Quem examina o mapa com atenção percebe, bem no meio do Rio Grande do Sul, um rasgão vertical, uma espécie de cicatriz azulada. Há ali uma massa de água, com 230 quilômetros quadrados de área e cerca de 60 quilômetros de uma ponta à outra. Destaca-se até nos mapas pequenos, desde que relativamente recentes (veja abaixo). Nas cartas mais antigas, acima de quatro décadas, nada se vê.
Essa fenda líquida é resultado de uma obra de engenharia faraônica, uma das maiores realizadas em território gaúcho, que alterou não só a geografia, mas também a história, a economia, as tradições. Trata-se do Passo Real, o maior lago artificial do Estado, dotado de 610 quilômetros de orla – o equivalente à extensão de litoral que há entre Torres e Chuí.
A obra em questão, iniciada em 1968, redondos 50 anos atrás, envolveu o represamento do Jacuí. Em um primeiro momento, o maior rio do interior gaúcho foi desviado para a construção de uma barragem.
Passados dois anos, em setembro de 1970, o ditador Emílio Médici desembarcou no aeroporto construído nas imediações e fechou os túneis de desvio, fazendo o Jacuí procurar de novo o leito original. O rio encontrou no caminho a muralha recém-levantada, com 3,85 quilômetros de extensão e 58 metros de altura.
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Sem poder passar livremente, a água foi se acumulando dali para trás e invadiu os vastos baixios que se estendiam desde o Salto do Jacuí até Ibirubá, submergindo, sob 3,7 bilhões de metros cúbicos, lavouras, pastos e vilarejos espalhadas por Jacuizinho, Campos Borges, Alto Alegre, Quinze de Novembro, Selbach e Fortaleza dos Valos. Subindo alguns centímetros por dia, a água levou três anos até encher o reservatório e formar o lago.
Em setembro de 1973, do outro lado da barragem, ao pé da muralha, com Médici de volta, foi inaugurada a Hidrelétrica do Passo Real.
Passados 45 anos, a usina vive um momento único. Pela primeira vez, uma das duas unidades de geração de energia, uma engrenagem colossal que começa no nível do solo e avança terra abaixo, foi totalmente desmontada para renovação – um projeto que vai consumir 330 dias e R$ 40 milhões. A reforma trouxe uma oportunidade rara, que GaúchaZH aproveitou neste mês de agosto: percorrer as entranhas do complexo onde é gerada eletricidade que há décadas chega aos lares gaúchos, fazendo funcionarem lâmpadas, televisores, chuveiros e máquinas de todo o tipo.
A função do gigantesco lago artificial é assegurar que tal energia continue a ser produzida ali, mesmo em caso de seca prolongada. Ele funciona como uma espécie de bateria para a usina. Se não chover mais, se nenhuma gota extra chegar ao reservatório, ainda assim haverá água para que a hidrelétrica siga gerando 158 megawatts durante um ano.
O lago também tem socorrido os gaúchos durante enchentes. Em 2015, quando o Guaíba quase transbordou e foi necessário fechar as comportas do muro da Mauá pela primeira vez em 40 anos, a barragem do Passo Real impediu que ocorressem efeitos mais dramáticos em Porto Alegre. Para que a Capital não inundasse, a usina foi desligada. Durante dois dias, segurou-se no lago toda a água que descia pelo Jacuí. O fluxo só foi liberado após baixarem os níveis a jusante.
Hoje em dia, reconhecem profissionais da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), um empreendimento do gênero não seria levado adiante, em razão dos elevados custos financeiros (cerca de R$ 2,5 bilhões, atualizando os valores divulgados pela imprensa à época), sociais (1,5 mil famílias desalojadas) e ambientais.
