem estado sujeito a variações brutais de preços, responsáveis por desencadear crises econômicas e doer no bolso do consumidor.
Com a ascensão do carro elétrico, as empresas petrolíferas deverão se reposicionar, colocando-se como empresas de energia e investindo em outros sistemas de geração, como o solar ou de hidrogênio. Já os países da Opep estarão com sua galinha dos ovos de ouro ameaçada pela degola. O Oriente Médio deve perder relevância global, enquanto nações com grandes jazidas dos elementos usados na fabricação de baterias (lítio e cobalto), casos de Chile e Congo, são poderes em ascensão. O preço do lítio já triplicou de 2011 para cá.
– Transporte e logística são uma engrenagem fundamental de qualquer economia, por isso será uma grande vantagem não depender dos conflitos do petróleo. Ficou bem claro para mim que o investimento que o Brasil fez no pré-sal foi um equívoco. Hoje se sabe que a era do petróleo vai acabar antes do que se imaginava. Até 2010, dizia-se: daqui a 30 anos ainda vai ser quase a mesma coisa. Quem pensava assim vai ser atropelado pela História – defende o engenheiro e doutor em sustentabilidade energética Ricardo Fujii, analista da organização WWF Brasil.
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Mesmo assim, o Brasil estaria em uma condição vantajosa no mundo elétrico que se avizinha – uma dádiva de seu invejável potencial energético. O impacto no setor elétrico não seria tão grande. Segundo Fujii, a cada 10% da frota convertido para bateria, o aumento no consumo de eletricidade sobe 3%. Não é por acaso, portanto, que o laboratório para os movidos a bateria no Brasil seja a Usina Hidrelétrica de Itaipu, uma das maiores do mundo. Lá, em um galpão, já foram construídos mais de cem veículos elétricos, incluindo carros, jipes, ônibus, caminhões e até um avião.
– A Itaipu é uma produtora de energia elétrica. Ela não tem a missão ou a ambição de fabricar e vender carro. Mas temos a responsabilidade social de apoiar a eficiência energética e a baixa emissão de CO2. Por outro lado, o veículo elétrico vai consumir a nossa energia, então é um investimento que estamos fazendo em nosso próprio negócio. Por isso a mobilidade elétrica virou um tema estratégico na nossa empresa – explica o engenheiro Celso Novais, coordenador geral brasileiro da mobilidade elétrica sustentável de Itaipu Binacional.
A história de como Itaipu se tornou o epicentro da pesquisa com carros elétricos no Brasil começou há mais de uma década, mas continua desconhecida por muitos. O primeiro capítulo foi ambientado na Suíça, onde a empresa KWO, operadora de usinas hidrelétricas, estava às voltas com um problema: como transportar técnicos de manutenção pelos túneis que ligavam suas unidades.
Por mais que se investisse em ventilação, o dióxido de carbono produzido por veículos a combustão se acumulava. A solução foi desenvolver um veículo que não produzisse emissões, o que não havia no mercado à época. Começou a comprar automóveis convencionais e a dotá-los de motores elétricos. Transformou Twingos e Smarts em pioneiros carros elétricos.
Em 2006, a KWO contatou a Itaipu Binacional para propor uma parceria. As duas empresas tinham já um acordo de cooperação técnica no ramo hidrelétrico, e os suíços propuseram a brasileiros e paraguaios participarem também do desenvolvimento dos carros a bateria. Ofereciam a tecnologia que criaram para que se adaptassem veículos aqui.
– Fomos privilegiados, porque no primeiro momento sabíamos nada de veículos elétricos – reconhece Novais.
A KWO repassou o know how de motor, inversor, bateria, eletrônica de potência e software – todo o coração do carro elétrico – para a estatal latino-americana. A Itaipu, por sua vez, buscou parceiros na indústria automotiva e começou a converter os automóveis, a princípio Fiats Palio. Cada novo veículo convertido representava um avanço – e carregava mais tecnologia nacional.
