Uma das obras mais marcantes do Rio Grande do Sul, a hidrelétrica de Passo Real teve a pedra fundamental lançada há redondos 50 anos. A usina mudou história, geografia e a cultura de uma região, criando o maior lago artificial do Estado.
No início das obras, em 1968, era possível encontrar circulando entre os operários um menino chamado Jorge Fernandes de Moraes, hoje com 58 anos. O pai dele identificou no projeto da barragem uma oportunidade de negócio, mudou-se para as redondezas do canteiro de obras e levantou um hotelzinho com duas dezenas de quartos, mas sem eletricidade, onde organizava bailes e mantinha uma bodega para servir almoço. Foi onde Jorge se criou.
– Como era guri, eu fazia de tudo para ganhar meus trocos. Havia um paulista que morava no hotel e que inventou um pastel de lambari. Primeiro fritava o lambari inteiro, depois colocava dentro da massa e fritava de novo. Eu ia vender isso na obra. Também vendia bergamota e engraxava sapatos – conta.
Leia as outras partes desta reportagem:
Nas entranhas do Passo Real: há 50 anos, uma obra mudava a história e a geografia do RS
Por dentro da usina: um passeio pelas áreas restritas de um marco da engenharia no RS
Orlando e Jorge viram a obra ficar pronta, os operários dispersarem-se, os militares chegarem em peso para a cerimônia de inauguração. E acompanharam também a lenta subida das águas.
– Amarrava o espinhel entre os capins e, no outro dia, ele amanhecia 20 centímetros abaixo da água – relata Jorge.
O Jacuí continua vertendo ali no meio, mas já não é possível identificar seu leito. Está oculto em meio ao imenso lago, que desenhou no coração do Rio Grande do Sul paisagens inesperadas. As águas são plácidas e cristalinas, permitindo vislumbrar o que há até dois ou três metros para baixo. Sucedem-se os braços recônditos, os balneários, as dezenas de ilhas desabitadas e sem nome que surgiram a partir de zonas mais altas que não chegaram a submergir. Algumas chegam a ter 180 hectares. Com o passar dos anos, as margens encheram-se de casas – incluindo mansões – com quintais desembocando no reservatório, dotadas de trapiches, pequenas embarcações, pedalinhos, jet skis.
Para Jorge de Moraes, é uma paisagem sedutora, à qual ele não consegue resistir. Depois que a barragem ficou pronta, o pai dele levantou acampamento e foi recriar seu hotel na obra de outra usina, no Paraná. Jorge foi junto, mas, década e meia depois, já adulto, retornou. Enquanto os irmãos vivem em Curitiba, ele foi se enfiar no Salto do Jacuí, só por causa do lago – até construiu um barco, onde pretende morar e com o qual quer fazer passeios turísticos para exibir os encantos do Passo Real aos turistas.
– Na verdade, pago para ficar aqui. Da cidade eu não gosto. Mas me apeguei ao alagado – relata.
GaúchaZH navegou por essa paisagem acompanhando Diego Castoldi, que chefia a seção de meio ambiente da CEEE no Sistema Jacuí. Com uma pequena lancha, Diego costuma percorrer os meandros do reservatório para coletar amostras de água e recolher peixes em redes colocadas pela empresa. O objetivo é monitorar a qualidade da água e da ictiofauna, exigência das autoridades ambientais. Sua equipe também fiscaliza a pesca e a caça predatórias.
– Há muita vida aqui. É incrível. Os animais se adaptaram. Existem, por exemplo, umas sete espécies de lambaris. Fazemos a captura desses animais, a biometria, vemos se estão se reproduzindo – relata.
Diego encosta a lancha à orla barrenta de uma das ilhas para mostrar a cobertura vegetal, toda de eucaliptos geometricamente enfileirados. Na época da construção da barragem, explica, a espécie exótica foi plantada como forma de compensar as matas inundadas – há um plano, de execução complicada, reconhece o próprio Diego, para um dia retirar os eucaliptos e substituí-los pelas espécies originais.
