Serpenteando os buracos da estrada de chão batido que leva à comunidade do Barrocão, em Piratini, no sul do Estado, imaginava como seria a figura a nos esperar, talvez descansando a perna n'alguma porteira ou recostada em um alambrado, sorvendo um mate naquele comecinho de manhã de mais um comecinho de setembro. Fora recomendada previamente de que estávamos a caminho da sua história e de que não era preciso nenhum ensaio para falar de si. Que tolice pensar que Dona Iris Govea Brede, no alto dos seus 75 anos, completados em 11 de junho, faria cerimônia para falar das rédeas da vida, cujo controle parece nunca ter lhe escapado das mãos. Estava dentro de casa, organizando o café para as visitas, na companhia do marido, o agricultor e alambrador Gaspar Brede, 83 anos, e do neto Cássio, oito. O ruído da camionete a fez abrir a porta e, ao cruzar a soleira, já dava ordem ao rebuliço dos ovelheiros.
– Sai pra lá, cachorro! – bradava, antes de nos abraçar em boas-vindas.
No aconchego do fogão a lenha, ela postou-se em nossa frente e, com certo pragmatismo, deu início ao que desconfiava ser o fio da meada da sua existência, desfrutada até aqui entre os cerros de Piratini, os mesmos que acolheram os farroupilhas no tempo da revolução.
– Sou pessoa que, desde que me entendi por gente, está no serviço. Me criei de pé no chão, e isso não é vergonha dizer. Socava arroz e canjica no pilão, com as duas mãos. Torrava o milho catete e peneirava naquelas peneirinhas que vinham de primeiro. Vocês não conheceram isso. Pão não faltava pra ninguém.
Assim Dona Iris deu a largada na sua narrativa, que se estenderia tarde adentro, sempre em sobressalto por conta das lidas campeiras e domésticas que não deixa de lado. "Ficar parada me cansa as pernas", adianta.
A moradora da zona rural de Piratini já havia sido personagem de uma reportagem de Zero Hora em razão da seca que abateu o Estado no começo do ano, e sua vitalidade e força para tocar a rotina bruta naquele cenário hostil despertaram curiosidade. O que sustentaria essa mulher de menos de 1m60cm, atarracada, sorriso largo e passo firme na vida campeira? Gosto.
Gosto e também necessidade, porque Iris jamais pensou em sair do Barrocão, onde nasceu e cresceu como a mais velha de uma família de 16 irmãos e ainda criou nove filhos – seis deles paridos em casa – e um neto.
Colocou-se como condição nunca ser empregada, trabalhar na própria terra e dela tirar seu sustento. Mas ela foi mais adiante. Tornou-se uma referência na comunidade, cujos vizinhos mais próximos se enxerga a distância de uma braçada de campo, e abriga no modo de viver o fenotipo dos gaúchos valentes que deixaram rastro no imaginário de Piratini.
Dona Iris levanta cedo e não tem hora para deitar. No lombo do cavalo, diariamente organiza e inspeciona o rebanho de ovelhas e cabeças de gado que mantém na propriedade que ela e o marido conquistaram lote a lote. Os cavalos e os cachorros são suas paixões, depois das carreiras e caçadas, essas já relegadas às memórias da infância, quando saía com o pai a desbravar os matos fechados em busca de tatus.
– Nunca botei mão em arma, caçava com os cachorros e deu. Mas isso não se faz mais – resmunga.
A vida campeira é o próprio divertimento. Dona Iris nunca foi de bailes, quando muito foi a dois a vida toda. As carreiras de cancha reta e os retoços em família sempre lhes foram mais atraentes. Correu no lombo dos cavalos páreos, ajuda no preparo de pastéis, a iguaria tradicional desses eventos, e pega junto com a peonada nas carneações. Um dia antes de chegarmos, ela havia abatido um porco, prática que garante parte da carne do mês que será consumida pela família. Diante das visitas, carneou o bicho com destreza, embalando os cortes para acomodá-los no freezer. O lombinho deixou para o almoço daquele dia.
Mas o que faz Dona Iris gabar-se é sua experiência na lavoura, construída de sol a sol mesmo quando já tratava de um diabetes tipo 2 e cuidava de uma penca de filhos, que, sob a sombra do arvoredo, aguardavam a mãe lavrar a terra, sempre com um olho no pasto, morada de cruzeiras. "Cobra aqui é mistério!", avisa, usando a expressão local que designa quantidade, antes de completar:
– Na enxada não é qualquer homem para me acompanhar, tem de ter vergonha na cara. Pode escolher o serviço que eu faço. Trilhar (arar) com pata de cavalo, lavrar, tudo, tudo eu faço – diz a agricultora, seguida da confirmação orgulhosa do marido.
– Até batata descasca! – brinca Seu Gaspar, diante da mulher que preparava uma salada com o tubérculo.
Às vésperas do 20 de Setembro, não importa o tempo, Dona Iris costuma encilhar os cavalos e seguir para os desfiles. O corredor de 50 quilômetros que separa a propriedade do centro de Piratini já percorreu uma centena de vezes a galope. Neste ano, vai ver de longe os festejos farroupilhas por conta da saúde do marido, abalado por uma sequência de pneumonias que exigiram quase duas semanas de hospitalização. Quem nunca viu Seu Gaspar antes fica descrente da sequela que as enfermidades sucessivas possam ter deixado no corpo franzino. É que ele ainda pula os alambrados só apoiando uma das mãos no mourão, voando de um lado para o outro do cercado no tempo de um piscar de olhos.