A tendência agora são as chamadas usinas fio d'água, que operam sem reservatório ou com um reservatório pequeno. Eventualmente, essas unidades podem parar por causa de uma estiagem, mas sem comprometer o abastecimento, graças à implantação do Sistema Interligado Nacional, que conectou as usinas de todo o país. Cinco décadas atrás, no entanto, não havia interligação, e o Rio Grande do Sul vivia sob a sombra do racionamento. Tinha de gerar a própria energia.
– Havia necessidade de desenvolvimento, de chegar energia lá em Porto Alegre e em outras partes. Precisava de um reservatório desse tamanho para perenizar a geração. Hoje podemos ter várias usinas menores, inclusive eólicas. Mudou o conceito – diz Urataú Barreto Moreira, chefe da usina do Passo Real.
A hidrelétrica está localizada em Salto do Jacuí, município de 12 mil habitantes que é uma espécie de rebento da CEEE. Até a década de 1950, interior do interior de Espumoso, tratava-se de uma zona remota, pintalgada por propriedades rurais. Foi quando chegaram os trabalhadores para fazer uma primeira barragem (Maia Filho, com reservatório de 5,4 quilômetros quadrados) e uma primeira usina (Leonel Brizola, de 180 megawatts), junto à atual zona urbana da cidade. A inauguração ocorreu em 1962.
No final daquela década, começou o projeto do Passo Real, alguns quilômetros rio acima. Os mais antigos contam que, à época, o que movimentava a região eram as estruturas da CEEE.
Imagens aéreas da época mostram que, na área central do Salto do Jacuí, o grande aglomerado urbano era a vila que a companhia construiu para seus funcionários, com 305 residências, escola, hospital, igreja, açougue, padaria e hotel. Só quem trabalhava na empresa tinha acesso, depois de se identificar na guarita. Fora do bairro planejado, existia uma povoação rarefeita e irregular, bem menor, que se estendia ao longo da estrada de chão batido que hoje é a rua principal da cidade.
– Há pessoas que são bairristas e não aceitam, mas digo assim: a cidade do Salto do Jacuí existe em função da CEEE. Fora da vila dos funcionários, só havia duas ruas – recorda Orlando Roque Mathias, 66 anos, testemunha e artífice das transformações que a demanda por eletricidade provocou na região.
O jovem Orlando era das pessoas que moravam do lado de fora da guarita quando começou a trabalhar, em 1972, para a empresa que montava a usina propriamente dita. Ele lembra que, ao chegar, a barragem que daria origem ao grande lago estava nos acabamentos, e o local das obras era um formigueiro humano onde se ouviam todos os sotaques. Uma cidade provisória havia sido erguida no local, para abrigar operários oriundos de partes variadas do Brasil.
Reportagem publicada à época por Zero Hora falava em 1,5 mil funcionários de empreiteiras e 300 da CEEE, acrescentando que "o ritmo de trabalho das obras continua de 24 horas por dia, com descanso aos domingos, após as 16h".
– Hoje a gente olha e tem dificuldade de acreditar que morou gente lá, mas era mesmo uma cidade, com traçado normal de cidade: havia ruas, esgoto, água, luz, supermercado, churrascaria, campo de futebol, todo o lazer básico. O que tinha de mineiro e baiano! Quem trazia a família ficava em uma casa. Os solteiros moravam em uns barracões – evoca Orlando, que, duas décadas depois, em 1995, já funcionário da CEEE, viveu o momento mais dramático da usina, a manhã em que as duas turbinas se incendiaram (porém, apesar do susto, não houve feridos no incidente).
O Passo Real em números
Para construir a barragem, foram realizadas escavações em um total de 4 milhões de metros cúbicos. Foram usados 134 mil metros cúbicos de concreto e 5,5 milhões de toneladas de aço. Chegou a 3,7 milhões de metros cúbicos o volume de aterros.
A barragem tem extensão de 3,85 quilômetros. O lago, 230 quilômetros quadrados de área, com orla de 610 quilômetros. À época, o custo divulgado da obra era de US$ 100 milhões – US$ 650 milhões, em valores corrigidos, ou R$ 2,5 bilhões.
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