Por causa da formação do lago, a CEEE desapropriou uma área vasta, não só de matas, mas também de lavouras. Muitos proprietários rurais tiveram de deixar suas terras, e vários vilarejos ficaram submersos. Localidades que estavam uma ao pé da outra passaram a estar separadas por dezenas de quilômetros de distância, pela necessidade de contornar o reservatório. Morador do atual município de Campos Borges desde 1948, Armando Feder, 80 anos, teve três hectares de terra inundados. Recorda quando a água atingiu o milharal, e ele e a mulher, Frida, grávida de oito meses, seguiram de canoa para fazer a colheita.
Até então, a propriedade de Armando distava cerca de dois quilômetros do Rio Jacuí. Hoje, fica praticamente à margem do lago. Dias atrás, à beira do colossal corpo d'água, o velho morador apontou o dedo para uma área algumas centenas de metros à frente e informou: ali ficava Nova Alemanha, a vila que funcionava como centro urbano para as 26 famílias que viveram no entorno. Era onde estava o comércio, a bailanta, o campo de futebol do time local (que participava de torneios regionais com Armando na posição de centroavante) e duas igrejas, uma católica, outra protestante. Mais à esquerda havia uma mata, onde ele se embrenhava para caçar, à espingarda, veados, pacas, capivaras e cutias.
Ficou tudo debaixo d’água, motivo de ressentimento para o morador:
– Olha, eu odiei essa barragem. Pura verdade. É uma grande coisa, mas eu odiei. A pior coisa na minha vida foi esse alagado. Eu amo a natureza, e ali tinha um mato de pura canela. Quando esse mato estava uns 20 dias debaixo d’água, começaram a amarelar aquelas coisas verdes, me deu um dó de ver a água acabar com essa natureza. Senti tanto, vendo amarelar e cair as folhas. Reneguei, isso não podia acontecer... Enxergar a água acabar com tudo...
Até que rareou a chuva – e as velhas terras de Armando emergiram e secaram ao sol pela primeira vez muito tempo. Ele pôde ir até Nova Alemanha e ver os alicerces do templo onde batizou o primeiro afilhado. Rememorou a celebração realizada no local, quando o pastor vaticinou:
– Por causa da mão do homem, este é o último culto que realizamos aqui.
Lembrando o momento de 40 anos atrás, Armando concebeu um plano:
– Vou fazer uma coisa, vou mostrar que a mão do homem não é o poderoso; poderosa é a natureza. Tive a ideia de realizar de novo um culto ali. Ia vir a imprensa, iam vir os católicos, que também perderam a igreja deles. Íamos fazer um culto e uma missa, mostrar que a natureza fala mais alto. Mas daí não tinha pastor naqueles dias. Até que arrumamos um pastor, e o lago encheu de novo.
Em sua propriedade rural ribeirinha, Armando lavra, produz ao ano 2 mil litros de pinga e cinco toneladas de melaço em um pequeno alambique, cria animais. Mas já não pode caçar. Por isso, nos locais onde antes perseguia veados e pacas, passou a fisgar jundiás, pintados e traíras. Legou a pesca como atividade principal aos dois filhos, Adelmar, 48 anos, e Adelar, 50. Os irmãos sempre mantêm redes dentro do lago, que vão vistoriar de barco todos os dias. Não falha: sempre dá peixe. Na manhã gelada em que vistou a propriedade, GaúchaZH acompanhou-os na recolha de uma das redes, de onde saiu uma piava, um jundiá, um cascudo e duas traíras, todos de bom porte.
Nada comparável, é claro, à carpa de 62 quilos que fez a fama dos manos e foi vendida por R$ 220. Eles apanharam-na há uns dois anos, e a foto do bicho, erguido pelo braço do trator e com Adelmar ao lado, causou furor.
