Por Gunter Axt
Historiador
Terminada a Revolução Farroupilha, com a Paz de Ponche Verde, em 1845, após 10 anos de combates no extremo sul do Brasil, ninguém queria mais falar do assunto. Anistiados os rebeldes, pagas as suas dívidas pelo Império vencedor, interessava a todos colocar uma pedra sobre a história e reincorporar os rio-grandenses à comunhão. Avizinhava-se outra guerra.
O caudilho Juan Manuel Rosas ameaçava, na Argentina, interesses do Império, e, tanto mais, dos sul-rio-grandenses no Uruguai. Além disso, o Uruguai se independentizara do Brasil em 1828 e havia limites a serem fixados. Assim, com participação entusiasmada dos bravos gaúchos, em 3 de fevereiro de 1852, o "Exército Grande" derrotou Rosas na batalha de Monte Caseros, em território argentino. Estavam saradas as feridas separatistas.
Em 1868, em Porto Alegre, ao tempo já da Guerra do Paraguai, quando Brasil, Argentina e Uruguai aliaram-se para derrotar o ditador Solano Lopes, intelectuais reunidos no Parthenon Literário começaram a exaltar a figura do habitante da Campanha, cuja existência ligava-se à criação ganadeira e ao cavalo. Eram tempos de romantismo.
Em todos os países, artistas debruçavam-se sobre a cultura popular, buscando os elementos para a conformação das nacionalidades. Verdi na Itália, Chopin na Polônia, Liszt na Hungria, Wagner na Alemanha estavam entre os que seguiam a receita do filósofo Herder (morto em 1803), que promovia o abandono da cultura clássica.
No Brasil, José de Alencar cumpria esse papel. Em 1870, publicou o romance O Gaúcho, primeiro de uma série que retratou o Brasil distante do bulício da Corte. Incensava-se a figura do "centauro dos Pampas" e iniciava-se o culto ao gaúcho, cuja aparição heroica teria se dado em meio ao tonitruar do entrechoque de lanceiros, ao faiscar de esporas, aos golpes de valentia desferidos no combate corpo a corpo. Uma imagem oposta daquela desenhada por Antônio Vale Caldre Fião em A Divina Pastora, de 1847 (segundo romance publicado no Brasil), que anatematizou a traidora dissensão civil que dilacerara o Rio Grande do Sul, seguindo os passos do Visconde de São Leopoldo, cujo Anais da Província de São Pedro fora escrito em pleno desenrolar do conflito.
O Visconde se identificava com o Império centralizado, fiel às tradições europeias, mas adaptado ao meio, sendo responsável pela instalação da imigração alemã nas proximidades de Porto Alegre, pela criação dos cursos jurídicos e pela fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição de onde brotou o discurso da viabilidade da nação tropical e miscigenada, tema sistematizado na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, na década de 1850. Além disso, o Visconde sofrera na pele o saque e a destruição de sua chácara, promovidos pelos Farrapos. Compreensível, portanto, que nutrisse antipatias pelo movimento.
Em princípios dos anos 1880, a velha Revolução Farroupilha foi encampada pelo imberbe movimento republicano. Dois de seus próceres, Ramiro Barcellos e Joaquim Francisco de Assis Brasil, escreveram livros nos quais destacaram o republicanismo pioneiro, o liberalismo das ideias e o viés regionalista. A propaganda republicana confundia-se com a exigência por descentralização. Como notou Gaspar Silveira Martins, em maio de 1889, o republicanismo recuperava a aspiração federativa parcialmente concretizada no malogrado Ato Adicional de 1834, que, aos olhos dos exaltados liberais de outrora, fora insuficiente para conter a onda revolucionária, que acabou desaguando em 1835. Por outro lado, divergências internas dos rebeldes foram ignoradas por Assis Brasil e Ramiro Barcellos. Não convinha mostrar heróis seminais disputando projetos diferentes.
Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, estabeleceu-se uma linha direta entre a Farroupilha e o Partido Republicano Rio-Grandense, que se consolidou no poder após a sangrenta Revolução Federalista, cuja memória, por seu turno, não despertou o interesse de intelectuais – quem gostaria de badalar estupros, degolas, assassinatos, saques e toda a sorte de violência fratricida? Convinha esquecer. Na gesta de clarins que embalava nossas tradições não havia lugar para a barbárie de 1893.
Com a Revolução de 1930, o caráter gaúcho foi promovido nacionalmente. Tentou-se esvaziar o conteúdo separatista: um congresso do Instituto Histórico e Geográfico do Estado concluiu que os farrapos jamais haviam desejado a separação. Em 1933, Alfredo Varella publicava a sua História da Grande Revolução, organizando a narrativa factual do então já chamado "decênio heroico". Já o general Souza Docca fez o elogio da colonização portuguesa, como fizera Gilberto Freyre em seu magistral Casa Grande e Senzala, e atrelou a história sul-rio-grandense à epopeia militar lusa, destacando o caráter brasileiro do gaúcho – brasileiro por opção, cidadão-soldado na vanguarda da nação!
Em torno da memória da Revolução Farroupilha, inventou-se uma tradição, rediviva todos os anos numa celebração do regionalismo e do etos rural, em pleno espaço urbano e industrial.
GUNTER AXT
Historiador
Em 1935, o centenário da Farroupilha foi comemorado com grandes eventos: exposições industriais, publicações, edificação de parques urbanos, temporadas líricas, estreias de peças teatrais e reapresentação de uma ópera. Um esforço do governador, General José Antônio Flores da Cunha, para conciliar a tradição campeira e regionalista com a modernidade urbana e industrial. Apesar do ditatorial Estado Novo que veio a seguir, emplastando as diferenças regionais, a semente estava plantada.
O Movimento Tradicionalista, tal como o Parthenon Literário, achou que a Farroupilha condensava os valores da gauchicidade a serem entronizados. Àquela altura, a palavra "gaúcho" perdia o tom pejorativo e a pilcha, antes indicativo de grossura, e converteu-se em galardão. O mate, em baixa entre os jovens urbanos, tornou-se hábito cotidiano e símbolo cultural. Foi um pulo para os políticos tornarem a Semana Farroupilha um evento oficial do Estado: virou lei em dezembro de 1964, justamente no momento em que as lideranças regionais apercebiam-se de que a centralização no Brasil seria irreversível, em decorrência do regime militar recém-instalado.
Hoje, até a nossa Assembleia é gaúcha e há uma inusitada lei para regulamentar o verdadeiro churrasco (iguaria que, a propósito, surgiu nos restaurantes da capital gaúcha nos anos 1930, e não antes, como poderiam muitos supor). A Revolução Farroupilha tornou-se um mito fundante da identidade sul-rio-grandense. Em torno de sua memória, inventou-se uma tradição – para se utilizar conceito de Eric Hobsbawm –, rediviva todos os anos numa celebração do regionalismo e do etos rural, em pleno espaço urbano e industrial.