Em julho do ano passado, um estudante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) foi encontrado morto no campus de Palmeira das Missões. Havia tirado a própria vida. Em fevereiro, uma aluna teve o corpo localizado no quarto, na unidade de São Borja da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). O caso foi noticiado como suicídio, mas uma perícia posterior não ratificou essa causa. Em maio, outra estudante, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), matou-se.
Os três episódios, que envolveram universitários em sofrimento psíquico, deram contorno trágico a um problema que alarma as universidades: a deterioração da saúde mental de parte expressiva dos alunos. As estatísticas indicam que há um fenômeno grave em andamento, detectado pelas instituições, que multiplicaram programas de suporte.
A UFRGS, por exemplo, criou no ano passado um grupo de trabalho em saúde mental do estudante e lançou um site com orientações sobre o tema. A UFSM também acaba de montar um comitê para atuar na prevenção, além de contar com uma liga de alunos que atuam na proteção dos colegas. Não é um fenômeno apenas brasileiro. Mundo afora, as universidades estão experimentando formas de fazer frente ao desafio.
Por meses, GaúchaZH conversou com quase duas dezenas de estudantes das três universidades em que ocorreram as mortes e deparou com uma sucessão de relatos sobre isolamento e depressão. Cada novo aluno ouvido declarava estar passando ou ter passado por episódios depressivos ou de ansiedade. Alguns disseram ter se sentido à beira do suicídio. Todos afirmaram estar cercados por colegas em situação mental precária.
Esse cenário tornou-se mais visível após uma revolução no Ensino Superior, que colocou o sonho de cursar a universidade ao alcance de grupos tradicionalmente excluídos. Nos últimos anos, houve a ampliação das vagas, a interiorização dos cursos, a adoção de políticas de cotas e a possibilidade de ingresso com a nota do Enem, por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Essas mudanças criaram uma mobilidade acadêmica inédita, com estudantes espalhando-se pelo Brasil.
Alunos e professores ouvidos por GaúchaZH acreditam que essa bem-vinda transformação, responsável por democratizar o acesso e promover a igualdade, pode ter tido um efeito colateral imprevisto. A escassez de estruturas e recursos de apoio aos ingressantes pode ter favorecido casos de depressão nos campi.
A morte mais recente foi de uma estudante de Jornalismo da UFPel que havia chegado do interior paulista em 2016 (GaúchaZH não publica o nome por não ter conseguido entrevistar um parente próximo). Quem encontrou o corpo foi Vitória Borgelt, em maio, ao voltar para casa depois de passar a noite na residência de um amigo.
Com a mesma idade (20 anos), Vitória e a estudante de Jornalismo também compartilhavam a moradia e a condição de forasteiras (Vitória é paraense e vivia no Rio). Eram amigas, e antes haviam sido namoradas. As duas também compartilhavam sintomas de depressão, que se agravaram após terem ido a Pelotas.
– Nosso relacionamento amoroso havia terminado uns três meses antes, mas ela era a família – conta Vitória.
Por que fizemos esta matéria?
Esta reportagem foi motivada por notícias de suicídios em campi do Estado e pela percepção do repórter, em conversas ocorridas durante a apuração de outra ideia de matéria, de que havia muitos relatos envolvendo a degradação da saúde mental de estudantes. Diante desse problema, detectado pelas instituições de ensino, que vêm criando serviços para dar apoio aos alunos em sofrimento, GaúchaZH entendeu que era importante retratá-lo, de forma a mostrar a necessidade de um olhar atento ao tema, como ocorre hoje em muitos países.
Como apuramos esta matéria?
Durante meses, conversamos com alunos e especialistas e investigamos as iniciativas que as universidades têm tomado para combater o problema. Encontramos iniciativas no Brasil e no Exterior, que estão mencionadas nas diversas partes desta reportagem.
Quais os cuidados que tomamos?
O texto foi submetido ao psiquiatra Rafael Moreno Ferro Araujo, que até recentemente coordenava a comissão de prevenção ao suicídio da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.
Segundo Vitória, a amiga vinha sofrendo crises de ansiedade e acordava à noite, em pânico, sem conseguir reconciliar-se com o sono. Nos últimos dias, mostrava preocupação com as finanças.
– No mesmo dia em que se suicidou, ela havia feito uma planilha de gastos, que iam dar um pouco altos. Saiu para entregar currículos. Tinha dívidas, uns R$ 1 mil. Para uma estudante que não trabalha, isso é uma quantia considerável – relata.
