Correção: a atual legislatura tem dois vereadores negros, e não um como publicado nesta reportagem entre as 20h42min e as 22h26min. O texto já foi corrigido.
Quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) finalmente divulgou a lista dos parlamentares mais votados de Porto Alegre, na noite de domingo (16), a fotografia da nova Câmara Municipal chamava a atenção pelo ineditismo. Quase um terço dos legisladores será formado por mulheres, o maior número desde que a primeira vereadora foi eleita, em 1947. Cinco das 36 cadeiras serão ocupadas por parlamentares autodeclarados negros, mais que dobrando a representatividade étnica na Casa.
— É um fator positivo, porque enriquece o debate. Para mim, o que mais chamou atenção foi o salto na representação de negros. Nunca tivemos isso nessa dimensão — diz o diretor legislativo da Câmara Municipal, Luiz Afonso Peres.
Em quatro décadas no parlamento, Peres não recorda de outro momento histórico em que tenha havido mais do que dois vereadores negros atuando na mesma legislatura. Na atual, haviam dois: Cláudio Conceição, do PSL, e Karen Santos, do PSOL, que era suplente de Fernanda Melchionna e assumiu a vaga quando a colega foi eleita deputada federal, em 2018. Agora, foi a vereadora mais votada da Capital. A única vereadora negra eleita até então na cidade havia sido Teresa Franco, a Nega Diaba, em 1996.
O salto de representatividade não veio apenas na quantidade de assentos alcançados por esses candidatos, mas na expressividade de suas votações. Dois dos cinco parlamentares com mais votos são autodeclarados negros — além de Karen, que somou mais de 15,7 mil votos, Matheus Gomes, também do PSOL, aparece na lista. Quatro são mulheres, e todos são de partidos de esquerda.
Para o professor de ciência política da Universidade de Brasília Carlos Machado, a ampliação da representatividade negra na capital gaúcha segue uma tendência observada em outras capitais no pleito deste ano. Ele credita as campanhas bem-sucedidas a uma “demanda represada”, somada a uma articulação de diferentes vertentes do movimento negro, que conseguiram mais espaço dentro dos partidos. Não descarta, ainda, a influência das políticas que determinaram a distribuição igualitária de recursos como impulsionador de algumas candidaturas.
— Até os anos 2000, o movimento negro atuava nos partidos, mas tinha dificuldade de se candidatar. Isso é uma inovação de 2020. O engajamento em relação à baixa representação serviu de estímulo para as candidaturas eclodirem nesse momento — observa.
A ascensão das candidaturas negras dá-se em meio a um contexto no qual a questão racial se impôs como pauta a partir da morte de George Floyd, nos Estados Unidos, e reacendeu o debate sobre a violência policial e o racismo estrutural no Brasil. Mas também vem na esteira de um dos crimes que mais causou comoção nos últimos anos. Ainda sem solução, o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, negra, lésbica e ativista pelos direitos humanos, serviu de combustível para a discussão sobre raça e gênero.
Presença feminina
Coordenadora do Núcleo Indisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero da UFRGS, Jussara Reis Prá acredita que o “efeito Marielle”pode ser observado não só na eleição de mulheres negras, mas também no crescimento da representatividade feminina em geral.
— Isso se refletiu no Congresso Nacional, com mais mulheres eleitas, e era natural pensar que viria com mais força na esfera municipal. Em todo o país, há um movimento de contestação, de trazer à tona pautas de determinados grupos e de se reverter em cargos eletivos. Não sabemos ainda até que ponto veio para ficar — pondera a professora da UFRGS.
Na Capital, o número de mulheres na próxima legislatura será o maior desde que Julieta Battistioli foi eleita primeira vereadora suplente da história de Porto Alegre, em 1947 —a primeira titular foi Dercy Terezinha Furtado, em 1973. Até hoje, o período com mais vereadoras na Casa foi entre 2005 e 2008, quando eram sete.
Diferentemente das candidaturas negras, todas vinculadas à esquerda, as mulheres da Câmara se dividem entre diferentes espectros ideológicos. Ou seja, uma Câmara mais feminina não necessariamente significará uma Câmara feminista. Ainda assim, segundo a pesquisadora, a tendência é de que haja uma articulação maior em torno de pautas menos polêmicas, como àquelas ligadas à violência contra a mulher e a direitos fundamentais, que costumam suplantar divergências ideológicas.
— Os exemplos nos mostram, no Congresso, que há questões em que é possível adotar uma pauta suprapartidária. O crescimento dessas candidaturas é uma responsabilidade muito grande, neste momento histórico, para que possam levar em frente bandeiras de gerações de mulheres que as antecederam. Se conseguirem, podemos chegar a um patamar de representatividade maior — projeta Jussara.