Eram apenas 20 quilômetros, mas tomaram quase uma hora dos pagadores de promessa em um percurso de carro. Depois de dois dias de tempestades, o sábado amanheceu com uma chuva grossa e intermitente, que se estendeu até a madrugada. A água transformou a terra arenosa que liga a comunidade Quilombolas dos Teixeiras ao centro de Mostardas em um lodo escorregadio, capaz de projetar até mesmo a traseira de uma caminhonete tracionada para fora da estrada. Sair da pista, aliás, estava fora de cogitação, já que as valetas em torno da via haviam se aprofundado com o temporal – sabe-se lá como sair depois de se enredar em uma delas.
– Não atolei na vinda, mas, se continuar chovendo, tenho certeza de que vou atolar na volta – prevê Cristiano da Silva, ao descer de seu enlameado carro de passeio, que chega ao destino com um pneu furado.
Aos 42 anos, conhecedor profundo da região, Cristiano foi criado nos Teixeiras e é hoje o líder da Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Mostardas. A agremiação vem lutando há anos para manter viva a tradição do ensaio de promessa de quicumbi. E é para conservar esse costume de raízes ao mesmo tempo gaúchas e africanas que, naquele sábado pouco convidativo, ele e a família se arriscaram sob a chuva em estradas vicinais até o CTG Tropeiros do Litoral, no centro do município. No amplo salão do local, vararam a madrugada cantando e dançando como quem diz obrigado pela graça alcançada por um plantador de arroz, em um ritual que começou às 18h e se estendeu até as 7h do dia seguinte.
– O ensaio de promessa deve começar ao entardecer e terminar quando o sol nasce – explica Télcio da Porciúncula, o plantador que encomendou o trabalho da irmandade.
Télcio é um entusiasta da cultura campeira, conhecido por promover festas e rodeios memoráveis na região. Quando realiza colheitas acima da média em sua lavoura de arroz, agradece a Nossa Senhora do Rosário com um Ensaio de Promessa de Quicumbi. Neste mês de julho, realizou pela quarta vez o evento, depois de quase duas décadas sem encomendá-lo. Esse tipo de pagamento de promessa é uma tradição no Litoral Sul, remontando ao século 19.
O devoto que tem um graça atendida por Nossa Senhora, seja uma boa colheita ou até a cura de uma doença, pede à irmandade um ensaio. Compostos usualmente por negros, os grupos têm em geral seis ou sete pares de dançantes, além de tamboreiro e pandeirista. Na data combinada com a turma, o portador da promessa recebe todos em sua casa, ou em outro espaço adequado, para entoar rezas e cantos do anoitecer até a alvorada. Para os que têm fé, o rito fortalece a ligação com a santa protetora.
Não há dinheiro envolvido no ensaio. Para os devotos da irmandade, que muitas vezes percorrem quilômetros – às vezes debaixo de chuva, como neste caso – para participar do encontro, a grande motivação é propagar uma tradição de seus ancestrais.
– Antes de morrer, meu tio pediu para que eu não deixasse a prática do ensaio desaparecer. Depois de cada ritual, sinto uma sensação muito boa, de leveza, de bem-estar. Além disso, sou devoto de Nossa Senhora do Rosário. Faço isso também por ela – afirma Cristiano.
Quicumbi é uma designação relativa aos escravos que vieram para trabalhar nos campos do litoral gaúcho, trazidos compulsoriamente de reinos da África. Os escravizados desenvolveram ao longo dos séculos características culturais próprias, combinando as religiosidades negra e cristã. Nesse sentido, o ensaio de promessa é expressão mais duradoura dessa combinação, sendo executado atualmente também pela Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Tavares, além da de Mostardas. Na última década, a agremiação mostardense tem realizado os eventos de maneira esparsa, passando às vezes um ou dois anos seguidos sem um encontro. Depois da promessa de Télcio, que teve ensaio no início de julho, há mais duas programadas para os próximos meses.
– É muito difícil fazer as novas gerações se interessarem pela cultura dos antepassados. Renovar os participantes é a maior dificuldade do grupo – avalia Cristiano.