Por falta de recursos, conta, a estudante de Jornalismo havia interrompido as sessões com um psiquiatra particular e deixara de tomar a medicação que ele receitava. Buscou, em lugar disso, um plano de saúde popular – a primeira consulta ocorreu dias antes do óbito. As dificuldades financeiras seriam só parte do problema. Segundo Vitória, a amiga revelara que já havia feito três tentativas de se matar. Vitória chegara a Pelotas em 2018, para estudar Relações Internacionais. Quando o suicídio ocorreu, a mãe viajou imediatamente à cidade, para lhe fazer companhia, o que foi decisivo.
– Também tenho depressão. Na primeira semana depois de encontrar o corpo dela, tive impulsos suicidas. Já havia sentido isso, por questões da faculdade e financeiras, mas não tão fortes – relata.
Vitória relaciona os quadros depressivos entre estudantes à mudança de cidade, às cobranças acadêmicas e à falta de perspectivas:
– O jovem sai de casa com 17 ou 18 anos e, de um dia para outro, tem de arcar com várias responsabilidades. A pressão é grande. A universidade demanda que os estudantes se comportem como robôs. A gente vê colegas passando quatro, cinco dias sem dormir, porque têm de estudar. É um sistema cruel. Além disso, deparamos com uma cidade onde não temos laços. A gente sente extrema solidão. É um sentimento de abandono, de estar à mercê em um lugar em que não se conhece ninguém. O pessoal em Pelotas é mais fechado, o que pesa. Quando olhamos para o futuro, deparamos com um cenário incerto. Não temos perspectiva. Muitos se questionam: “Estou me sacrificando para quê, se vou terminar o curso e não vou ter emprego?”.
À procura de outras pessoas que conheceram a aluna de Jornalismo, GaúchaZH chegou a uma colega de curso, Marla Duarte, 31 anos. Marla também vivencia um quadro emocional difícil, que a levou a trancar a matrícula. Ela diz não ter ficado surpresa com a morte.
– A gente a amava, era impossível não gostar dela. Tinha um coração enorme. Como posso dizer? Era das poucas pessoas que eu conseguia abraçar e ficar abraçada. Quando morreu, falei para as amigas: “O mais triste é saber que isso não foi uma surpresa”. E as gurias: “Como assim, não foi uma surpresa?” Aí eu percebi que ela se abria comigo, se queixava, falava do quanto estava triste, dos remédios que tomava. Resumindo, é como se ela tivesse parado de funcionar. E, como não funcionava, não conseguia se sentir feliz.
Natural de Pelotas, Marla afirma que também parou de funcionar. Descreve a sensação de paralisia, de falta de vontade, “como ter cinco elefantes em cima”. Foi algo que piorou depois da perda da amiga, levando-a a passar três semanas dentro do quarto, chorando.
– Mas antes da morte dela eu já estava isolada. Minha mãe olhou para mim e disse: “Tu queres trancar a faculdade? Tu estás precisando disso?”. Aí me abracei nela e comecei a chorar. O que me deu uma levantada é que estou tomando antidepressivo. Mas um psiquiatra, o mínimo que se consegue pagar é uns R$ 150. Cada consulta é esse valor. Estou indo atrás para ver se consigo atendimento de graça, mas a fila é grande. Como é que a gente faz? A gente só fica impotente e triste – afirma Marla.
Aluna de Ciências Sociais na federal de Pelotas, Camilla Borges, 28 anos, diz ter predisposição a desenvolver depressão, o que evitou com acompanhamento especializado. No segundo semestre da faculdade, porém, viveu um momento difícil, relacionado aos desafios acadêmicos.
– Achei que não daria conta, me senti inúmeras vezes burra por não compreender os textos. Tive crise de depressão e busquei auxílio pela universidade, que não consegui de imediato. Ocorreu uma semana acadêmica sobre depressão e suicídio. Levei minha mãe e falamos sobre a minha vontade pelo suicídio. A partir dali, consegui atendimento, que durou apenas um semestre, com alunos da Psicologia. Mas é assim, enquanto você não estiver no limite, dificilmente vai conseguir ser atendido. Minha família não tem condições de pagar tratamento, e pelo SUS o sistema de terapia em grupo é falho e por vezes perturbador, pois você fica exposto aos problemas alheios, além da própria exposição.
