Em cartaz na Netflix, Bem-vindo a Marly-Gomont (2016) é um comovente filme que se passa na década de 1970 e no interior da França. Mas, lamentavelmente, os episódios de racismo retratados pelo diretor Julien Rambaldi (que é branco, diga-se de passagem) ainda acontecem – e em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil.
Na trama, que é baseada em uma história real, Seyolo Zantoko (interpretado por Marc Zinga) acaba de se formar em Medicina, em Lille, e está desesperado para arranjar um emprego. Caso contrário, terá de voltar para o Zaire – o nome que o corrupto e sanguinário ditador Mobutu Sese Seko (1930-1997) deu ao Congo em 1971 e que vigorou até sua derrubada do poder, em 1997 (hoje, o segundo maior país da África e o quarto mais populoso do continente se chama República Democrática do Congo, é um dos mais pobres do mundo e enfrenta uma guerra civil que já dura quase 20 anos).
A fome encontra a vontade de comer: o prefeito de uma cidadezinha também está desesperado em busca de um médico que aceite trabalhar em um lugar com cerca de 500 habitantes (aliás, outro drama ainda atual no Brasil).
À primeira vista, no entanto, o prefeito demonstra ceticismo. Porque ele conhece seu eleitorado – gente que nunca viu um negro na vida. E de fato, quando Seyolo chega a Marly-Gomont, na companhia da esposa, Anne (Aissa Maiga), e dos filhos – a menina Sivi e o pequeno Kamini –, é como se fossem alienígenas desembarcando na Terra.
Pior do que isso. A família Zantoko recebe olhares de desconfiança e desprezo. As crianças são ridicularizadas na escola (onde, mais tarde, haverá uma apresentação teatral que me fez chorar litros). Anne é tratada como uma completa ignorante na feira. O consultório de Seyolo, por sua vez, vive às moscas. Ninguém quer ser atendido por mãos negras (quando dois irmãos broncos o procuram, não lhe pagam e ainda saem rindo).
É essa a situação lamentável que teima em acontecer. Em 2016, em um posto de saúde no Rio de Janeiro, um homem branco com hipertensão recusou a ajuda de um maqueiro porque, nas suas palavras, "não queria que um preto encostasse nele". Depois, diante de um médico negro, afirmou:
— Não quero ser atendido por um crioulo.
Em 2018, no País de Gales, uma jovem esfaqueada gritou para o médico negro que lhe cuidava na emergência do hospital:
— Você não pode limpar isso. Você é sujo!
Às vezes, os papéis se invertem. Também há apenas dois anos, nos Estados Unidos, quatro paramédicos foram acusados de racismo depois de negarem atendimento a uma mulher negra que havia sofrido um AVC – para eles, a família não teria condição de pagar os US$ 600 do serviço. A vítima, que tinha dado à luz três dias antes, acabou morrendo cinco dias depois de entrar em coma.
Inspirado em memórias de Kamini – hoje um rapper e humorista (é dele a música que embala os créditos finais do filme) –, Bem-vindo a Marly-Gomont aborda não apenas o racismo direto, mas também o estrutural. Os Zantoko precisam a todo tempo provar sua capacidade, precisam ser extraordinários no que fazem – Seyolo na medicina, Sivi no futebol – para serem aceitos pela sociedade branca. O pai chega a verbalizar:
— Temos de nos esforçar se quisermos que gostem de nós.
Mas o tom com o qual Seyolo diz isso não é de revolta. É de uma resignação temperada com bom humor. Sim, apesar dos pesares, Bem-vindo a Marly-Gomont é classificado como comédia – dramática, mas comédia. Quando o médico conta à família que foi recebido a tiros por um fazendeiro racista, o risco é transformado em riso. O humor é a arma. E é sempre saudável quando o alvo são os preconceituosos e os hipócritas, aqueles que se arrogam de uma fictícia supremacia racial, gente que machuca com palavras e provoca vergonha alheia.