O Dia da Consciência Negra terá, nesta sexta-feira (20), o gosto de uma conquista histórica. Nunca antes os porto-alegrenses escolheram tantos representantes negros para a Câmara: foram cinco vereadores eleitos no final de semana, incluindo a candidata mais votada.
Karen Santos (PSOL), Bruna Rodrigues (PCdoB), Daiana Santos (PCdoB), Laura Sito (PT) e Matheus Gomes (PSOL) tiveram, somados, mais de 40 mil votos. Na manhã desta sexta, eles apresentarão à imprensa a “inédita bancada negra de Porto Alegre”, marcando a data em que é lembrado o líder quilombola Zumbi dos Palmares.
Formado por políticos jovens de esquerda, o grupo pretende criar uma pauta conjunta que parte da luta antirracista e deve abranger temas como mobilidade urbana, moradia, educação, casas de acolhimento, investimento em cultura, políticas para as mulheres e outros.
— A gente tem um grande problema em acessar os recursos para garantir direitos sociais que têm sido negados lá na Lomba, no Rincão, na Restinga, nos bairros majoritariamente negros. Precisamos nos debruçar sobre esses problemas — destaca Karen.
É unanimidade entre eles o entendimento de que o passo dado no domingo é resultado de mais de uma década de organização e mobilização. O contexto, entretanto, não deixa de ser efervescente: 2020 foi repleto de protestos pela morte de George Floyd nos Estados Unidos, e os últimos dois anos foram repletos de atos antirracistas em memória da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em março de 2018.
— Nós já estávamos nos organizando há muito tempo pra esse momento, nossa articulação não é de hoje. A gente soube aproveitar uma conjuntura política, fortalecer nossos coletivos e lideranças para disputar as eleições — explica Matheus.
Apesar de não serem todos do mesmo partido, os cinco já se conhecem do trabalho que fazem em coletivos e movimentos sociais e nutrem admiração um pelo outro — “reconhecem um no outro o compromisso com a luta racial”, segundo Laura. E estão ansiosos para deixar o plenário da Câmara, hoje majoritariamente branco e masculino, mais parecido com a realidade das ruas.
— A gente está um passo mais perto de ter uma casa do povo — afirma Daiana.
Quem são
Daiana Santos (PCdoB)
Foi a primeira vez em que Daiana Santos se candidatou. Ver que o dinheiro público não retorna ao lugar a que ela pertence foi o que motivou a buscar a vereança.
Filha de empregada doméstica, criada com referência de mulheres fortes da periferia, Daiana, 36 anos, mora na Vila das Laranjeiras, no Morro Santana. Como sanitarista e educadora social, acabou conhecendo boa parte da periferia de Porto Alegre.
Ela entra na Câmara querendo propor um projeto de avaliação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das regiões mais precárias. Nesses lugares, quer viabilizar ações de geração de renda, de segurança e de habitação, entre outros.
Enquanto não assume, o momento é de celebrar a conquista. Ela conta que o “morro veio abaixo” quando saiu o resultado da eleição. Ainda se arrepia ao lembrar:
— As pessoas me olhavam e diziam: “uma de nós entrou”.
Laura Sito (PT)
Laura Sito, 28 anos, vai ganhar dois papéis importantes no próximo ano: vai assumir uma vaga como vereadora eleita e se tornar mãe — está grávida de cinco meses.
Ela se orgulha de ser uma jovem jornalista negra da periferia, formada pela UFRGS após ingressar pela política de cotas. Em uma carta aberta escrita ano passado ao então ministro da Educação, Ricardo Vélez-Rodriguez, fez questão de destacar que a mãe dela, empregada doméstica, teve a felicidade de ir duas vezes ao Salão de Atos da UFRGS para ver suas filhas pegarem seus diplomas.
Vice-presidente do PT em Porto Alegre, Laura já integra a Galeria de Vereadores Negros na Câmara, pois assumiu como suplente em 2017. Ela é autora do projeto de lei que institui o Programa Municipal de Enfrentamento e Prevenção à Violência Doméstica e Família, Sexual e de Gênero Contra a Mulher nas escolas municipais.
Laura acredita que a eleição expressiva de negros na Capital e em outras cidades também reflete uma resistência ao governo de Jair Bolsonaro.
— Os setores que a população compreendeu que era importante estarem representados são os setores mais atingidos por essa agenda econômica — opina.
