Em um post no Facebook, o poeta gaúcho Ronald Augusto definiu Destacamento Blood (Da 5 Bloods), o novo filme de Spike Lee, como meio embaçado. De fato, ao misturar a evocação da Guerra do Vietnã com uma trama de caça ao tesouro, ao mesclar – como é característico em sua carreira – registros documentais da história coletiva dos negros americanos a dramas fictícios, ao abordar racismo e colonialismo, as heranças letais deixadas em zonas de conflito e o estado de espírito da era Donald Trump, o cineasta acabou diluindo a força de alguns desses ingredientes. Um pouco mais de foco narrativo faria bem inclusive à duração, visivelmente alongada em demasia – são duas horas e 35 minutos.
Mas Destacamento Blood, em cartaz na Netflix desde sexta-feira (12), é um filme de Spike Lee, do começo ao fim. E isso por si só já justifica assistir ao 24º longa-metragem do realizador de Faça a Coisa Certa, Febre da Selva, Malcolm X, Quatro Meninas, A Hora do Show, A Última Noite, O Plano Perfeito e – a lista de destaques é extensa, né? – Infiltrado na Klan.
Este último título, vencedor do Oscar de roteiro adaptado em 2019 e indicado às estatuetas de melhor filme, diretor, ator coadjuvante (Adam Driver), edição e trilha sonora, subiu a régua para a comparação inevitável. Primeiro por ser o trabalho anterior, mas também porque é outra obra em que Lee mergulha no passado dos Estados Unidos para refletir questões contemporâneas. Como o nome explicita, Infiltrado na Klan conta a história real de um policial negro do Estado do Colorado que, no final dos anos 1970, conseguiu se infiltrar na célula local da Ku Klux Klan. O alvo do cineasta não é somente a famigerada organização racista americana. Lee ataca Donald Trump, de várias formas. O vilão da trama, David Duke, é um declarado apoiador do presidente americano; frases e expressões de Trump (como o slogan "America first") são encaixadas nos diálogos; e o filme termina com cenas das marchas de neonazistas e nacionalistas brancos em Charlottesville, na Virginia, em 2017, quando um jovem de extrema-direita acabou acelerando seu carro contra uma multidão de manifestantes antifascismo, o que resultou na morte de uma mulher. Em seu primeiro pronunciamento sobre o episódio, o mandatário da Casa Branca condenou a "exibição flagrante de ódio, fanatismo e violência em muitos lados".
Destacamento Blood tem início com uma daquelas colagens típicas de Lee (como a do epílogo de A Hora do Show), uma sucessão trepidante de imagens históricas, discursos e entrevistas. Há o lendário boxeador Muhammad Ali justificando por que recusou servir na Guerra do Vietnã: "(Vietnamitas) Não me chamam de crioulo, nunca me lincharam, nunca me perseguiram, nunca roubaram minha nacionalidade". Há declarações dos líderes e ativistas Malcolm X, Kwame Ture, Angela Davis e Bobby Seale, que criticam a exploração da mão de obra negra, das plantações de algodão nos tempos da escravidão ao uso como "bucha de canhão" na Segunda Guerra Mundial (a propósito, este não é o primeiro filme de guerra de Lee, conhecido por suas tramas urbanas e nova-iorquinas: em 2008, ele fez Milagre em Sta. Anna, sobre soldados afro-americanos no front italiano). Há imagens do conflito no Sudeste Asiático e dos protestos universitários duramente reprimidos nos EUA. Há a renúncia de Nixon e a queda de Saigon, a capital do Vietnã, desde então Ho Chi Minh, até que, enfim, conhecemos os personagens do filme.
São quatro ex-soldados que, 50 anos depois, empreendem uma viagem de volta ao Vietnã. Paul (Delroy Lindo, em sua quarta colaboração com o diretor), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock Jr.) estão à procura de um baú cheio de ouro e dos restos mortais do comandante de seu destacamento, Stormin' Norman (Chadwick Boseman, o Pantera Negra da franquia Marvel) – descrito como uma mistura de Malcolm X, que apontava a violência como método de autodefesa para os negros, e Martin Luther King, que pregava a resistência não violenta. Com a voz suave mas rascante de Chadwick Boseman, Norman é ele próprio um orador, o personagem com o qual o diretor valoriza o poder da palavra como agente conscientizador e transformador, primeiro de um indivíduo, depois de um grupo, e quem sabe da sociedade. Seu objetivo com o ouro é revertê-lo emfavor da causa negra.
