Devo a dica de hoje ao poeta gaúcho Ronald Augusto: Cão Branco (White Dog), filme de 1982 em cartaz no Amazon Prime Video que merece ser visto neste 2020 marcado pelo racismo e pelas mortes de homens negros por mãos brancas — de George Floyd, nos Estados Unidos, a João Alberto Silveira Freitas, em Porto Alegre.
Trata-se de uma mistura de terror e drama que, nos dias atuais, poderia estar no currículo de Jordan Peele, o autor do oscarizado Corra! (2017). Foi o último filme que Samuel Fuller (1912-1997), um americano filho de judeus, dirigiu em seu país. Realizador cultuado pela crítica e por cineastas do porte de Jean-Luc Godard, Martin Scorsese, Steven Spielberg e Quentin Tarantino, graças a títulos como Anjo do Mal (1953), Paixões que Alucinam (1963) e O Beijo Amargo (1964), Fuller se mudou para a França naquele mesmo ano de 1982. Ficou profundamente magoado pela forma como a Paramount escondeu Cão Branco — exibido por apenas uma semana, em cinco cinemas de Detroit, sem promoção em trailers ou pôsteres.
Para o estúdio, o thriller poderia ser encarado como uma obra racista. Para o diretor, o que a Paramount temia era a reação da Ku Klux Klan, a famigerada organização que prega a supremacia branca.
A trama, coescrita por Fuller e Curtis Hanson (1945-2016), é baseada em um livro homônimo de 1970 do escritor francês Romain Gary (1914-1980), no qual ele ficcionaliza memórias vividas no Estado do Alabama — caldeirão fervilhado por episódios de racismo e de luta pelos direitos civis da população afro-americana. Foi lá, por exemplo, que Rosa Parks recusou-se a ceder seu lugar para uma pessoa branca em um ônibus. É lá que se passa a história do filme Luta por Justiça, sobre um homem negro condenado à morte por um crime que não cometeu. E está lá um memorial sobre escravidão e linchamentos, inaugurado em 2018.
Kristy McNichol interpreta Julie Sawyer, uma jovem atriz que, depois de atropelar um pastor alemão branco, acaba adotando-o. Ela não demora a perceber um perigoso comportamento do animal: o cão branco ataca violentamente pessoas negras. Não importa sua classe social, nem adianta buscar proteção na igreja. Até crianças podem estar ameaçadas, como visto em uma cena na qual Samuel Fuller exibe sua maestria visual para a criação de uma atmosfera exasperante.
O cineasta americano é direto e didático. Ninguém nasce racista, mas é treinado — pela família, pelo ambiente, pela mídia — a praticar o racismo. Que não é uma doença, mas uma construção social, uma estrutura que se ramifica pelas esferas do poder, pela sociedade, pelo ensino, pelo mercado de trabalho, pela indústria do entretenimento e da publicidade. E o racista, não raro, é como um cão dócil quando não está perto de pessoas negras — sua fúria é latente. O ódio pode estar acomodado ao nosso lado.
Se uma pessoa é educada para ser racista, ela pode ser reeducada? É isso o que Fuller pergunta quando Julie leva o cão branco para um adestrador de animais, Carruthers (personagem de Burl Ives, Oscar de coadjuvante por Da Terra Nascem os Homens, de 1959). Mas quem assume a missão, quase como se fosse um Ahab caçando Moby Dick, é o colega de Carruthers, apropriadamente chamado de Keys (chaves, em inglês) e ele próprio um homem negro — interpretado por Paul Winfield, indicado ao Oscar de melhor ator por Lágrimas de Esperança (1972).
(Uma curiosidade sobre os dois atores principais: Kristy, hoje com 58 anos, e Winfield, morto em 2004, aos 63 anos, enfrentaram outro tipo de preconceito — o sexual — mantendo com discrição seus longos relacionamentos homossexuais)
Keys é um otimista. Acredita que a razão e o afeto podem mudar a mente do cachorro branco. Mas uma coisa é um racista, às vezes por circunstâncias profissionais, tornar-se próximo de um negro. Outra coisa é estar diante da negritude desconhecida — vale lembrar daquela típica frase defensiva, "Eu tenho amigos negros", sacada por alguém quando age com preconceito racial.
Naquela espécie de jardim zoológico onde Carruthers e Keys treinam de leões a macacos, Fuller vai lançar mão de suas origens cinematográficas: o faroeste, como seu longa-metragem de estreia na direção, Matei Jesse James (1949). Contribuem para a identificação com o gênero o cenário de chão de areia das jaulas; os movimentos de câmera que transformam um plano mais aberto em um close no rosto dos personagens; a fotografia de luz, sombras, branco e vermelho conduzida por Bruce Surtees (parceiro de Clint Eastwood em filmes como O Estranho Sem Nome, Josey Wales: O Fora da Lei e O Cavaleiro Solitário); e a trilha sonora do italiano Ennio Morricone, egresso dos spaghetti westerns de seu compatriota Sergio Leone. É com essas armas que Samuel Fuller vai encenar o duelo entre o adestrador negro e o cão branco (em ótimas interpretações de Winfield e dos cinco cachorros que deram vida ao personagem título). O duelo entre a esperança e o ódio, entre a persistência e o condicionamento, entre a civilização e a selvageria que consome vidas negras.
Mas esse combate não pode ser só de Keys, nem travado somente pelo povo preto. O racismo é uma invenção branca, um treinamento exercido e difundido por brancos. Que, pelo menos, a gente ensine as novas gerações sobre a herança nefasta e duradoura da escravidão, sobre a necessidade de iniciativas em prol da igualdade racial, sobre o efeito benéfico do respeito às diferenças, sobre a importância da representatividade na política e na cultura. Não precisamos de mais racistas rosnando nas ruas ou nas redes sociais.