Enquanto os mais jovens não se interessam pela tradição, os veteranos dão conta do recado. João Manoel da Silva, pai de Cristiano, é o mais velho do grupo. Aos 82 anos, não esmoreceu em momento algum da noite, cantando e executando coreografias pelo salão.
– O cansaço e a recuperação dos dançantes têm relação com a promessa. Se a promessa é para curar uma doença, uma coisa muito pesada, a gente sai no dia seguinte muito cansado, demora dois ou três dias
para se recuperar. Se é uma promessa para algo mais leve, no dia seguinte todo mundo já está muito bem – explica o dançante Luis Faustino Lopes. – No ensaio, passamos pelo penar do qual a pessoa que fez a promessa foi liberta.
Irmão de João Manoel e tio de Cristiano, Orlando Duarte da Costa, falecido em 2013, aos 77 anos, foi um dos principais responsáveis por manter viva a tradição dos quicumbis. Segundo depoimento deixado por ele a familiares, a origem do ensaio tem data exata: 23 de janeiro de 1720. Foi o dia em que uma santinha teria aparecido em algum ponto do mar da região, atraindo a curiosidade dos senhores de escravos, que mandaram buscá-la na água. A santa, no entanto, não aceitou sair do mar. Foi aí que um senhor de escravos resolveu vestir um menino negro com boas roupas e mandou buscá-la. Ao chegar na água, o menino estendeu a mão, e a santa veio imediatamente. No caminho entre o mar e a capelinha em que seria guardada, ela ensinou todos os cantos e coreografias do ensaio ao jovem. Três dias após ser encerrada na capela, a santa desapareceu misteriosamente.
As danças encenadas são singelas, com pequena variação de passos. Eles iniciam os cantos em duas filas, que volta e meia se cruzam e se mesclam. O toque do tambor é repetitivo, assim como os versos entoados. Cada canto é repetido por 15 minutos ou mais, dando o sentido de "ensaio" do encontro – repetir até a perfeição o que foi ensinada pela santinha.
O versos são repletos de musicalidade e lirismo, misturando palavras de origem africana ao português. No primeiro canto, por exemplo, o grupo entoa: "Mas esse mundo não é nosso, meus irmãos/ Nós estamos aqui só emprestados, meus irmãos/ Oi, chora, macamba/ Chora, nuiê// Mas esse mundo é um engano, meus irmãos/ Nós estamos aqui todos enganados, meus irmãos". "Nuiê" e "macamba" não têm significados precisos, mas possivelmente guardam relação com as canas (pequenos reco-recos usados no ritual) e o tambor. São frases que podem ser interpretadas sob o ponto de vista metafísico (de uma religiosidade que encara a realidade como ilusória), mas também social (da separação dos negros da sociedade dos brancos, que só visitavam os espaços dos senhores em ensaios de promessa).
Em 2013, em uma parceria entre a UFRGS e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), as professoras Maria Elizabeth Lucas e Janaina Lobo editaram um livro com um apanhado histórico da tradição dos ensaios, depoimentos de participantes e a gravação completa de um ensaio realizado pela irmandade de Tavares, incluído em dois CDs anexos. No documento, é possível ouvir a íntegra das 28 cantigas do rito, que são ligeiramente diferentes das entoadas em Mostardas. Apesar dos grupos terem surgido de uma mesma matriz, desenvolveram-se de modos distintos, tomando características próprias. Outro importante documento de pesquisa foi composto pelo tradicionalista Paixão Côrtes, anotado no livro Folclore Gaúcho (1987).
Apesar de repetitivas, as cantigas têm letras longas, que passaram de geração a geração apenas pelo ouvido, já que eram raros os descendentes de escravos que sabiam ler ou escrever. Apesar de atualmente os mais jovens terem frequentado o colégio, o recurso de anotar as letras para memorizar é pouco usado.
– Eu não acredito em letra – afirma Jacir Luís Ferreira de Lima, de 65 anos, referindo-se à escrita. – Aprendi ouvindo o tambor. Quando começa a tocar, vem tudo na minha cabeça.
O ensaio de promessa dura aproximadamente 12 horas, mas os preparativos se estendem por muito mais tempo, em um processo que une personagens de diferentes idades e classes sociais. Como já mencionado, quem faz a promessa não precisa pagar nada para a irmandade, mas isso não significa que a festa não acarrete custos. Familiares da maior parte dos envolvidos vêm de diferentes pontos da região para prestigiar o evento, assim como amigos e pessoas próximas do portador da promessa.