Camilla reconhece que a universidade tem programas de assistência psicológica, mas considera que a fila é grande e demorada. Ela se mostra preocupada por causa da frequência com que vê colegas enfrentando crises de ansiedade, de depressão e de pânico.
– Os alunos vivem em constante estresse por conta de pressão acadêmica, distância de casa e da família, dificuldades financeiras etc. E a instituição não dá conta de atender a todos e todas. Muitos estão doentes, e tanto a universidade quanto o serviço de assistência psicológica municipal não têm estrutura para o atendimento da população – diz Camilla.
Depois da perda, Vitória Borgelt, ex-namorada da estudante de Jornalismo que se suicidou, passou a frequentar um grupo de apoio com psicólogos, oferecido pela UFPel. Afirma que a experiência está sendo positiva. Mas descreve sua condição atual como uma montanha-russa. Quando falou com GaúchaZH, por exemplo, vinha de um período em casa, de atestado médico.
– Muita gente não está bem, e falamos pouco sobre isso – disse.
A percepção de Vitória é confirmada pelos números. No ano passado, 424 mil estudantes das universidades federais responderam a questionários elaborados pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Os resultados foram divulgados em maio, na V Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Estudantes de Graduação. Os dados revelam que os problemas de saúde mental são muito presentes nos campi – e se agravam.
Uma proporção expressiva de estudantes declarou que teve alguma dificuldade emocional (83,5%), sofreu de ansiedade (63,6%), procurou atendimento psicológico no último ano (9%), está em acompanhamento no momento (9,7%) ou toma medicação psiquiátrica (6,5%). Nesses casos e em vários outros, os índices são piores do que na edição anterior da pesquisa, realizada em 2014. Cinco anos atrás, por exemplo, 6,38% dos graduandos disseram ter ideias de morte. No ano passado, eram 10,8%. A proporção de alunos com pensamento suicida dobrou: foi de 4,13% para 8,5%.
Um dos responsáveis pela pesquisa, Leonardo Barbosa e Silva, professor da Universidade Federal de Uberlândia, diz que a ideação suicida está relacionada a viver sozinho, ser solteiro, ser sedentário, enfrentar situações de assédio moral e também problemas financeiros. Ele vincula o fenômeno à mudança no perfil dos alunos:
– Esse processo começou com a expansão das universidades, indo para o Interior, a política de cotas e o Sisu, que deu certa mobilidade espacial. O perfil do estudante mudou. Hoje, 70% têm renda per capita de até 1,5 salário mínimo. Para poder estudar, esse público demanda um conjunto de estruturas: alimentação, moradia, transporte, apoio pedagógico, assistência em saúde, esporte e lazer. Temos de saltar da democratização do acesso à universidade para a democratização da permanência.
Pesquisadora do suicídio entre universitários há duas décadas, a professora de Psicologia Elza Dutra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cita uma série de fatores de risco que deixam o estudante vulnerável à depressão, vários deles relacionados ao processo mencionado por Barbosa e Silva: a distância da família, a inserção em um ambiente cultural diferente, as dificuldades financeiras, o preconceito racial, a homofobia.
Se a transformação no Ensino Superior abriu a universidade a parcelas da população que eram excluídas, acredita ela, também pode ter favorecido fatores de risco. A interiorização da universidade e o acesso via Enem, por exemplo, tornaram mais comum a experiência de estudar longe da família e em uma cultura diferente, às vezes homofóbica. As cotas sociais e raciais, por sua vez, garantiram o acesso de negros e pobres, potencializando as situações de racismo e de gente em apuro financeiro dentro dos campi.
O médico psiquiatra Rafael Moreno Ferro Araújo, professor da Univates, observa que ser universitário não é algo que configure, em si, um fator de risco – jovens que não estudam e não trabalham, por exemplo estariam mais vulneráveis. Mas o ambiente acadêmico apresenta peculiaridades que podem contribuir para a deterioração da saúde mental.
– Hoje há alunos de todas as origens, muita diversidade, conhecimentos muito díspares, mas alguns professores não têm tolerância, esquecem de fazer um nivelamento no começo do curso. Não adianta só aumentar atendimento, tem de agir na prevenção. Universidades de estilo mais moderno têm poucos trabalhos extraclasse, por exemplo, porque o aluno já tem uma carga horária imensa. Aí ele não dorme, aumenta a ansiedade, tem ideação suicida. Há muito aluno tomando remédio para não dormir e abusando de medicações.