A estratégia adotada por Itaipu foi chamar indústrias nacionais dos diferentes segmentos – a Weg para motores e a Moura para baterias, por exemplo – e envolvê-las no desenvolvimento de produtos 100% nacionais, a partir da tecnologia fornecida pela parceira da Suíça.
– Motor qualquer um faz, mas motor para carro elétrico, que tenha altíssima potência e seja bem leve, isso exige técnicas avançadas. Uma das coisas mais complexas era a bateria. O Brasil só tinha essa bateria usada para dar partida nos carros. Com bateria de tração, que é de outras características, não tínhamos nenhuma experiência. Começamos a produzir os primeiros carros com componentes importados de Alemanha e Suíça. E, à medida que íamos montando, íamos nacionalizando. Primeiro troca o motor, depois, os cabos, em seguida, a bomba de vácuo – relata Novais.
Do Palio e do Palio Weekend, Itaipu fez cem conversões. Metade desses veículos circula hoje em diferentes partes do Brasil, utilizados por parceiros do projeto. Dentro da usina, só no lado brasileiro, há 57 autos elétricos emplacados, usados em serviço, e 33 Twizy sem emplacamento que atendem ao sistema interno da empresa. O pequeno modelo elétrico da Renault é montado em Itaipu mesmo, graças a um acordo com a montadora francesa, recebendo modificações que incorporam tecnologia própria.
A área da usina conta hoje com 200 estações de recarga para os carros – um número que talvez não se encontre no Brasil inteiro. A prioridade agora é usar a tecnologia em veículos para o transporte público. Com carrocerias e chassis de fabricantes nacionais, Itaipu já montou ônibus, elétricos ou híbridos, hoje em testes. Mas o projeto atual, uma encomenda da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do governo brasileiro é mais ambicioso: no galpão, os engenheiros montam um coletivo que funciona a eletricidade e etanol, para o qual até a carroceria foi desenvolvida em Itaipu. Ele deve ficar pronto em 2018. A intenção é produzi-lo no futuro para uso nos grandes centros urbanos brasileiros.
Caminho longo no Brasil
O resultado desse projeto é que hoje, segundo Novais, o Brasil dispõe de empresas com tecnologia para fabricar todos os componentes necessários a um veículo elétrico. O problema é que, até aqui, nenhuma montadora está aproveitando esses fornecedores. Apesar de já terem havido anúncios – noticiou-se que a Nissan produziria aqui o Leaf, o elétrico mais vendido do mundo –, nenhum fabricante se arriscou a lançar um veículo nacional com tecnologia limpa.
O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Antonio Megale, diz que a chegada do carro elétrico no Brasil é inevitável, mas depende de incentivos. A principal reivindicação do setor é a isenção do IPI ou pelo menos uma redução significativa do imposto. Atualmente,os elétricos e os híbridos pagam a alíquota máxima, 25% sobre o valor do veículo. Um automóvel 1.0, por exemplo, paga apenas 7%.Os representantes da indústria têm mantido conversas com o governopara buscar a isenção.
O presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), Ricardo Guggisberg, é otimista: confia em uma medida provisória para já. Megale trabalha com uma escalade tempo mais alargada e fala em "próximos anos". Mas ressalta que, sem medidas nessa linha, fazer autos 100% a bateria no Brasil não é viável.
– O primeiro passo é o acesso ao produto, mas o poder aquisitivo da população é limitado. O preço é elevado, em parte pela tecnologia, que ainda é cara, mas também porque se paga um tributo elevado– afirma Megale.
O Ministério de Minas e Energia, em resposta a e-mail assinada por Carlos Alexandre Principe Pires, diretor do Departamento de Desenvolvimento Energético, deixou claro que "o caminho não é curto; é longo" e que "não faz sentido adotarmos uma tecnologia pelo simples fato de ela existir".
