É argentino o melhor filme que vi nas férias: Crimes de Família (2020), lançado em agosto pela Netflix. Dirigida por Sebastian Schindel e protagonizada por Cecilia Roth (de Tudo Sobre Minha Mãe), a história tem como cenário Buenos Aires, mas poderia ser Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outra cidade brasileira onde há uma elite que se considera intocável e divinamente superior às classes menos favorecidas; onde a palavra do homem pesa mais do que a da mulher; onde o dinheiro compra quase tudo, mas não tudo.
Aparentado dos brasileiros Casa Grande (2014) e Que Horas Ela Volta? (2015), Crimes de Família forma uma espécie de díptico com um longa-metragem anterior de Schindel, diretor e roteirista de 45 anos. Em O Patrão: Radiografia de um Crime (2014), um homem humilde do interior arranja emprego como açougueiro na cidade grande. Mas seu chefe, um sujeito sinistro, impõe condições análogas à da escravidão, além de obrigá-lo a vender carne estragada. Classificado como uma mistura de drama e policial, o título foi eleito o melhor filme daquela temporada pela associação dos críticos argentinos.
Crimes de Família mescla a crítica social ao filme de tribunal. Na trama, Gladys (personagem interpretada por Yanina Avila) é uma moça semianalfabeta que foi entregue – isso mesmo, entregue – para trabalhar e morar na casa de uma família abastada. Lá, seu filho pequeno, Santí, vira um neto postiço para Ignácio (Miguel Angel Solá) e, sobretudo, Alicia (Cecilia Roth). É que seu neto de verdade, Martincito, está afastado do convívio dos avós por causa da turbulenta separação do filho, Daniel (Benjamin Amadeo), e da nora, Marcela (Sofia Gala) - a quem Alicia, no começo da história, se refere, agressivamente, como "aquela negra". E o fato de Marcela ser branca só torna mais racista e repulsiva a manifestação da sogra.
Mas isso Alicia só fala à boca pequena, no círculo íntimo das amigas com quem come fatias generosas de cheesecake depois da aula de yoga. Essa é a tradicional família hipócrita, que cultiva na aparência os vínculos afetivos (vide a coleção de porta-retratos exibida na primeira cena do filme) e dorme sob a proteção de um enorme crucifixo, mas é capaz de ameaçar, mentir, burlar, corromper.
Esse comportamento é intensificado quando os componentes criminais do filme começam a ser explicitados por Sebastian Schindel. Em uma proposta que, pelo menos para mim, se mostrou intrigante e envolvente, Crimes de Família inicia-se com dois tempos narrativos. Em um deles, o presente, podemos dizer, Alicia recebe um telefonema da penitenciária: Daniel está preso. No futuro próximo, Gladys acorda algemada a uma cama de hospital.
Os delitos que cada um cometeu dão margem para o cineasta abordar temas como a relação patrão/empregado doméstico, as diferentes formas de violência contra a mulher – não só aquela exercida pelo homem, mas também a que uma sociedade patriarcal pratica –, o efeito devastador das drogas, os limites éticos que podem (ou não) ser atravessados em nome da família. Tudo é conduzido com uma secura atordoante, daí que há um estranhamento com o tom um pouco mais afetuoso e resolutivo adotado ao final. Mas não é nada que reduza a força de Crimes de Família. Talvez, pelo contrário, seja mais um aspecto positivo, um estímulo à transformação – a pessoal e a social.