Um dos primeiros estudantes com quem GaúchaZH conversou, há um ano, foi Rafa Barbosa, 22 anos, aluno de História no campus de Jaguarão da Unipampa. Baiano de Salvador, ele se transferiu para a fronteira com o Uruguai em 2014, via Sisu. Escolheu a cidade gaúcha porque a irmã já estava lá. A adaptação foi “terrível”.
– Primeiro, senti a mudança climática. Quando cheguei, fazia 16ºC. Eu achava muito frio. Em Salvador, o mínimo que faz é 21ºC. Depois tem a questão cultural, de calor humano. As pessoas são distantes. Dentro da universidade eu me sinto acolhido, mas a cidade tem muito preconceito, primeiro por eu ser uma pessoa negra, depois por ser gay. Além disso, tem a questão das dificuldades financeiras, por estar longe de casa e não ter familiares, embora eu tivesse minha irmã aqui, mas ela também passava pelo mesmo. Os estudantes geralmente moram numa casa precária, que é o que dá para pagar – contou Barbosa.
Como estava faltando dinheiro para se manter, o universitário começou a trabalhar logo que chegou a Jaguarão, mas sentiu que, no emprego, recebia um tratamento diferente daquele dispensado a um colega que era branco. Ganhou apelidos e foi alvo de piadas, o que identificou como xenofobia. Outro problema era a falta do que fazer na cidade. Para alguém chegado da quarta maior metrópole do país, Jaguarão, com 28 mil habitantes, carece de alternativas.
– É realmente uma cidade um tanto inóspita às vezes. E as passagens para cidades maiores são muito caras, então a gente não sai daqui. Eu me sinto para baixo, sem vontade de estudar, faltando um semestre – disse Barbosa, no ano passado.
Na época, em meio ao período letivo, sentiu que precisava fazer algo e voltou para Salvador. Passou 10 dias indo à praia e comendo acarajé. Na volta a Jaguarão, organizou uma roda de conversa sobre saúde mental na universidade, mediada pelo namorado, médico. Representante discente em instâncias da Unipampa, Barbosa havia ouvido falar em oito tentativas de suicídio entre estudantes e resolveu fazer algo. Quarenta alunos compareceram ao encontro.
– Na maioria das vezes, os casos não passam pelos setores da universidade. Os alunos procuram seus semelhantes para conversar. Fiquei sabendo do surto de tentativas porque sou representante discente do curso de História, e as pessoas me tomam como referência. O primeiro caso que eu soube foi de um aluno que desistiu da faculdade e voltou para Porto Alegre. A gente sempre ouvia ele dizer: “Não aguento mais essa universidade e tudo isso que a gente tem para ler”.
Em junho, GaúchaZH voltou a conversar com Rafa Barbosa. Ele já não é mais representante discente e está focado em formar-se no fim do ano, mas as queixas continuam chegando até ele.
– As pessoas andam depressivas. Eu, inclusive, tenho tentado não cair nessa, ficar só, isolado. Vejo o mesmo desgaste em vários colegas, que não veem perspectiva de emprego no futuro.
Entre os amigos de Barbosa está Mayara Souto, 22 anos, também aluna de História do campus de Jaguarão da Unipampa. Vinda da periferia de São Paulo, ela fez o Enem, inscreveu-se no Sisu e conseguiu vaga na cidade gaúcha, da qual nunca tinha ouvido falar. A primeira surpresa que teve foi com o custo de vida. Imaginava que uma cidade do Interior implicaria gastos mais modestos do que na maior metrópole da América do Sul, mas deparou com uma realidade oposta. Ao mesmo tempo, sentiu a dificuldade de se adaptar ao novo ambiente.