"É importante ressaltar que como nova tecnologia, os elétricos ainda são muito caros, não só no Brasil, mas em grande parte do mundo. Um veículo assim, mesmo com isenção de impostos de importação, chega ao consumidor final às vezes custando o dobro de um veículo a combustão", afirma o e-mail do ministério.
Por enquanto, o que se encontra no mercado nacional são importados. ZH contatou algumas montadoras, e também concessionárias do Estado, e a demanda por informações sobre os carros elétricos em geral teve como resposta a indiferença ou o silêncio absoluto.
Eduarda Pellanda, professor da PUCRS que comprou um modelo i3 elétrico no ano passado, conta que a aquisição foi uma empreitada complicada. Na concessionária de Porto Alegre, o carro não existia, porque a montadora havia feito a capacitação de seus representantes em poucas cidades e não incluíra a capital gaúcha. Ele precisou propor fazer a manutenção em Joinville (SC), onde a BMW tem fábrica, para efetivar a compra. Fechou o negócio sem nunca ter visto o carro à frente. E isso que o i3 é, provavelmente, o elétrico mais vendido do Brasil.
– Estudei muito o carro. Vi que o Rio Grande do Sul era dos poucos Estados em que o IPVA é isento para elétricos. Resolvi arriscar. Fui o primeiro a ter, em Porto Alegre. A ideia era ser um influenciador, e o segundo comprador foi justamente uma pessoa que viu meu carro e comprou também – conta Pellanda.
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Nesse cenário, algumas iniciativas modestas tentam turbinar a história do carro elétrico no Brasil. Uma pequena empresa do Paraná, por exemplo, a Hitech Electric, firmou parceria com a estatal chinesa Aoxin para espalhar automóveis a bateria pelo país. No momento, a empresa, que se originou de uma equipe de carros de corrida, busca a homologação para comercializar um par de modelos de passeio, de dois e quatro lugares, além de veículos de carga. O menor custará R$ 49.890,e o maior, R$ 54.890. Eles serão carregados totalmente em seis a oito horas, numa tomada comum, ao custo de R$ 4,50 (ou 30 minutos,num eletroposto). Com essa carga, correspondente ao custo de um litro de gasolina, farão 120 quilômetros.
O fundador da Hitech, o engenheiro Rodrigo Contin, já importou 24 unidades da China,pequenos veículos bivolt usados por enquanto em parques e empresas,porque ainda não receberam a homologação para circular nas ruas. Até o fim do ano, a previsão é colocar no mercado brasileiro cem unidades, customizadas para a realidade nacional – ou “tropicalizados”, termo usado pela direção da empresa para se referir a características como a suspensão reforçada para enfrentaras esburacadas ruas brasileiras.Para 2018, a expectativa já é ter revendedores espalhados pelo país. Os planos da Hitech são ambiciosos. Hoje com oito funcionários, planeja trazer para o Brasil modelos de porte maior e, depois, fabricar os carros aqui.
– Ainda não há demanda. Sabemos que, como negócio, é algo para a próxima década. Mas quem dominar a tecnologia vai sair na frente. E o mercado vai explodir – aposta Contin.
Instalação de estações de reabastecimento é obstáculo
Mesmo que os elétricos comecem a inundar o mercado brasileiro, no entanto, ainda haverá um obstáculo brutal pela frente. Os modelos mais sofisticados já têm uma autonomia para lá de respeitável com a bateria cheia, caso do GM Bolt (cerca de 400 quilômetros) ou dos modelos da Tesla (que alcançaram o recorde de mil quilômetros). Mas, para viagens mais longas, há necessidade de estações de reabastecimento –o que ainda é uma ficção e afasta eventuais interessados.
