Os 7 de Chicago, que estreou na última sexta-feira (16) na Netflix, é um filme que pode requerer do público brasileiro uma pesquisa prévia ou o uso da segunda tela para conhecer melhor a história contada e os personagens apresentados. Não é que, na obra, faltem informações sobre esse episódio tão marcante para a vida política e a Justiça dos Estados Unidos. É que o julgamento encenado causa tanta revolta, e os homens presentes no tribunal — réus, advogados, promotores, juiz e uma testemunha em especial — são tão fascinantes, pela combinação de suas virtudes e contradições, que ficamos instigados a cotejar o drama com a realidade.
Esse impulso que se apodera do espectador de The Trial of the Chicago 7 diz muito sobre o trabalho do diretor e roteirista Aaron Sorkin e do elenco encabeçado por Eddie Redmayne e Sacha Baron Cohen.
Sorkin, 59 anos, é o criador dos seriados The West Wing (1999-2006), sobre os bastidores de uma Casa Branca fictícia, e The Newsroom (2012-2014), que mistura ficção e fatos reais ao retratar o dia a dia de um canal de notícias. No cinema, ele venceu o Oscar de script adaptado por A Rede Social (2010), que reconstitui o surgimento do Facebook, e concorreu, na mesma categoria, por Moneyball - O Homem que Mudou o Jogo (2011), sobre um dirigente do beisebol que empreendeu um sofisticado sistema de análise estatística para montar uma equipe competitiva, e por A Grande Jogada (2017), sobre uma ex-esquiadora que se envolve com o mundo do pôquer clandestino.
Em seu segundo longa-metragem como diretor, Sorkin retoma elementos e métodos de suas obras anteriores, incluindo Uma Questão de Honra (1992), escrito por ele para Rob Reiner e indicado ao Oscar de melhor filme. Temos a trama baseada em um acontecimento real, romanceado para efeitos dramáticos. Temos um julgamento intercalado por flashbacks. Temos os duelos verbais sobre o papel do Estado e o papel do cidadão, sobre patriotismo e liberdade de expressão, sobre a lei e a Justiça, sobre a ética pessoal e os interesses coletivos.
De modo semelhante ao empregado por Spike Lee em seu Destacamento Blood, Sorkin abre Os 7 de Chicago com uma colagem que sintetiza o efervescente caldo político, social e cultural nos Estados Unidos de 1968. Aliás, também como Destacamento Blood, Os 7 de Chicago visita o passado para refletir sobre o presente. Não por acaso, os dois títulos foram lançados às vésperas da eleição presidencial nos Estados Unidos. Lee, por meio do personagem interpretado por Delroy Lindo, criticou o ressentimento e o isolacionismo da era Donald Trump. Sorkin faz um alerta sobre o quão vulneráveis as democracias são diante do abuso de poder pelos governantes — algo do qual o mandatário republicano já foi formalmente acusado. Por sua vez, as maquinações empreendidas pelo procurador-geral John N. Mitchell e seus subordinados no filme encontram ressonância na estratégia trumpiana de, temendo uma derrota para Joe Biden, dos Democratas, deslegitimar o pleito, ao mesmo tempo em que opera para garantir maioria conservadora na Suprema Corte, apressando o Senado a aprovar a nomeação de Amy Barrett — a aposta do presidente é de que caberá à mais alta instância da Justiça americana decidir o resultado da votação.
Os dois filmes são unidos ainda por uma coincidência indesejada. Destacamento Blood foi lançado na esteira do caso George Floyd — o homem negro morto covardemente por um policial branco em Minneapolis, nos EUA. Isso tornou ainda mais pungentes a menção ao movimento Black Lives Matter e a reprodução de um discurso de Martin Luther King ao final da obra. Os protestos que se espalharam pelos Estados Unidos e o debate sobre o racismo que se instaurou não foram bem recebidos por Trump. Ele ameaçou usar da força para acabar com as manifestações e foi contra iniciativas como a de mudar o nome de bases militares que homenageavam militares confederados — defensores da escravidão durante a Guerra Civil americana (1861-1865). Sua reação, de certa forma, é semelhante à de Richard Nixon (1913-1994) em Os 7 de Chicago: o então presidente manda calar a oposição e chancela a violência da polícia. O bordão histórico, "The whole world is watching!" ("O mundo inteiro está vendo!"), vale para passado e presente.
Naquele ano de 1968, o país foi sacudido pelos assassinatos de Martin Luther King (em abril), o líder do movimento pelos direitos civis dos negros, e de Robert Kennedy (em junho), um dos irmãos do presidente John Kennedy (assassinado em 1963), ex-procurador geral e postulante a candidato do Partido Democrata à Casa Branca. Enquanto isso, cresciam os protestos contra a participação americana na Guerra do Vietnã (1964-1973) e as ações dos Panteras Negras, grupo fundado em 1966 para dar voz e força à minoria racial.