– O momento em que mais fiquei mal foi no primeiro ano. O quadro depressivo foi grande, porque eu não sabia o que fazer, estava num lugar completamente diferente, muito tempo em casa vendo cair chuva. Teve a questão de como eu ia chegar aqui, como ia me adaptar, como ia fazer tarefas que normalmente não era eu quem tinha de fazer. Uma das formas que utilizei para enfrentar isso, de me sentir isolada, foi adotar um cachorro, um vira-lata. Ajudou, só que aí aumentaram os gastos. Colabora a visão que a cidade tem dos estudantes. A cidade se fechou, e o aluno de fora tem dificuldade de se sentir integrado. Também não tem a parte do lazer. Quando a gente se junta dentro de uma casa para conversar, para ter um momento de lazer, os vizinhos se incomodam e a polícia aparece. E a faculdade tem muita pressão. Você tem de dar respostas rápidas, o que faz com que fique em modo de ataque todo o tempo, favorecendo a ansiedade. Quem não tem quadro depressivo tem algum problema com ansiedade – relata Mayara.
A paulistana diz que a depressão a impediu de acompanhar o ritmo das aulas, o que vai atrasar a formatura. Ela não chegou a acumular faltas, mas só ia à faculdade para não perder a bolsa. Sentava-se no fundo e se sentia incapaz de estudar. Por duas vezes, esteve perto do suicídio.
– Já tentei buscar ajuda de várias formas, ver como funciona no SUS, mas as respostas que eu tenho são de que o sistema está superlotado. Em 2016 acabei indo atrás do Caps (Centro de Atenção Psicossocial), mas é superlotado. Tive um acompanhamento muito rápido. A psicóloga atuou mais no sentido de não me deixar cometer suicídio. Quando viu que eu estava mais calma, me liberou e pediu para eu tentar buscar autoconhecimento, porque não tinha como trabalhar comigo.
Mayara continua sem tratamento, estava havia um ano e meio sem visitar a família no momento da entrevista e segue às voltas com dificuldades financeiras. Ela tem a chamada bolsa-permanência, de R$ 300, mais uma bolsa de pesquisa de R$ 200. Gasta R$ 220 com aluguel e ainda tem as despesas com água, luz, internet, comida e cachorro. A mãe manda o dinheiro que sobra, mas mesmo assim costuma faltar. Houve atrasos no pagamento de bolsas, e ela teve de pedir empréstimos. Acumulou uma dívida de R$ 600 com o banco.
– Contribui para ficar mal não saber como pagar as coisas. Comecei a pensar em desistir do curso. Tem também a conjuntura, como a gente vai sair daqui, conseguir emprego. A maior parte das pessoas com quem converso está fazendo licenciatura, não sabe se vai conseguir lecionar. Os meus amigos fazem relatos de desânimo, de quadro depressivo, de ansiedade. O meu estopim é muito voltado ao álcool, e tenho compulsão alimentar. Só que muitas vezes não tenho como comprar, então fico só com as ideias na cabeça.
Rafa Barbosa e Mayara acreditam que neste ano houve um fator que abalou os alunos, piorou o clima emocional na universidade: a morte de uma colega do campus da Unipampa em São Borja, Raíne Guimarães Santos, 26 anos. Caçula de uma família de três irmãos de Itaquaquecetuba (SP), Raio de Sol, como era conhecida pelos colegas, estudava Nutrição em São Paulo, em uma faculdade privada. Em 2015, anunciou aos familiares o plano de transferir-se para São Borja, para cursar Ciências Políticas. Disse que seria mais em conta: a faculdade era de graça e ela poderia obter moradia e alimentação com a universidade.
– Ela nos vendeu esse sonho, mas preferíamos que não fosse – contou um parente próximo, que pediu para não ser identificado.
Até 30 de novembro do ano passado, não havia indícios de que Raíne estivesse enfrentando problemas, mas naquele dia ela fez uma postagem no Facebook que começava com as seguintes palavras: “Pensei muito antes de escrever esse texto, remoí mágoas/pensamentos por semanas, minha vida acadêmica parou, TUDO parou. Passei a girar em torno do que aconteceu, em pensar no por quê?”. Na postagem, ela acusava outro estudante da Unipampa de ter abusado dela. “Essa pessoa ultrapassou de novo o limite estipulado pelo “NÃO”, sim, eu disse NÃO! Eu estava bêbada e por isso vulnerável, mas isso não te dava o direito. Como todos abusos cometidos por tal, não houve sangue ou penetração, mas isso não diminui os estragos à minha saúde mental e/ou das suas respectivas vítimas (Sim, todos sabem, foram várixs). NÃO HOUVE CONSENTIMENTO.”
