Leia a seguir a segunda parte da reportagem Esquizofrenia: como uma família lida com a doença mental grave dentro de casa.
Fumante, Leonardo não sentia o cigarro queimar entre os dedos, onde se abriram feridas fundas. Urinava-se nas calças e dependia de alguém para lhe dar banho. Teve a fase em que não conseguia dormir – e também não deixava ninguém dormir. Sobressaltado por pesadelos, passava as noites falando, chorando, com medo das vozes. Os pais precisavam velar o sono do filho já adulto, revezando-se ao lado dele, para que tentasse descansar com a segurança de que estavam ali, ao lado.
Multiplicaram-se as internações – quando não havia mais o que pudesse ser feito em casa, os Cruz recorriam a um médico que autorizasse a baixa. A passagem por um dos hospitais é rememorada com dor por Marilia: no dia de visita, ela encontrou Leonardo vestindo roupas que não eram dele. À volta, outros internos gritavam, andavam nus ou se masturbavam pelos corredores. Sentiam-se, mãe e filho, dentro de um presídio. Além da medicina, a família apelou a tudo o que pôde: aconselharam-se com um paranormal em Canoas, visitaram uma mãe de santo no Morro Santa Tereza que fez um trabalho com galinhas.
Ao andar no banco de trás do carro da família, Leonardo xingava os motoristas dos outros veículos por acreditar que estava sendo ofendido por eles.
– Quem dizia nome feio? – exaltou-se Leonardo, como se falasse de um terceiro, durante o depoimento da mãe à reportagem.
– Você! Brigando com as vozes que te perturbavam! – respondeu Marilia. – Hoje ele sabe, mas naquela época não sabia – esclareceu ela à repórter.
A dona de casa e o caçula estão sentados à mesa da sala. Habituado a dormir até perto do meio-dia, ele acordou mais cedo naquela manhã por conta da entrevista. Tinha nítida dificuldade para controlar o sono. Mais de uma vez, baixou a cabeça, com a testa apoiada no tampo de vidro do móvel, e cochilou. Uma espessa poça de cuspe se formou sob a boca.
A sonolência e a salivação excessivas são efeitos adversos da clozapina, droga que, mesmo antiga, ainda é eficaz para os casos mais sérios da esquizofrenia. Leonardo integra uma minoria entre os esquizofrênicos, a dos considerados ultrarrefratários a medicamentos, ou seja, aqueles em quem a doença tem fraca resposta ao tratamento. Além dos remédios via oral, ele se submete a sessões de eletroconvulsoterapia (ECT) para que fique menos instável.
Apesar da desinformação de boa parte do público leigo, que tende a condenar esse procedimento, a ECT é, segundo a psiquiatra Maria Inês, positiva para sintomas resistentes. Décadas atrás, com o lançamento dos antidepressivos, imaginou-se que a ECT não seria mais necessária, mas a terapia ainda se prova muito útil, atesta a médica. Deitado em uma cama e dormindo com uma dose baixa de sedativo, o doente recebe estímulos de no máximo oito segundos, via eletrodos, na cabeça. A “convulsão” que dá nome à intervenção é percebida pelo eletroencefalograma, exame que monitora a atividade elétrica do cérebro. Terminada a sessão, que não leva mais do que 10 a 15 minutos, o paciente é levado para a sala de recuperação, acorda, come ou bebe algo e, em seguida, pode ir embora.
– É a busca do reequilíbrio na transmissão neuronal. Faz-se isso depois que todas as tentativas medicamentosas não tiveram sucesso. Nunca é a primeira escolha porque precisa de todo um envolvimento hospitalar. Tem pacientes que melhoram com ECT e ficam fazendo ECT de manutenção – explica Maria Inês.
Vou te dizer uma coisa: você não vai conseguir se matar com isso aí. Você vai se machucar, não vai morrer, vai nos dar um baita problema porque vamos ter que sair daqui e te levar a um pronto-socorro e não vai resolver.