Estava armado o cenário para os tumultos que marcaram a Convenção Nacional dos Democratas, realizada no final de agosto, em Chicago. Aaron Sorkin, inteligentemente, pula da apresentação dos principais personagens ao julgamento iniciado em 1969, deixando para esmiuçar as circunstâncias e os bastidores dos protestos nas cenas de tribunal, nos debates internos dos réus com os advogados de defesa e nos flashbacks.
As escolhas narrativas de Sorkin, um entusiasta do entretenimento, cobram um preço: algumas passagens soam artificiais ou inverossímeis, em outras, a mão do roteirista fica em evidência demasiada, enchendo os diálogos de tiradas espirituosas ou mesmo chistes que depõem contra a gravidade do caso. Aliás, como bem apontou a crítica Clarisse Loughrey no britânico The Independent, o cineasta toma uma decisão no mínimo controversa: limita a um único dia a violência que foi impingida a um dos réus, acorrentado e amordaçado em plena Corte. Loughrey escreve que é como se Sorkin admitisse que não conseguia lidar com aquele peso.
Mas os atores pagam a conta, com gorjetas generosas — vide os poucos minutos das duas cenas com Michael Keaton, que faz Ramsey Clark, o antecessor de Mitchell na procuradoria-geral. Praticamente cada integrante do elenco tem pelo menos uma chance de brilhar.
Começa por Joseph Gordon-Levitt no papel do promotor Richard Schultz, que precisa engolir algumas de suas convicções ao ser incumbido de trabalhar na acusação contra os sete de Chicago — que, na verdade, começaram como os oito de Chicago. Foi essa a alcunha dada a oito homens presos durante os protestos contra o candidato favorito na Convenção Nacional dos Democratas, Hubert Humphrey, então vice de Lyndon Johnson e um apologista da Guerra do Vietnã — à época, havia se intensificado o recrutamento compulsório de tropas americanas para lutar (e morrer) no Sudeste Asiático. Esses sujeitos foram acusados, com base em uma lei racista de um Estado do Sul, de conspiração. Mas, embora todos fossem assumidamente esquerdistas, eles não eram unidos, não compartilhavam dos mesmos pensamentos, não sustentavam as mesmas estratégias — não eram um grupo, não eram uma quadrilha.
De um lado, estavam Tom Hayden e Rennie Davis, do Students for a Democratic Society (SDS), universitários idealistas que pregavam jogar dentro das regras. Do outro, Abbie Hoffman e Jerry Rubin, do Youth International Party (o Partido Internacional da Juventude), hippies que promoviam uma revolução cultural, sem pudores para usar o humor, as drogas, pedras e coquetéis molotov. Os conflitos diretos e indiretos entre esses personagens rendem grandes diálogos e momentos solo de Eddie Redmayne (Oscar de melhor ator por A Teoria de Tudo) e Sacha Baron Cohen (o impagável Borat), nas peles de Tom Hayden e Abbie Hoffman, enquanto Jeremy Strong (Emmy de melhor ator em série dramática por Succession) empresta graça mas também honra a Jerry Rubin.
Os outros quatro réus são dois ativistas locais, Lee Weiner e John Froines, um suburbano pacifista, David Dellinger, interpretado com insuspeitada sensibilidade por John Carroll Lynch (do seriado American Horror Story), e Bobby Seale, um dos fundadores dos Panteras Negras, a quem é sucessivamente negado o direito de defesa própria. Este personagem é vivido com uma mistura de ímpeto, ironia e indignação por Yahya Abdul-Mateen II, um ator e arquiteto que, aos 34 anos, vem construindo uma carreira diversificada. Sua atuação aqui mal lembra o gângster Cadillac Caldwell do seriado musical The Get Down (2016-2017), o vilão (nuançado, vale dizer) Arraia Negra de Aquaman (2018) e o Cal Abar da minissérie Watchmen (2019), que lhe trouxe o Emmy de melhor ator coadjuvante.
O principal advogado em cena é William Kunstler, vivido pelo ótimo Mark Rylance, ganhador do Oscar de coadjuvante por Ponte dos Espiões (2015) e o Thomas Cromwell da minissérie Wolf Hall (também de 2015). Sua fleuma vai sendo testada e estressada no tribunal pela má-fé, pelo autoritarismo e pelos preconceitos do juiz Julius Hoffman, em uma atuação fabulosa de Frank Langella (indicado ao Oscar de ator por Frost/Nixon, de 2008).
Langella, Rylance, Abdul-Mateen II, Cohen, Redmayne... É de se esperar que pelo menos algum desses nomes apareça entre os indicados ao Oscar 2021, seja como melhor ator ou como ator coadjuvante. Um problema para os produtores será decidir em quem apostar suas fichas, já que certamente seria canibalizar a votação incluir muitos integrantes do mesmo filme na mesma categoria. Mas esses atores fizeram por merecer.