O suposto abuso, continuava, teria ocorrido em uma festa, em 7 de novembro, durante encontro de estudantes da Unipampa, em Santana do Livramento. “Com esse episódio minha saúde mental se deteriorou a um ponto que não desejo isso para mais ninguém”, escreveu Raíne. A estudante registrou ocorrência na Delegacia de Polícia de São Borja e denunciou o caso à direção da universidade. O post gerou repercussão, com centenas de reações de apoio, e assustou a família. Os parentes insistiram para que Raíne voltasse para casa, o que ela fez no fim do ano.
– Ela só falou para nós que tinha ocorrido um abuso, não deu detalhes. Ela contava de uma forma, assim, sabe quando é algo dolorido? Quando você toca em algo dolorido, você não consegue terminar – conta o parente.
No início de 2019, a estudante disse à família que retornaria a São Borja. O familiar, no entanto, diz que ela estava transformada, abalada por entender que a universidade e as autoridades não haviam tomado providências em relação à denúncia que fizera.
– Depois do abuso, quando ela viu que as coisas não estavam andando, ficou deprimida. Ela foi internada, né? O que ela passou para mim foi o seguinte: “Eu tive um surto, depois de uma reunião da faculdade”. Isso foi em dezembro – conta o parente.
Na noite do dia 3 de fevereiro, domingo de Carnaval, Raíne esteve com amigos no cais do porto de São Borja, uma zona de lazer, com bares e restaurantes. Entre esses amigos estava Maria Júlia Fontoura, 23 anos, recém-formada em Relações Públicas.
– Foi uma noite em que a gente saiu, estava na mesma festa, conversei com ela, a gente trocou umas palavras, e depois cada uma foi para o bolinho em que estava. Não notei nada diferente. Foi só aquele papinho “tudo bem? Como está? O que está fazendo?”. Uma conversa bem informal – diz a amiga.
Raíne voltou para casa, no centro de São Borja, naquela noite. No dia seguinte foi encontrada morta, trancada em seu quarto. O caso foi noticiado como suicídio, e o conhecimento generalizado da acusação de abuso levou colegas a relacionarem uma coisa com a outra. Alguns acusaram a Unipampa de ter protegido o suposto abusador.
Em resposta a GaúchaZH, a Unipampa afirma que criou uma comissão para apurar as denúncias feitas por Raíne e que “não encontrou elementos no sentido de que tenha ocorrido assédio por parte do acusado”. A universidade também afirmou que, entre outras medidas, solicitou ao estudante envolvido que se mantivesse afastado da aluna e da instituição durante a apuração do caso. A universidade entende que não houve omissão ou negligência de sua parte.
Em julho, a DP de São Borja concluiu o inquérito sobre a morte. Segundo o delegado Marcos Vianna, os laudos apontaram como possível causa do óbito uma asfixia motivada pelo bloqueio das vias respiratórias por vômito. Não foram encontrados indícios de suicídio.
– O mais provável, pelo que a gente apurou, é que tenha sido algo acidental – disse o delegado.
GaúchaZH também questionou Vianna sobre a ocorrência de abuso registrada por Raíne na DP seis meses antes. Como o caso teria ocorrido em Livramento, disse ele, a ocorrência foi encaminhada à delegacia da cidade. GaúchaZH procurou a outra DP, onde uma funcionária consultou o sistema informático da polícia e disse que a ocorrência continuava em São Borja.
GaúchaZH voltou a falar com Vianna:
– No sistema consta como DP de São Borja, ainda, mas foi remetida fisicamente para Livramento, por ofício, em 6 de dezembro. Está lá, sim. A nossa praxe é a seguinte: eu encaminho a ocorrência fisicamente, em vez de transmiti-la pelo sistema, porque não sei qual é o órgão que vai investigar. No momento em que a ocorrência chega lá, vai ser atribuída ao órgão que tem a atribuição, e então esse órgão vai fazer contato com a gente para que façamos a transmissão no sistema. Isso não foi feito ainda. Quer dizer: eles receberam a ocorrência, mas não pediram a transferência. Talvez estejam fazendo uma apuração preliminar e não tenha sido necessário instaurar o inquérito ainda. No momento em que vão instaurar, a ocorrência tem de estar no órgão deles – afirmou Vianna.
GaúchaZH voltou a entrar em contato com a DP de Livramento, para questionar se houve abertura de inquérito e algum tipo de investigação.Um dia depois, conseguiu falar com a delegada responsável, Giovana Muller. Deu-se o seguinte diálogo:
– Tu falastes com a secretária agora? Passei as informações para ela. Qual é a tua dúvida ainda?
