Em vez do alarde promocional, é o boca a boca de espectadores impactados que estimula a descoberta de uma atração de grande valia histórica-cultural no menu da Netflix: Guerra do Vietnã, série documental em 10 episódios assinada por Ken Burns e Lynn Novick.
É provavelmente o mais completo painel já feito sobre o infame episódio que marcou o século 20, dissecado pelos realizadores em múltiplos e complexos pontos de vista. Cada capítulo é um longa-metragem (1h40min em média). O resultado é tão notável dentro da sua ambição quanto o alcançado há mais de 40 anos pelo documentário ganhador do Oscar Corações e Mentes (1974), de Peter Davis, produzido no calor dos acontecimentos e ainda referencial na denúncia do alto custo em vidas, das causas nebulosas e das consequências desastrosas da Guerra do Vietnã.
Ao se lançar sobre o tema com profundidade, didatismo e aguçado olhar crítico, Burns e Novick ampliam a abordagem cronológica recorrente sobre a Guerra do Vietnã (1955–1975), que em geral pinça o envolvimento direto dos Estados Unidos, a partir de 1965, quando deixou de lado a “consultoria” e colocou tropas em solo reforçando a luta do governo do Vietnã do Sul contra as forças comunistas do Vietnã do Norte e seu braço militar sulista, o exército vietcong.
Veiculada em 2017 na rede de TV pública americana PBS, Guerra do Vietnã percorre uma longa linha temporal, que parte do período colonial francês na Indochina, passa pelas reconfigurações geopolíticas decorrentes da I Guerra, mostra como os EUA e seu futuro inimigo Ho Chi Minh, líder da insurgência vietnamita contra a ocupação francesa, somaram forças na II Guerra para combater os japoneses, e chega ao Vietnã dividido em dois pela tensão de forças da Guerra Fria: URSS e China apoiando a metade Norte, com sede em Hanói, e os EUA bancando o Sul, com capital em Saigon.
O spoiler nessa narrativa está nos livros de história: um grande vexame militar e diplomático dos EUA. Segundo balanços estimativos, o saldo da malfadada intervenção, em cadáveres, foi: 58 mil americanos, 254 mil sul-vietnamitas, 900 mil vietcongs e norte-vietnamitas e cerca de 1,4 milhão de civis – mais a infinidade de gravemente mutilados, severamente traumatizados e desaparecidos.
Sem nenhuma importância estratégica ou econômica, o Vietnã entrou em cena nessa guerra como peça da chamada "teoria do dominós". Os EUA temiam que se a insurgência contra os franceses capitaneada pelos comunistas fosse bem-sucedida poderia provocar uma onda vermelha no sudeste da Ásia, ampliando a área de influência soviética. Um paradoxo histórico, pois os EUA, colônia britânica que foi, mostravam simpatia por movimentos de independência, desde que, lógico, rezassem por sua cartilha política.
Com fartura de material de arquivo, acesso a documentos sigilosos garimpados nos diferentes fronts, depoimentos de militares veteranos americanos e vietnamitas, políticos, jornalistas, correspondentes de guerra e historiadores, o documentário destrincha os bastidores do movimento que levaram os EUA ao “grande atoleiro” e ao papel de vilão dentro e fora de casa – papel que cumpriu despejando toneladas de bombas sobre a população civil, incluindo as incendiárias e as com agentes químicos.
Burns e Novick iluminam protagonistas e testemunhas de cenas que se tornaram símbolos dessa guerra: monges budistas que se autoimolaram com fogo, o jovem vietcongue executado com um tiro na cabeça, a menina nua queimada pelo napalm. A série revela ainda as movimentações na Casa Branca, de Kennedy a Nixon, sustentada por arrogância, mentiras sistemáticas e interesses escusos, que acabaram jogando combustível sobre os EUA já inflamado com as lutas pelos direitos civis e a alvorada das demandas libertárias e pacifistas do movimento hippie. O recente filme The Post, de Steven Spielberg, aborda um tema esmiuçado na série: o papel da imprensa na revelação de documentos secretos que comprovavam que o governo dos EUA mentia deliberadamente sobre os rumos da guerra, cantando vitória diante do fracasso antevisto por muitos analistas.
Burns, para quem não o conhece, é mestre dos documentários históricos de longo fôlego. Assinou obras referenciais sobre o jazz e a Guerra Civil Americana. Costuma trabalhar em parceria com Novick, que trilhou carreira mais focada na produção. A dupla assina outros dois títulos na cartaz na Netflix: The War (os EUA na II Guerra) e Prohibition (a era da Lei Seca).