MARILIA COELHO CRUZ
Mãe de Leonardo
À procura da tranquilidade do campo, os pais e o filho moraram por um tempo em um sítio nas cercanias da Capital, enquanto Viviane ficou sozinha na cidade. A cada galho de árvore que serrava, a dona de casa sentia que botava um tanto de raiva para fora. Pelo menos uma vez, Leonardo ameaçou se ferir. Com uma faca pequena de cozinha, anunciou:
– Vou me matar. Não aguento mais!
Marilia, àquela altura mais habituada aos rompantes do jovem, encontrou calma para manejar a crise.
– Vou te dizer uma coisa: você não vai conseguir se matar com isso aí. Você vai se machucar, não vai morrer, vai nos dar um baita problema porque vamos ter que sair daqui e te levar a um pronto-socorro e não vai resolver.
Em desespero, ele repetia:
– Eu não quero mais viver!
Envolvimento familiar é vital para o bem-estar do esquizofrênico
Voluntária da Associação Gaúcha dos Familiares e Pacientes Esquizofrênicos (Agafape), Marilia é uma octogenária superativa que tenta colocar o caçula no seu ritmo – sempre o incluiu em seus compromissos, nunca deixou de lutar para que a sociedade o olhasse de frente e o respeitasse enquanto doente mental. Na sede da entidade, em uma sala da Galeria Malcon, no Centro, Leonardo participa de oficinas de artesanato e ajuda em pequenas tarefas. Duas vezes por semana, ele tem frequentado aulas de pilates – como só precisa atravessar a rua em frente ao prédio onde mora, pode ir sozinho. A outra única ocasião em que sai desacompanhado é para as caminhadas que o têm ajudado a perder peso. Leva 40 minutos para dar cinco voltas na quadra.
Leonardo passou 20 anos sem andar sozinho na rua. Os pais assumem a culpa: deveriam ter permitido que o filho não ficasse tão preguiçoso e dependente dos dois. À exceção da higiene pessoal, que consegue manter, Leonardo tem Marilia e Jose Luiz à disposição o tempo inteiro para preparar e lhe servir a comida, tirar os pratos da mesa, lavar a louça e a roupa, arrumar a cama. O aeroviário aposentado me serviu um café preto – nos alongamos na conversa, e já se aproximava a hora do almoço – e uma porção de bolachas. O filho solicitou uma xícara também. Quando Leonardo abriu o açucareiro, depois de comer todos os biscoitos, a mãe acompanhou o movimento com o olhar.
– É uma colherinha pequena, não esquece – advertiu ela.
– É assim? – perguntou o filho, mostrando o talher cheio.
– Nã, nã, nã! – repreendeu Marilia. – Só uma pontinha!
– Só isso? – reclamou ele.
O drama da doença psiquiátrica não toma todos os cantos da convivência familiar. Abre-se espaço, e muito, para o bom humor. Há dias em que Leonardo, em crise, começa a cantilena habitual:
– Mãe, mãe! Eu vou morrer!
A idosa rebate:
– Acredita em Deus? Então deita. Se tiver que morrer, vai morrer. O plano funeral está pago!
Uma vez, Marilia ouviu um psiquiatra falando que os relatos dramáticos dos esquizofrênicos devem ser banalizados. Ela passou a achar graça de alguns dos apelos do filho.
– Mãe, você ainda ri de mim! – retruca Leonardo.
– Não vou chorar porque você não morreu. No dia em que você morrer, vou chorar.
Fundamental para o bem-estar do esquizofrênico, o envolvimento familiar pode ser a diferença entre uma vida ativa, dentro das limitações da doença, e o confinamento. O paciente tende a ficar descuidado com o corpo e apresentar embotamento, perdendo a capacidade de demonstrar emoções. A concentração e a atenção também são abaladas. Em vários momentos, Leonardo, que fala devagar, perdeu-se na resposta às questões que lhe eram dirigidas. Funciona como se fosse uma lâmpada de luz intermitente: liga e desliga.
Quando parece que está conseguindo encadear as palavras e as ideias em uma frase com sentido, para de repente, numa pausa longa, e precisa de ajuda para retomar o assunto sobre o qual discorria segundos antes. Em outros momentos, simplesmente concorda com o interlocutor, que fica na dúvida sobre a consistência de seu discurso: estaria ele falando realmente o que pensa ou apenas concordando com o que lhe é exposto porque essa é a saída mais fácil em um diálogo? Ele pode também retomar um tópico anterior mais à frente, provando que dedicou mais tempo do que se esperava àquela resposta.