– A minha dúvida é exatamente o que foi feito nessa investigação.
– Todos os crimes que envolvem dignidade sexual tramitam em segredo. Então só posso dizer que está em investigação.
– Mas alguém já foi ouvido?
– É tudo em segredo de Justiça. Eu não posso passar nenhuma informação.
– A senhora não pode dizer se alguém foi ouvido?
– Não. Só posso confirmar que está aqui conosco.
– É que estudantes da faculdade e familiares têm um entendimento de que não foi feito nada, de que existe omissão por parte das autoridades. Se a senhora pudesse dar alguma segurança a essas pessoas de que algo foi efetivamente realizado...
– Não posso afirmar nem negar, não posso referir absolutamente nada a respeito desse procedimento, porque tramita em segredo de Justiça. O que posso referir é que ele existe e está sendo dado andamento. Ele não está parado. Não existe omissão.
– Porque a menina morreu, não é?
– Essa é a informação que tu tens. Não sei. Não posso confirmar. Não vou falar nada.
O Código Penal determina segredo de Justiça nos crimes que ferem a dignidade sexual, mas um despacho de 2014 do ministro do STF Celso de Mello observa que a cláusula “tem por única finalidade proteger a vítima dos delitos em questão e neutralizar os efeitos negativos decorrentes do estrépito judiciário (...), preservando, desse modo, a intimidade e a honra do ofendido”. Consultado por GaúchaZH, um delegado da área afirma que informar quando um inquérito foi aberto e se houve a tomada de algum depoimento são informações que não ferem a intimidade da vítima e que costumam ser repassados. Por meio da Lei de Acesso à Informação, GaúchaZH pediu a liberação dessas informações, no caso da ocorrência de Raíne. A Polícia Civil recusou, acrescentando que “o interessado poderá solicitar providências junto à Delegacia de Polícia competente, a critério da autoridade policial”.
Familiares não acreditam que a causa da morte de Raíne tenha sido suicídio, mas estão convencidos de que o desfecho trágico está relacionado ao sofrimento mental decorrente do suposto abuso.
– Depois do abuso, ela mudou. Ficou abalada pelo fato de não ter resultado, de não ter havido providência – disse o parente.
Yasmin Ialuny, 22 anos, estudante de Jornalismo, conhecia Raíne e estava no encontro em Livramento, onde o suposto abuso teria ocorrido.
– Ele ficava dizendo para as pessoas que era namorado dela, se aproveitando da situação de vulnerabilidade alcoólica. O relato que eu tenho dela é que, durante a festa, ele ficava tentando beijá-la e fazer outras coisas com ela.
Yasmin avalia que a amiga foi descredibilizada depois de fazer a denúncia, o que pode tê-la afetado:
– O caso não ia para a frente, e ela começou a ser descredibilizada. Não houve uma medida protetiva da parte das nossas instituições. Ela deu entrada na delegacia, mas as investigações são muito lentas. Imagina você ser descredibilizada com uma coisa tão séria?
Carioca, Yasmin está em São Borja desde 2016. Pensou que seria interessante estudar em uma cidade pequena, sem praia, para se concentrar nas atividades acadêmicas. Confessa que tinha uma concepção edulcorada da vida no campus, em parte formada pelo cenário idílico pintado em filmes.
– A imagem que eu tinha era de algo mais divertido. Encontrei uma realidade diferente. É um ambiente competitivo, que passa do saudável, de aluno para aluno, mas às vezes até do próprio professor, de ele se colocar no pedestal e maltratar aluno ou querer que chame de “senhor” , “senhor doutor”, coisas de nomenclatura que são ridículas quando se tem respeito.
Três de suas melhores amigas, seus “pilares”, não aguentaram e voltaram para suas cidades de origem. Yasmin se sentiu só.
– Fui ao médico, com dores em tudo que era parte do corpo, e ele começou a perguntar coisas da minha vida pessoal. Levou uns dias até eu entender o que estava acontecendo e que pessoas comunicativas e ativas podem adoecer dessa forma.
Yasmin continuou a terapia, voltou a fazer esporte e dedicou-se ao voluntariado, o que a ajudou a superar o momento mais pesado, embora afirme ainda sentir-se, às vezes, “meio chateadinha”. Ela diz estar cercada de colegas com ansiedade e depressão, alguns com histórico de tentativa de suicídio.
