A Cor da Fúria é um filme de 1995 que se passa em uma realidade alternativa. É tipo um episódio estendido do seriado Além da Imaginação (The Twilight Zone). Aliás, sua trama se encaixaria bem na fase atual da atração criada por Rod Serling em 1959, agora sob o comando do cineasta Jordan Peele, vencedor do Oscar de melhor roteiro original por Corra! (2017) e realizador de Nós (2019).
Escrito e dirigido por Desmond Nakano, um americano com ascendência japonesa, o filme mostra o único caso possível de existir o chamado racismo reverso: um mundo em que, ora, as coisas são invertidas. Um mundo como o da piada do comediante muçulmano Aamer Rahman (um australiano com pais de Bangladesh) sobre a máquina do tempo que mudaria a mão da tensão racial nos Estados Unidos — procure no YouTube, vale a pena. Uma sociedade que não escravizou durante séculos os africanos e na qual os negros formam a classe privilegiada; cabe aos brancos, em minoria e marginalizados, lidarem com o subemprego e com o preconceito, com a miséria e com a desconfiança. É o fardo do homem branco, como diz o título original, White Man's Burden (que, por sua vez, é o nome de um poema de Rudyard Kipling que, em 1899, exortava os EUA a assumirem o controle das Filipinas).
John Travolta interpreta Louis Pinnock, operário branco de uma fábrica de chocolate que está apto a conseguir uma promoção. Um dia, ele vai à casa do seu patrão, Thaddeus Thomas (papel de Harry Belafonte), para entregar uma encomenda, mas um mal-entendido provoca sua demissão — e aí o personagem ingressa em uma espiral de desespero que explica o nome dado ao filme no Brasil.
Travolta tinha acabado de concorrer ao Oscar de melhor ator por Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino, quando A Cor da Fúria foi lançado. Isso contribuiu para dar algum cartaz ao longa-metragem do estreante Nakano. Mas o filme naufragou nas bilheterias (custou US$ 7 milhões e arrecadou apenas US$ 3,7 milhões) e junto à crítica — no site Rotten Tomatoes, tem somente 24% de avaliações positivas.
Só que os tempos eram outros em 1995. Em 25 anos, muita água rolou na questão da representatividade e do combate à desigualdade racial.
A crítica americana que espinafrou A Cor da Fúria segue sendo majoritariamente branca, mas hoje existem a African-American Film Critics Association (AAFCA), criada em 2003, e o Black Film Critics Circle (BFCC), fundado em 2010.
Em 1995, nenhuma negra havia vencido o Oscar de melhor atriz — Halle Berry, que ganhou em 2002, por A Última Ceia, continua sendo a única. Mas é inegável que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood passou a reconhecer mais o talento de artistas afro-americanos. Até 1995, na 67ª edição do prêmio, somando as quatro categorias de interpretação, houve 32 indicações, com seis vitórias. Nas 25 cerimônias realizadas de lá para cá, foram 46 indicações, e em 13 oportunidades negros saíram do palco com a estatueta dourada nas mãos.
Entre os diretores, até 1995 apenas John Singleton, por Os Donos da Rua, já havia concorrido. Depois, somaram-se a ele Les Daniels (Preciosa), Steve McQueen (12 Anos de Escravidão), Barry Jenkins (Moonlight), Jordan Peele (Corra!) e Spike Lee (Infiltrado na Klan). Por duas vezes, uma produção dirigida por um negro e com elenco predominantemente negro venceu o Oscar de melhor filme — 12 Anos de Escravidão, em 2014, e Moonlight, em 2017. A propósito, a temática ficou mais diversificada, abrindo espaço para a sexualidade, para os super-heróis (Pantera Negra, indicado ao Oscar de melhor filme) e para os gêneros do terror na obra de Peele) e da ficção científica (vide Caixa Preta — no original, Black Box —, em cartaz no Amazon Prime Video).
Os avanços não foram somente na esfera cinematográfica, nem restritos aos Estados Unidos.
Em 1995, era um sonho distante um homem negro ocupar a Casa Branca — Barack Obama só foi eleito o 44º presidente dos Estados Unidos em 2008. E quem, em 1995, imaginava que o primeiro piloto negro da Fórmula-1, um esporte elitista por excelência, acabaria se tornando o recordista de títulos e de vitórias (e ainda por cima usando de sua popularidade e de sua relevância para promover causas como a Black Lives Matter)? Na temporada 2020, o inglês Lewis Hamilton igualou o hepta de Michael Schumacher e ultrapassou o alemão em número de chegadas no primeiro lugar.
No Brasil de 1995, ainda não existia a política de cotas raciais nas universidades federais — a pioneira foi a Universidade de Brasília, em 2004. Era coisa de ficção científica uma telenovela das oito com protagonista negra — Taís Araújo quebrou esse tabu em Viver a Vida (2009). Sete anos antes, Heraldo Pereira tornou-se o primeiro negro a assumir a bancada do Jornal Nacional. Somente em 2012 ocorreu a eleição de Joaquim Barbosa para o cargo máximo da Justiça, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF). E apenas agora, em 2020, a Feira do Livro de Porto Alegre escolheu um escritor negro, Jeferson Tenório, como patrono.
Diante desse contexto de conquistas significativas, mas ainda não suficientes para falarmos de equidade, não é loucura supor que, hoje, a recepção a A Cor da Fúria seria outra. Talvez mais positiva, com certeza mais barulhenta — naquela época, vale lembrar, também não havia as redes sociais, e a própria internet, que ajudou a amplificar a voz dos excluídos, ainda era incipiente.
É bem possível que mais gente se interessasse por um filme que convida a população branca a fazer o básico: colocar-se no lugar dos negros. Sentir o que é ser alvo de olhares escrutinadores e da violência policial. Entender como a cor pode ser decisiva no mercado de trabalho e como isso, às vezes, pode levar à criminalidade de sobrevivência. Bem melhor e mais saudável seria nós, os brancos, compreendermos que somos privilegiados e que essa condição é intrínseca ao racismo estrutural. Mas enfim — fica a dica para as plataformas de streaming e os canais de TV: resgatem A Cor da Fúria, nem que seja para, após uma discussão com a visão contemporânea, relegá-lo novamente ao ostracismo.