– Que tipo de coisas você ouve? – perguntei.
– Que eu vou ser infeliz, que eu vou viver sozinho, que eu vou morrer – detalhou Leonardo.
– É voz de homem ou de mulher?
– Olha... eu acho que de homem. Não tenho muita definição.
– A voz é bem alta?
– É um murmúrio, bem baixinho.
– Você já consegue se controlar melhor quando ouve a voz?
– Quando vem a voz eu fico ruim! Sinto uma pressão... uma coisa muito ruim. Esqueço as coisas.
– Demora para passar?
– Não sei... Assim como vem, vai.
– E agora? Você está se sentindo bem?
– Apesar do sono... Me cobro muito para ficar acordado. Num evento como agora, de entrevista...
– Não precisa ficar constrangido por minha causa.
– As vozes... Eu acho que são de homem, não sei.
– Como você me explicaria a esquizofrenia? Consegue explicá-la?
– Bah, agora seria difícil de falar.
– O que você sente e que não gostaria de sentir, além do sono?
– Tirando o sono, esse lance, assim, de que eu vou morrer, ouvir essas coisas.
– Você fica nervoso?
– Fico bem nervoso. Mas assim como vai, volta.
– Você está feliz com a vida que tem?
– Felizmente.
– Está gostando das coisas que está fazendo?
– Estou gostando das coisas que estou fazendo.
– Do pilates, das oficinas, das caminhadas?
– Das caminhadas.
– Dos livros?
– Dos livros.
É possível melhorar
Para o diagnóstico, a observação atenta dos parentes também é vital. Como a esquizofrenia aparece a partir do fim da adolescência, alguns sintomas podem ser confundidos com as típicas crises dessa fase. O jovem pode ficar mais isolado e ensimesmado, envolvido com rituais místicos – o que já é uma tentativa de lidar com o que se passa na mente – ou ter mau desempenho nos estudos. Maria Inês ressalta que o consumo de maconha é um dos fatores de risco.
– As pessoas desvalorizam isso e confundem com repressão. Assim como fumar dá câncer, usar maconha, especialmente na adolescência, quando o cérebro está se desenvolvendo, aumenta o risco de psicose – afirma a psiquiatra.
A hereditariedade também é um fator predisponente, mas pais e mães devem se esforçar para introjetar o fato de que não são culpados. Maria Inês complementa:
– A família deve entender que essa doença tem tratamento e que é preciso buscar o melhor tratamento. Controlar os sintomas habilita a pessoa a poder fazer coisas. Lutamos para que o paciente não tenha suas competências deterioradas. A maioria dos doentes demora dois anos para chegar ao sistema de saúde.
A família deve entender que essa doença tem tratamento e que é preciso buscar o melhor tratamento. Controlar os sintomas habilita a pessoa a poder fazer coisas. Lutamos para que o paciente não tenha suas competências deterioradas. A maioria dos doentes demora dois anos para chegar ao sistema de saúde.
MARIA INÊS RODRIGUES LOBATO
Psiquiatra, professora da pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS
Abreu ressalta que é possível, sim, que o esquizofrênico melhore. Em alguns casos, o paciente reaprende habilidades relacionadas a áreas do cérebro comprometidas pela doença, como a que está ligada ao entendimento do olhar das outras pessoas e à interpretação das emoções. Estima-se que, se bem tratados, até 20% dos pacientes podem ficar muito bem. Em torno de 65% atingem um estágio moderado de recuperação.
– Muitos se inserem bem no mercado de trabalho. Alguns são mais durões, secos, ríspidos. O esquizofrênico é mais honesto do que a maioria das pessoas, tem muita dificuldade de mentir. É dedicado, pode fazer tarefas chatas e repetitivas e gostar – relata o médico.
