O maior lago artificial do Rio Grande do Sul, toda a cultura de seu entorno (a pesca, as lendas, as comunidades submergidas), a gigantesca hidrelétrica que o originou (o Passo Real, cuja pedra fundamental foi lançada há exatos 50 anos), tudo isso só existe com e para um objetivo: fazer duas turbinas girarem.
Elas ficam uma ao lado da outra, nas profundezas da usina, no sopé da barragem, tendo a massa colossal de água do outro lado da muralha, uns 20 metros acima.
Quando se chega a esse local, descendo por uma via escavada na rocha, o que se encontra são instalações de ar modesto e espartano, que podem até decepcionar: uma construção baixa de alvenaria, para as funções administrativas, e um pavilhão retangular de tijolo, ao lado. Essa aparência é enganosa. Como um iceberg, apenas uma amostra modesta da usina mantém-se à tona. Sua grandiosidade está oculta sob a superfície.
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Urataú Barreto, o chefe da unidade, guia a reportagem de GaúchaZH por essas entranhas, que lembram o interior de um submarino, na sua complexa sucessão de equipamentos, corredores, peças, engrenagens, portinholas e escadas de metal. É preciso andar com protetores auriculares, e mesmo assim a barulheira da água estrondando obriga que se fale aos gritos.
Barreto desce até o pavimento mais baixo, uma dezena de metros sob a superfície, e segue para uma sala úmida, atravessada por um cano de aço com sete metros de diâmetro. O cano entra por uma parede lateral e sai pela outra.
– O Rio Jacuí inteiro está passando aí dentro – anuncia.
O tubo vibra, e espalmá-lo permite sentir o rio na mão, espremido e reverberando dentro daquelas artificiais margens metálicas à ordem de 200 metros cúbicos por segundo – a vazão normal do Jacuí. É parte do conduto forçado, a tubulação que traz a água desde o lago artificial, mais ao alto, até a base da usina. No ponto onde é possível vê-lo e tocá-lo, está prestes a desembocar na turbina, logo ali do outro lado da parede.
Para entender como é a Hidrelétrica do Passo Real, há que imaginar dois poços largos e profundos, circulares, cavados um ao lado do outro. No interior de cada um desses poços, atravessando vários pavimentos, interconectam-se na vertical os equipamentos de conversão da força da água que chega embaixo na força elétrica que sai em cima. As duas unidades têm a mesma configuração e atuam em simultâneo.
A singularidade deste momento específico de 2018 é que uma delas opera normalmente, enquanto a outra está parada, desmontada para uma obra inédita. Isso permite um raro olhar didático sobre como a eletricidade é produzida. Enquanto de um lado vê-se a usina a trabalhar, no poço vizinho é possível explorar o que há por dentro do mecanismo.
No momento em que o Jacuí encanado sai da tubulação, por exemplo, ele entra no chamado caracol, um túnel em forma de espiral que está sempre repleto de água turbilhonante. Há um caracol na base de cada unidade de geração de energia, e a equipe de GaúchaZH pôde passar por uma escotilha, descer uma escadinha recurva e ingressar na espiral que está fora de operação, um local geralmente inacessível.
A sensação é de ter diminuído de tamanho e ficado minúsculo. Vira-se um pontinho dentro de um gigantesco tubo escuro, que dá uma volta quase completa ao redor de uma estrutura circular. Dentro dessa estrutura, formada por pás que podem ser abertas ou fechadas conforme se deseje, encontra-se a turbina. A água avança por um lado do caracol e sai pelo outro. Nessa passagem, com as pás abertas de acordo com a demanda que houver de energia, move-se a turbina, e a água cai depois por uma tubulação que a conduzirá de volta ao leito do rio, do outro lado da usina.
– A caixa espiral é a chegada na turbina. A água entra do conduto para o caracol, passa pelas pás diretrizes que controlam a vazão, vai na turbina, gera potência mecânica e sai pelo tubo de sucção, retornando ao rio. O caracol faz 360 graus e vai diminuindo de diâmetro, para distribuir o fluxo igualmente por todas as pás – ensina Barreto.
Depois dessa explanação, deixamos o caracol e subimos a um pavimento superior, onde se pode ver o que é feito da movimentação da turbina. Desta vez, o melhor é examinar a unidade que está em funcionamento. Ingressando no poço, vê-se então um eixo vertical de aço, que gira 138,5 vezes por minuto. Quem o faz girar é a turbina, ao qual está conectado pela base.
Sobe-se mais um pavimento, à área que fica acima da extremidade superior do eixo, onde ele se liga ao gerador. Barreto conduz GaúchaZH ao poço onde o gerador está funcionando, de onde saem naquele momento 81 megawatts, e também ao poço ao lado, onde o gerador se encontra parcialmente desmontado e pode-se ver seu miolo vazio. O chefe da usina explica que nesse miolo fica uma parte do gerador conhecida como rotor, uma peça de 180 toneladas que gira, movida pelo eixo.
– O rotor é a parte rotativa do gerador. Esse movimento de rotação quem dá é a turbina. Lá embaixo, quando as paletas abrem na caixa espiral, a água cai em cima da turbina e o eixo começa a rodar, transmitindo a energia mecânica para o gerador. A parte estática do gerador, que fica por fora, é o estator. Nele, aplicamos um campo magnético. A amplitude desse campo magnético produz o fenômeno da força eletromotriz induzida, que conhecemos vulgarmente por energia elétrica. Sem esse campo magnético, a unidade ia rodar no vazio. É a combinação do magnetismo no estator com a energia mecânica do rotor que gera a eletricidade. É o princípio de Lavoisier (1743-1794): nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Um andar acima e já estamos no nível do solo, na ponta do iceberg que é o pavilhão de tijolos. Ali fica o topo das duas unidades de geração de energia. Uma delas, em perfeita operação, está lacrada. Na outra, aberta, operários trabalham na montagem de um novo gerador, porque a vida útil do antigo expirou. Ao redor, espalham-se várias peças e engrenagens que serão encaixadas dentro do poço, com o auxílio de um guindaste que corre rente ao teto. A turbina ainda não está ali. Virá do interior de São Paulo, onde encontra-se em fase de testes, depois de passar por uma renovação. Quando voltar e tudo for colocado no local, o que se prevê para dezembro, espera-se que a unidade tenha mais 30 ou 40 anos de vida útil.
Quando ela for religada, gerará 80 megawatts, que sairão por um barramento blindado, passarão por um conjunto de transformadores e seguirão até a subestação que fica ao lado da usina. Dali, continuarão seu curso por linhas de transmissão que se espalham e bifurcam em todas direções, levando a energia que estava adormecida no maior lago artificial do Rio Grande do Sul até a residência de milhões de gaúchos.
O Passo Real em números
Para construir a barragem, foram realizadas escavações em um total de 4 milhões de metros cúbicos. Foram usados 134 mil metros cúbicos de concreto e 5,5 milhões de toneladas de aço. Chegou a 3,7 milhões de metros cúbicos o volume de aterros.
A barragem tem extensão de 3,85 quilômetros. O lago, 230 quilômetros quadrados de área, com orla de 610 quilômetros. À época, o custo divulgado da obra era de US$ 100 milhões – US$ 650 milhões, em valores corrigidos, ou R$ 2,5 bilhões.
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