– Dando uma de “comunistinha”, como diriam aqui na cidade, tudo começa pelo sistema em que a gente vive, esse sistema capitalista onde todos têm de ter uma graduação, uma graduação que dê dinheiro. Tem muita gente do meu curso que estuda porque isso faz parte do ciclo social escola-faculdade-achar emprego-casar-etc. Há essa pressão.
Maria Júlia Fontoura, a Relações Públicas recém-formada que esteve com Raíne na noite de sua morte, revela que começou a fazer acompanhamento psicológico e a tomar medicação durante o curso. Além de Raíne, ela perdeu recentemente uma pessoa ainda mais próxima, um amigo de infância, Kevin Guimarães Klein, que tirou a própria vida em julho de 2018 no campus de Palmeira das Missões da UFSM. Kevin tinha 23 anos e estudava Biologia.
GaúchaZH conversou com uma irmã dele, Elisa Gottfried, 32 anos, artista e produtora cultural. Ela contou que o caçula cresceu em uma família desagregada e foi criado pela avó, em São Borja.
– Ele era afetuoso, mas frágil. Eu acompanhava de longe. A gente era irmão de temporada. Porque a gente se via nas férias. Aconteceu uma vez de ele conversar comigo, chorar muito, dizer que tinha raiva, porque era dolorido para ele o lugar onde estava – relata Mishta.
O primeiro momento complicado ocorreu quando Kevin foi fazer História em Santa Maria. A irmã diz que a experiência foi péssima. Kevin não conseguiu moradia estudantil ou bolsa, enfrentou dificuldades para dar conta das exigências e obteve notas baixas.
– Ali foi o primeiro sinal. Ele se fragilizou. A depressão se desenvolveu no primeiro contato com a universidade. Estava sozinho, precisava cumprir com uma demanda e não conseguia. Ele se frustrou, porque realmente tentou.
Kevin desistiu do curso e voltou a morar em São Borja, até conseguir uma vaga pelo ProUni em Ijuí, para estudar Biologia. Mais tarde, veio a transferência para o campus da UFSM em Palmeira das Missões. Também começou um namoro que Mishta descreve como complicado.
No ano passado, Kevin foi a Roraima, onde Mishta e a mãe moravam. Nessa ocasião, a irmã percebeu que ele não estava bem. Nos dias anteriores à morte de Kevin, Mishta notou que ele estava fazendo postagens desesperadas no Twitter. Tentou conversar por WhatsApp, mas ele não respondeu.
– Era no Twitter que eu encontrava ele, sabia o que perguntar para ele não fugir de mim, porque ele era escorregadio. A situação era preocupante, só não sabia que era tanto. Essa geração tem essa característica de estar o tempo todo tuitando, eles se relacionam mais por tuíte do que presencialmente. Estão mais presentes, de entrega mesmo, sinceridade, no Twitter. Quando se encontram, ficam distantes, é superficial o assunto – diz Mishta.
Em Roraima, ela frequentou o curso de Artes Visuais da universidade federal local. Nos primeiros dias, uma colega tirou a própria vida. Um pouco mais velha que os colegas, Mishta percebia que eles estavam debilitados emocionalmente e não eram capazes de se defender como ela. Identificava falta de sensibilidade e violência psicológica por parte de alguns professores:
– O que aconteceu com o Kevin está dentro de uma coisa muito maior. Essa geração está vindo com pouca estrutura psicológica, com uma fragilidade de formação da psiquê. Estão mais frágeis, e essa fragilidade não está dando estrutura para suportar a pressão. Eles se comunicam muito virtualmente, não rola um desenvolvimento de inteligência emocional. Daí eles não suportarem a pressão abusiva que ocorre dentro das universidades.
Elza Dutra, especializada no suicídio entre universitários, não está otimista. O antídoto seria as universidades oferecerem uma estrutura melhor, entende ela, mas a realidade vai no sentido contrário:
– O aluno vive ameaçado. Está perdendo bolsa, residência, projetos para se capacitar. Isso altera a qualidade de vida. Estamos num clima emocional muito ruim, de adoecimento mesmo. Precisava de mais apoio, mas estão destruindo a universidade. Imagina qual não vai ser a quantidade de suicídio, de depressão, de doença mental, de sofrimento nesses próximos anos?