– Na rádio, pelo que diziam, o peso do peixe chegou a 150 quilos – diverte-se. – Já tínhamos apanhado daquele tamanho, sabíamos o jeito de pegar. O que escapava de peixe antes! Arrebentava a rede e ia embora. Então fizemos um cacete com uma madeira dura. Tu tens de ir levantando a rede devagarinho. Vai puxando, vem vindo, daí, quando aparece, tem de dar uma paulada na cabeça. Depois precisa forcejar, meter a mão lá dentro da boca e pegar nas guelras. Enquanto um força o barco para o lado, o outro vai lá e arrasta o peixe para dentro – explicou o irmão mais novo.
Adelar conta que, só no ano passado, arrecadou R$ 24 mil com a pesca no reservatório. Por causa do lago artificial, a atividade ganhou relevo na região. Uma colônia de pescadores, com sede no Salto do Jacuí, reúne 220 profissionais, com 40 famílias vivendo exclusivamente da pesca. Nas águas tranquilas, as principais espécies capturadas são traíra (18%), carpa (15%), tilápia (11%) e jundiá (10%). Exótica, a carpa teria chegado depois que açudes próximos arrebentaram por causa de cheias e se comunicaram com o reservatório. Sem outro predador além do homem, atinge grandes dimensões. Fala-se na região de espécimes que ultrapassam os cem quilos.
O lendário monstro do lago
Contam-se também histórias, lendas que nasceram do lago e que estão em todas as bocas. A mais conhecida é a do minhocão, uma espécie de monstro do Lago Ness, mas na versão Passo Real. Trata-se de uma cobra gigante, terror dos pescadores, que temem ser atacados e ter os barcos virados. Jorge Moraes, o morador que vendia pastéis de lambari na barragem, garante que viu o bicho, nos tempos de menino:
– O boato surgiu bem nessa época da obra, no Passo Real. Eu não tinha ideia do que era. Criava na imaginação uma minhoca gigante. Um dia, tinha um lugar ótimo para pescar, tipo um pântano, parado, onde os peixes gostavam de ficar. Eu pegava minhas linhas de mão, vivia com os dedos cortados de pegar traíra grande, e armava as minhas linhas ali. Daí vi entrando uma cabeça mais ou menos desse tamanho, e vinha nadando aquela cabeça. Pensei que podia ser lontra, ratão, capivara. Mas do meio para dentro da lagoa tinha um capim alto, que tem lá até hoje, daí aquela cabeça afundou e ficou passando o lombo, como um pneu girando dentro da água. Pensei: "Poxa, mas esse bicho é comprido! É o minhocão!". Saí correndo para casa: "Mãe, mãe, mãe! Eu vi o minhocão!". Mas não convenci ninguém... O pessoal antigo criou umas fantasias, uns dizem que tem três cabeças, que tem corcunda, que tem cabeça de cavalo. Existe um certo receio, que eu também tenho. Há uns fundões meio sinistros, umas partes escuras, que evito quando vou pescar. Por que o que eu vi pode ser só o filhote do minhocão, né?
Armando, o idoso que odeia a barragem, faz parte do time que descrê da lenda. Ele diz saber a origem do mito. Garante que a história foi inventada por um homem de quem roubavam as laranjas cultivadas à beira do lago. Para afastar os intrusos, o sujeito teria arrastado um saco de pedras para simular a passagem do monstro em meio aos juncos e depois inventado a história. Armando diz que inclusive ajudou a propagar a lenda:
– Ajudei, porque também menti sobre aquele bicho, para um jornal. Uma noite em que fui pescar, cruzou alguma coisa lisa no escuro. Daí eu também disse que vi a cobra. Isso para fazer ibope para o jornal. Vi alguma coisa, mas acho que era um peixe... Vou contar o que é o minhocão. Uma vez, perto do meio-dia, eu estava parado e vi a cobra, nadando. Ah, mas peguei a espingarda e fui lá. Quando cheguei, a cobra vinha chegando no barranco: era uma marreca com 12 filhotes, um atrás do outro, daí a água jogava, então parecia que era uma cobra. Quem não fosse até lá para ver pensava que era uma cobra mesmo. Foi como estourou essa lenda.