Mais de cem pessoas visitaram o CTG para acompanhar o ensaio bancado por Télcio. Para alimentar toda essa gente, o próprio agricultor ajudou a carnear quatro porcos e uma vaca no dia anterior. Dias antes, ambrosia e doce de abóbora já estavam sendo preparados para o evento. O altar, diante do qual os dançantes realizam suas coreografias, também costuma ser montado por familiares.
Ao longo da noite, parentes e amigos de Télcio se revezavam na churrasqueira e na cozinha do CTG, conversando e tomando vinho ou cerveja. A comida era oferecida pelo anfitrião, mas a bebida precisava ser paga em uma copa, onde um funcionário do Hospital São Luiz ajudava no atendimento, já que todo o lucro angariado seria revertido em fundos para a instituição.
Depois de algumas horas de cantoria, a irmandade realiza uma pausa, quando o anfitrião oferece um jantar para o grupo. Só após esse momento a refeição é distribuída para os demais convidados.
Com seu andamento lento, sem coreografias exuberantes ou virtuosismo musical, o ensaio é um espetáculo com alguma monotonia, seguido por poucos resistentes até o final. No encontro acompanhado por GaúchaZH, apenas Télcio, os membros da irmandade e alguns parentes próximos, que não passavam de 10 pessoas, vararam a madrugada inteira sem sair do salão.
Além da umidade e da temperatura baixa, que chegou aos 10ºC, mais um contratempo serviu para testar a devoção a Nossa Senhor do Rosário. Por volta das 5h, o CTG ficou sem luz, pane que durou mais de uma hora. Ninguém parou de cantar ou dançar nesse período – um cinegrafista contratado para gravar o evento direcionou uma lanterna de flash para o salão, onde a cantoria seguiu.
Nascida no seio da cultura africana, a tradição dos ensaios demorou a ser aceita pelas classes mais abastadas do Litoral Sul. No início, as cantigas eram entoadas apenas no meio do mato, longe dos donos das propriedades rurais. Segundo membros do grupo, o senhores de escravos só começaram a aceitar o ritual depois de perceber que era capaz de realizar curas. Em uma época em que a presença de um médico era raríssima, as promessas eram praticamente as únicas esperanças para quem sofria de alguma enfermidade.
Com o tempo, as irmandades também passaram a receber a presença eventual de adeptos brancos. No ritual bancado por Télcio, a presença mais notável, nesse sentido, era a do tamboreiro Otacílio Ataídes Antunes, de 78 anos. Natural de Tavares, ele começou a se envolver com esse costume por causa da música.
– Era coisa de menino. Tinha banda na escola, e eu gostava de tocar, batia bem no tambor. Me convidaram para participar de um ensaio, e acabei ficando – recorda.
Atualmente, o tamboreiro mora em Rio Grande, a quase três horas de viagem de Mostardas – mas viajou especialmente para o evento. Antes de voltar para a sua cidade, viu o amanhecer batendo tambor no meio dos amigos da irmandade. Para alegrar o dia que começava, até o sol deu as caras antes dos dançantes confraternizarem em um café da manhã regado a pão, bolacha e aipim frito.
E ninguém atolou o carro ao voltar para casa.
O que é
O Ensaio de Promessa Quicumbi é uma tradição performática dos negros que habitaram a região de Mostardas e Tavares desde o século 18 e está associado ao universo das congadas brasileiras, expressiva manifestação de caráter religioso. No Rio Grande do Sul, o ritual se configurou como um símbolo da ancestralidade da ocupação do território. É realizado em louvor a Nossa Senhora do Rosário, reunindo, ao longo de 12 horas, uma extensa rede de parentela, compadrio e afinidades do promesseiro. Pode-ser ler (e ouvir) mais sobre essa tradição no livro Folclore Gaúcho (1987), de Paixão Côrtes, e no trabalho das professoras Maria Elizabeth Lucas e Janaina Lobo, que em 2013 realizaram na UFRGS a pesquisa Ensaio de Promessa de Quicumbi, reunindo escritos e cantigas associadas ao ritual.