Bruna Rodrigues (PCdoB)
Nascida e criada na Vila Cruzeiro, Bruna Rodrigues, 33 anos, descobriu a política enquanto buscava uma vaga na creche para sua filha. Logo ela se envolveria na luta por moradia — foi uma das pessoas removidas pelas obras de duplicação da Avenida Tronco —, por educação e por saúde, defendendo especialmente o Postão da Cruzeiro.
Sua filha Kamilly já tem 15 anos, mas a oferta de creches para mulheres segue sendo uma das bandeiras de Bruna.
— A vaga na creche decide qual mulher vai ter liberdade e qual não vai — afirma.
Estudante de Administração Pública e Social na UFRGS, ela é a primeira mulher na família a entrar na universidade. E não esconde a felicidade de assumir uma vaga na Câmara com a primeira bancada negra de Porto Alegre.
— E isso não é só uma onda: é um processo construído a duras penas há muito tempo. Tem uma galera que veio antes de mim.
Matheus Gomes (PSOL)
Matheus Gomes integrou a segunda turma de cotistas negros da UFRGS, em 2009. Ele conta que, na primeira semana de aulas, um segurança o puxou pelo braço quando chegava para almoçar.
— Não era comum ver um jovem negro indo comer no restaurante universitário — conta o hoje vereador eleito, de 29 anos.
Líder estudantil e defensor das cotas, Matheus há tempos não se conforma com a segregação racial da Capital. Já formado em História, o quinto vereador mais votado de Porto Alegre, pelo PSOL, ressalta que metade da população negra vive em poucos bairros periféricos de Porto Alegre.
— A segregação urbana, territorial, é gritante. E o poder público está há anos governando para o Centro, enquanto há uma Porto Alegre que finge que não existe.
Sua campanha foi articulada principalmente por jovens negros, envolvendo bairros como Rubem Berta, Condomínio Princesa Isabel, Bom Jesus, Morro da Cruz e Restinga, e a ideia dele é representar a periferia no Legislativo.
Karen Santos (PSOL)
Com 15.702 votos, a professora de Educação Física Karen Santos, 32 anos, foi eleita a vereadora mais votada da Capital no domingo (15). Ela não será uma novata na Câmara: eleita suplente há quatro anos, assumiu uma vaga após a eleição de Fernanda Melchionna para deputada federal.
Karen acredita que a eleição de cinco candidatos negros resulta de uma soma de fatores, e dentro deles está uma abertura maior da cidade — que ainda considera conservadora — ao novo.
A partir de janeiro, ela quer "fazer valer o voto de confiança que a comunidade negra e a comunidade antirracista" depositaram neles.
— A gente entende que tem que equilibrar a linha de partida: são 520 anos de história do Brasil e o nosso povo nunca teve as mesmas oportunidades de se desenvolver e de competir em uma sociedade como a nossa, que é tão desigual. A gente precisa enfrentar esses privilégios dessa elite econômica, racista, da cidade de Porto Alegre, que se expressa muito bem, como no pronunciamento do Valter Nagelstein — diz ela.
Nessa semana, em mensagem de áudio enviada a seguidores, o candidato derrotado a prefeito pelo PSD se referiu a vereadores eleitos como: “muitos deles, jovens e negros sem nenhuma tradição política, sem nenhuma experiência, sem nenhum trabalho e com pouquíssima qualificação formal”.
26 negros na história da Câmara
De acordo com pesquisa feita pela equipe do Memorial da Câmara de Vereadores, da primeira legislatura em 1947 até então, 26 negros ocuparam uma vaga no Legislativo, boa parte como suplentes. Vinte eram homens e seis, mulheres. O primeiro vereador negro foi Eloy Martins, eleito pelo PCB em 1947; a primeira vereadora negra foi Teresa Franco, a Nega Diaba, eleita pelo PTB em 1996.
Até então, a legislatura de 2013 a 2016 foi a que a Câmara contou com o maior número de negros e negras assumindo a vereança. Tarciso Flecha Negra e Delegado Cleiton foram eleitos, enquanto quatro suplentes da bancada do PT assumiram durante uma semana por iniciativa do partido por conta da Semana da Consciência Negra de 2015.
A eleição de 2020 foi a que teve um maior número de vereadores negros eleitos, podendo ainda assumir outros candidatos que estão na suplência.