Quem Matou María Marta? (2020), na Netflix, é uma série que você começa e termina no mesmo dia. Não apenas por ser curta — quatro episódios de 58 minutos, em média —, mas porque sua história é cheia de mistérios e reviravoltas que nos prendem à tela. Ainda mais por serem mistérios e reviravoltas sobre crimes reais.
Dirigida por Alejandro Hartmann e em cartaz desde o dia 5, Quem Matou María Marta? é um documentário sobre aquele que é considerado o caso mais rumoroso, mais controverso da crônica policial argentina. Na abertura do primeiro episódio, conta-se que recebeu dos jornais e das TVs mais atenção do que os julgamentos das juntas militares da ditadura no país vizinho.
Eu confesso que desconhecia a história, o que tornou a experiência eletrizante. Dito isso, tranquilizo vocês: não vou revelar pormenores. O único spoiler, digamos, está dado no próprio título da minissérie. Quando o documentário começa, o viúvo, o ex-investidor da bolsa de valores Carlos Carrascosa, hoje com 75 anos, familiares e amigos de María Marta García Belsunce reconstituem a primeira versão da morte da socióloga argentina, que participava de um programa de TV com um de seus irmãos, Horacio, e era vice-presidente da Fundación Missing Children (crianças desaparecidas): a de que ela havia sofrido uma espécie de acidente doméstico em 27 de outubro de 2002, aos 50 anos.
Aos poucos, quase que na mesma medida em que as autoridades e a imprensa foram descobrindo uma trama oculta, entendemos que não foi acidente, nem suicídio: alguém matou María Marta.
Quem? E por quê? Este é o grande enigma, que envolve os parentes, os médicos que tentaram prestar socorro e vizinhos do condomínio de casas onde a vítima e Carrascosa moravam: o Carmel Country Club, um éden com campos de golfe, quadras de tênis e forte esquema de segurança em Pilar, a 50 quilômetros de Buenos Aires.
Tudo é contado com uma combinação bem azeitada de imagens e áudios de arquivo, dramatizações e depoimentos de praticamente todos os principais personagens. Além de Carrascosa, dos irmãos e dos meios-irmãos de María Marta, deram entrevistas o promotor Diego Molina Pico, advogados da família García Belsunce, peritos forenses e jornalistas que cobriram o caso, por exemplo. Merecem destaque as cenas de tribunal, palco de uma altercação entre duas amigas da socióloga e de um interrogatório cheio de malícia e ironia de um vizinho malquisto.
Pela comoção causada junto à mídia e à opinião pública (dividida quanto à culpabilidade dos acusados), pela sucessão de viradas na trama, pelas desconcertantes contradições e pela quantidade de ramificações — que acabam por pintar um retrato do país —, Quem Matou María Marta? remete a outra grande série documental da Netflix: Bandidos na TV. Nos sete episódios dessa atração de 2019, o diretor britânico-paraguaio Daniel Bogado conta a história do apresentador de TV Wallace Souza, que se elegeu três vezes deputado estadual no Amazonas, em 1998, em 2002 e em 2006, graças a sua suposta luta contra o tráfico de drogas, carro-chefe de um programa sensacionalista e sangrento, o Canal Livre. Suposta porque, segundo um delator, Wallace comandava uma organização criminosa — a suspeita é de que ele próprio planejava os homicídios que alavancavam a audiência do Canal Livre.
Os crimes em Bandidos na TV e em Quem Matou María Marta? são absolutamente distintos, mas os dois documentários mostram como as pessoas podem ser ambíguas, como os laços familiares pesam, como uma investigação deve prestar atenção tanto aos mínimos detalhes quanto ao quadro geral, como a polícia e a Justiça cometem tropeços, como o poder (seja pelo dinheiro, seja pela violência) compra o silêncio, como a verdade é algo subjetivo e como algumas perguntas nunca serão respondidas.