Juntos há 60 anos, Marilia e Jose Luiz asseguram que o casamento nunca sofreu abalos decorrentes do estresse derivado da doença de Leonardo. Uma única ameaça de rompimento, diz a idosa, deu-se por outro motivo: o ciúme exagerado dele em relação a ela. O aposentado observa quieto e não se opõe.
– Ele tinha ciúme até do açougueiro! Não sei comprar carne até hoje. Quando ele parar de comprar, vamos comer salsicha – concluiu a dona de casa.
Marilia fala, fala, fala. Encontrou nesse recurso uma válvula de escape. Colocou a facilidade com as palavras a favor da divulgação de esclarecimentos sobre a esquizofrenia. Conversa com pais, mães, palestra em eventos.
– Elaboro as coisas dentro da minha cabeça falando. Acho que já nasci falando. E, quando eu morrer, acho que eles vão seguir ouvindo a minha voz por aí!
Todos riram.
– Vou apertar bem (os parafusos do caixão) – planejou Jose Luiz, gesticulando como se girasse os pinos de metal.
A “esperancinha” da cura
No dia em que foram feitas as fotos da família Cruz, Viviane apareceu na casa dos pais e do irmão para participar da sessão. Mora, há duas décadas, no mesmo apartamento alugado, a poucos metros dali.
Eu não penso. Não vou pensar no que vai me acontecer daqui a mais tempo. Não sei o que vai acontecer amanhã, vou viver tudo o que posso viver hoje. Amanhã, se Deus me der a sorte de viver mais um pouco, vou viver mais outro tanto. Não espero o futuro. Nem penso. Se pensar, vou me queimar.
JOSE LUIZ CRUZ
Pai de Leonardo
– Eu tenho que te amar muito para vir com essa chuva, hein? – comentou ela ao abraçar Leonardo.
Trinta anos atrás, Viviane, 56 anos, estava voltando de uma aula do curso de Letras quando a mãe lhe deu a notícia que mudaria tudo a partir dali:
– Seu irmão está na Pinel.
Quieta, a jovem passava muito tempo trancada no quarto, escrevendo. Chorava escondida. Aos 35 anos, sentiu que precisava sair de casa “para não enlouquecer junto”. Confessou a ZH, diante dos pais, que sente falta de conversas de família mais íntimas.
– Trabalho muito, sou sozinha, tenho que resolver tudo sozinha. Um dia seremos só eu e ele. O que eu faço? Qual a senha do banco? – lamentou a professora de uma escola pública na Região Metropolitana. – Tenho que estar bem psicologicamente, fisicamente. Pretendo estar bem para cuidar do meu irmão, não vou abandoná-lo jamais.
Reservado, Jose Luiz, em uma rara manifestação, falou sobre o futuro:
Deus há de saber o que fazer. Se Ele sempre soube até agora, e a gente conseguiu sobreviver a tudo isso... O Leonardo, para nós, é uma bênção. Estamos, hoje, em uma situação que, se melhorar, estraga.
MARILIA COELHO CRUZ
Mãe de Leonardo
– Eu não penso. Não vou pensar no que vai me acontecer daqui a mais tempo. Não sei o que vai acontecer amanhã, vou viver tudo o que posso viver hoje. Amanhã, se Deus me der a sorte de viver mais um pouco, vou viver mais outro tanto. Não espero o futuro. Nem penso. Se pensar, vou me queimar.
Marilia seguiu a mesma linha de pensamento do marido.
– O meu problema termina no dia em que eu morrer. Sei que falhamos em dar mais autonomia para ele, mas agora sei que ele está mais em condições de pegar essa autonomia, está bem estabilizado. A Viviane tem bastante entendimento. Eles têm esse apartamento para morar, vai depender do que assimilaram durante a vida para tocar para a frente. Sei que vai ser diferente, não tem ninguém igual a nós, cada um é de um jeito, mas as coisas vão acontecer e vai dar certo. Deus há de saber o que fazer. Se Ele sempre soube até agora, e a gente conseguiu sobreviver a tudo isso... O Leonardo, para nós, é uma bênção. Estamos, hoje, em uma situação que, se melhorar, estraga – disse Marilia, sorrindo. – Mas aquela esperancinha, a da cura, a gente sempre tem.