– Tu acha ele bem porque não conheceu antes. Que homem que trabalhava! – admira-se Dona Iris.
– Trabalhava a morrer – completa o homem.
Comunidade e isolamento
Os posicionamentos políticos sempre foram determinantes na história de Piratini. O apoio aos farrapos no auge da Revolução Farroupilha, o que concedeu à cidade o título de 1ª Capital Farroupilha, cobrou seu preço ao final do conflito. Por anos, o município ficou à margem de investimentos e até hoje vê o desenvolvimento passar ao largo. As rodovias 702 e 265, os principais acessos, tornaram-se caminhos para um único lugar, enquanto assistem à implementação e à valorização de outras estradas interligando cidades importantes da região, como Pelotas e Bagé.
O povo aprendeu pela própria história a marcar seu lugar nas discussões sociais, ainda que hoje, mesmo no cotidiano pacato do município, muita gente prefira não falar de política para "evitar incomodação". Pois Dona Iris, enquanto pôde, buscou alguns incômodos para "fazer o que tinha de ser feito", e um dos primeiros deles foi correr os caminhos do Barrocão para bater de porta em porta e mobilizar a comunidade a lutar pela energia elétrica.
– Ia a cavalo, a pé, do jeito que fosse para chamar os vizinhos e mostrar o projeto. E ouvia desaforo, gente que achava que eu queria ganhar dinheiro com isso. Agora vê se tem cabimento? Um vizinho chegou a me dizer: "Tu não tem mais o que fazer?". Eu disse: "Mas o quê? Quer que eu cave um buraco aqui pra passar a rede?". Era difícil, mas tanto foi que consegui – conta.
O feito propiciou a ela e à família mais conforto, algo de que se orgulha. A rede elétrica, inclusive, é a referência que dá aos visitantes para que não se percam nas estradas do Quarto Distrito: "Segue a rede!", costuma orientar. A geladeira a gás deu lugar à elétrica, e o freezer terminou com a preocupação constante pela conservação da carne. O banho também deixou de ser um ritual demorado, com panelas e chaleiras em quantidade sobre o fogão a lenha para que a água estivesse quente o suficiente para permitir o asseio nos dias frios da Região Sul. Dona Iris e Seu Gaspar têm televisão, mas é mais um instrumento para desafiar o silêncio da casa, outrora agitada pela algazarra dos filhos, do que exatamente um passatempo. O fogão elétrico, assim como o a gás, também trouxe facilidade, mas ainda não ganhou preferência.
– Arroz nesse fogão (a gás) não presta. Deus que me perdoe, mas não dá pra comer, fica uma coisa, nem sei dizer. Tem de ser na lenha, e com banha de porco. Gaspar, ajeita o fogo para eu fazer o arroz! – ordena ao marido.
Depois da batalha pela luz elétrica, Dona Iris se envolveu na fundação da Associação Comunitária do Barrocão. Não foi a principal fundadora, mas esteve ali ativamente para que o intento se tornasse realidade. Logo, também passou a integrar a Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (Adac), projeto que envolve, além de Piratini, Bagé, Caçapava do Sul, Lavras do Sul, Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista, e congrega mais de 20 associações de produtores em estratégias de desenvolvimento rural sustentável, principalmente na cadeia de produção de ovinos, no que hoje é o forte da propriedade de Dona Iris e Seu Gaspar.
Tanto nos planejamentos da Associação Comunitária do Barrocão quanto na Adac, a casa da moradora virou um ponto de encontro para debater ações e negociar engajamento nas causas. Negociar, aliás, é algo que aprendeu, em parte, no balcão do armazém que manteve por quase 15 anos numa peça anexa à construção principal da casa, erguida por ela e o marido a barro e serrote. O bar, que "nem nome tinha", era uma renda extra, mas foi mais um dos incômodos de que, à medida dos anos, Dona Iris resolveu se desfazer. Primeiro, porque os consumidores de cachaça começaram a se multiplicar, e "aquela junção" a desagradava dia a dia. Não bastasse, alguns clientes não honravam com aquilo que acertavam no fio do bigode, e, como Dona Iris não leva desaforo tampouco despesa alheia para casa, volta e meia se via na missão de dar uma incerta na casa dos inadimplentes.
– Pegava o cavalo e batia nas casas. Sempre vinha uma desculpa ou outra para não pagar. Não eram muitos, mas sempre tinha, e eu ia cobrar mesmo. Se não tinha dinheiro, se tava esperando o porco engordar ou coisa parecida, eu pegava o porco, a galinha, o que fosse como pagamento. Botava no lombo do cavalo e me vinha – relembra.
Nas eleições municipais de 2012, a agricultora resolveu encarar o pleito como candidata. Já havia se filiado ao Partido Progressista (PP) e resolveu aceitar o desafio de amigos correligionários. A intenção, segundo ela, era ajudar a legenda a cumprir o percentual de candidatas mulheres exigido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ganhar era uma consequência remota, mas ela gostava da movimentação que uma disputa eleitoral promovia no Barrocão. A candidatura seria mais uma experiência, um aprendizado que colocaria na bagagem pessoal. Ela relembra com bom humor a carreira política meteórica:
– Nem sei quantos votos fiz, mas aprendi a conhecer muitos vizinhos aí da volta. Gente que vinha aqui em casa me pedir ajuda, comer e beber, mas não foi capaz de me dar um triste voto. Um que fosse! – brada, com o dedo em riste, achando graça do desempenho nas urnas.
Política segue um "aborrecimento bom", que a atiça de longe, mas já não produz ilusões. Dona Iris fez 13 votos.