Spike Lee intercala a narrativa no presente com flashbacks da guerra no Vietnã (em um gesto bonito para com o elenco, os atores são os mesmos no passado, sem rejuvenescimento digital à la O Irlandês). Ao mesmo tempo em que cita o clássico de Francis Ford Coppola Apocalypse Now – o nome batiza uma boate de Ho Chi Minh onde o quarteto se diverte, por exemplo, e ouve-se A Cavalgada das Valquírias em uma sequência –, queixa-se da ausência de filmes sobre os soldados negros que foram heróis naquele conflito. Aliás, ele informa que os negros, que representam cerca de 12% da população americana, correspondiam a 32% das tropas. Destacamento Blood é, de modo peculiar, o Rambo II: A Missão de Spike Lee – não faltam ação, tiros e sangue. Mas como é um filme de Spike Lee, a ironia se faz presente: a todo instante, a trilha sonora com canções do disco What's Going On (1971), de Marvin Gaye, nos lembra que "war is not the answer / for only love can conquer hate".
A ficção é pontuada por inserções documentais, que acabam sendo pontos altos do filme: são incisivas e não raro nos pegam desprevenidos, ao contrário do desenrolar da trama, em que até mesmo eventos trágicos podem ser antecipados. Há passos telegrafados desde o momento em que David (Jonathan Majors), o filho de Paul, que se junta aos veteranos na capital vietnamita, encontra Hedy (Melanie Thierry), uma francesa integrante de uma ONG preocupada com a herança deixada pelas guerras.
Aí a história começa a tropeçar, indecisa entre as muitas direções a seguir: ora é um filme sobre o tratamento dispensado aos soldados negros pelos EUA, ora um filme de assalto com seus habituais impasses internos e cizânias movidos pela ambição, ora roça num comentário sobre o colonialismo francês no Vietnã, ora ressalta os dramas particulares de cada integrante do agora quinteto. O desenvolvimento dramático dos personagens também fica aquém do desejado. Com exceção de Otis, os coadjuvantes não têm chances de ombrear com Paul, este, sim, mais bem trabalhado, tanto no papel quanto na atuação de Delroy Lindo – seu sorriso pode ser enternecedor, mas seu olhar pode ser aterrador.
Paul – e aqui vai um alerta de spoiler neste parágrafo – é o personagem que encarna tanto a loucura da guerra (que nunca abandona seus envolvidos) quanto a "loucura" de um negro votar em Trump. A exemplo do que seu presidente costuma fazer, Paul vê o estrangeiro como inimigo ou fracote. Individualista, vai estar sozinho quando precisa de ajuda. Traidor do movimento, terá de lidar com uma cobra, animal que simboliza a arapuca em que se meteu. Crente, verá fantasmas – que, se por um lado podem representar sua consciência, por outro não deixam de ser notícias falsas. Não à toa, a certa altura acaba colocado de cabeça para baixo.
Mas Paul também é um vetor positivo. É ele quem, em uma cena carregada de simbolismo, aponta um caminho para a salvação: reatar laços familiares e colocar todo mundo a puxar a corda na mesma direção.
Por fim, como em um legítimo filme de Spike Lee, Destacamento Blood conecta ficção e realidade, passado e presente, amor e revolta, dor e esperança. A coincidência de ser lançado na esteira do caso George Floyd – o homem negro morto covardemente por um policial branco em Minneapolis, nos EUA – torna ainda mais pungentes a menção ao movimento Black Lives Matter e a reprodução de um discurso de Martin Luther King feito exatamente um ano antes de seu assassinato, em 1968: "Reforçamos que a América nunca seria livre ou salva de si mesma até que os descendentes de escravos sejam completamente libertados dos grilhões que ainda usam. De certa forma, concordamos com (o poeta) Langston Hughes, o bardo do Harlem, que escreveu: 'Ah, sim, eu afirmo que a América nunca foi a América para mim. Mas eu juro: a América ainda será!'".