A cidade que um dia já foi
Além de estimular lendas, o lago também moldou o desenvolvimento dos municípios. Antes de ele existir, uma das localidades mais vibrantes da região era Sede Aurora, comunidade italiana repleta de pequenas indústrias. Era um ponto estratégico: quem viajava entre Porto Alegre e Cruz Alta tinha de atravessar por uma ponte ali existente. A 10 quilômetros de distância ficava um vilarejo muito menor, formado por luteranos de origem alemã. Veio a barragem, o lago subiu e grande parte de Sede Aurora foi engolida pela água. Hoje, virou um distrito do município de Quinze de Novembro, sediado na antiga vila germânica.
GaúchaZH foi até lá e deparou com uma espécie de cidade-fantasma. Exceto pela assessora da prefeitura que serviu de guia e por um casal residente que cuida da igreja e do museu locais, chamado para mostrar os prédios, não se viu vivalma nas ruas da localidade. Os moradores quase todos foram embora décadas atrás. Os que permaneceram são poucos, em geral de idade avançada.
Esse vazio contrasta com a imponência da igreja, onde uma vez por mês é celebrada missa, por um padre que vem de Ibirubá. Carlos Alberto Trenhago, 38 anos, e sua mulher, Diones Maria de Lima, 44, o casal que cuida da edificação, abriu uma porta lateral para revelar um interior de causar inveja a grande parte das paróquias gaúchas. As laterais da nave são enfeitadas por coloridos vitrais italianos, enquanto os altares, o púlpito, o batistério e o confessionário, trabalhados em carvalho, vieram da Alemanha. Há 33 bancos lá dentro, que poderiam abrigar centenas de fiéis. Mas Sede Aurora tem apenas 22 residências habitadas de forma permanente.
Ao lado do templo há uma avarandada casa da década de 1940, que serviu de residência aos dois padres que chegaram a ser párocos de Sede Aurora, antes de a população debandar e a permanência de um sacerdote deixar de justificar-se. Hoje, a simpática moradia é um museu, que Carlos Alberto e Diones abrem para revelar a rotina da localidade na época em que ela ainda não havia afogado no Passo Real.
O acervo contém fotos em preto e branco das festas, das famílias que ali viviam, da ponte de madeira, da balsa que ligava as duas margens do rio. Também estão lá vários objetos de um cotidiano esquecido: esporas, selas, lamparinas, ferros de passar, rádios e máquinas de costura antigos, ferramentas de todo o tipo. No sótão, há uma série de animais nativos da região empalhados – e também um terneiro de duas cabeças e quatro patas que causou espanto entre os moradores.
O museu costuma ser aberto apenas no verão, quando Sede Aurora ganha um sopro de vida, graças à chegada de banhistas da cidade ou de turistas que mantêm casas à beira do lago ou acampam no camping local, dentro do qual as salas de aula de uma antiga escola pública desativada foram convertidos em quartos para hospedagem.
– Aqui era o local mais populoso da região, era até maior do que Ibirubá. Hoje tem o museu e o camping. E agora estão crescendo os condomínios na beira da barragem, que são de gente de fora. Já contei 470 casas na beira do alagado – revela Carlos Alberto.
O Passo Real em números
Para construir a barragem, foram realizadas escavações em um total de 4 milhões de metros cúbicos. Foram usados 134 mil metros cúbicos de concreto e 5,5 milhões de toneladas de aço. Chegou a 3,7 milhões de metros cúbicos o volume de aterros.
A barragem tem extensão de 3,85 quilômetros. O lago, 230 quilômetros quadrados de área, com orla de 610 quilômetros. À época, o custo divulgado da obra era de US$ 100 milhões – US$ 650 milhões, em valores corrigidos, ou R$ 2,5 bilhões.
Leia as outras partes desta reportagem
Nas entranhas do Passo Real: há 50 anos, uma obra mudava a história e a geografia do RS
Por dentro da usina: um passeio pelas áreas restritas de um marco da engenharia no RS