A rede de postos de recarga no Brasil é mínima. Dados da ABVE indicam a existência de apenas uma centena. No Rio Grande do Sul, o aplicativo Plugshare, que indica os eletropostos em operação no mundo, oferece apenas uma alternativa: um estação instalada em um posto de gasolina próximo ao Shopping Iguatemi, em Porto Alegre. Fora isso, os postos mais próximos estão na BR-101, em Criciúma (SC), e no município de Tacuarembó, no Uruguai.
O i3 do professor Pellanda, por causa dessa precariedade, foi exportado para o Brasil com um pequeno motor sobressalente,dotado de um tanque para nove litros de gasolina, que serve para recarregar o motor elétrico em situações emergenciais. Ou seja, numa viagem, o proprietário pode ir colocando gasolina mais ou menos a cada 150 quilômetros, para conseguir chegar ao seu destino.Certamente, não é o ideal.
As iniciativas para mudar o quadro engatinham. Em outubro do ano passado, por exemplo, o engenheiro de telecomunicações Lucas de Parisinstalou com um sócio uma estação de recarga no Shopping Total, em Porto Alegre, mas ela ainda não atende clientes. A ideia nasceu em 2013, durante um programa de empreendedorismo nos EUA. Lucas voltou de lá convencido de que havia futuro no compartilhamento de carros elétricos e resolveu criar uma empresa com o sócio. Firmaram a parceria com o shopping e conseguiram um parceiro que prometeu um veículo para dar início ao negócio.
Correndo contra o tempo, os sócios tiveram de desenvolver seu próprio carregador, porque nenhum fabricante conseguiria entregar um equipamento no prazo. O aparelho foi feito com tecnologia própria, em três meses de trabalho, reduzindo uma carga completa de cerca de 12 horas, numa tomada comum, para cerca de três horas. Mas no final das contas o automóvel não veio.
– O que estamos fazendo é tentar levantar dinheiro para comprar um carro elétrico para aluguel. O eletroposto já está instalado e perfeitamente funcional. Por enquanto, é uma espécie de estande de demonstração, mas queremos usá-lo como um posto de abastecimento, para que não fique ocioso. Com o tempo, o objetivo é ter vários postos de recarga pela cidade e vários veículos para compartilhamento. O crescimento é lento, mas existe – diz Lucas de Paris.
As dimensões territoriais do país, contudo, tornam esse crescimento um desafio. Ricardo Guggisberg, presidente da ABVE, observa que os exemplos mais bem sucedidos são de países de extensão modesta, onde um número pequeno de estações já consegue cobrir todo ou quase todo o território.
– O tamanho do Brasil complica o investimento em eletropostos. A vantagem é que o brasileiro pode abastecer em casa e, se administrara autonomia, pode usar o veiculo 100% do tempo – destaca.
Veículo híbrido é aposta para "fase de transição"
Diante das dificuldades, analistas e empreendedores do setor entendem que, antes do carro elétrico, o Brasil viverá uma fase de transição, com difusão de uma opção intermediária:o veículo híbrido. Esses automóveis também são muito caros, mas oferecem uma tranquilidade ao consumidor: quando a bateria acaba, eles funcionam normalmente com combustível.
Dados da Anfavea indicam que, até o ano passado, já haviam sido licenciados no país 3.666 veículos híbridos ou elétricos– sendo que a esmagadora maioria era de híbridos. Em 2017, foram mais 1.452. No Rio Grande do Sul, há 458 unidades, segundo o Detran.
– O que precisa acontecer no Brasil é criar um mercado para o veículo elétrico para, a partir desse mercado, as montadoras investirem. E é mais fácil fazer isso com o híbrido do que com o veículo puramente elétrico – acredita Guggisberg.
No caso do professor Eduardo Pellanda, essa estratégia de transição gradual funcionou. Antes do i3, ele foi proprietário por dois anos de um Toyota Prius, o mais conhecido dos híbridos. A experiência deu segurança para que migrasse para um automóvel puramente elétrico.
– Estou superfeliz. Faz todo o sentido migrar para o carro elétrico. A revolução vai ser muito rápida – garante ele.