Os irmãos Anthony e Joe Russo passaram cerca de sete anos envolvidos com os super-heróis da Marvel. Fizeram Capitão América: Soldado Invernal (2014), Guerra Civil (2016) e as duas últimas aventuras dos Vingadores, Guerra Infinita (2018) e Ultimato (2019). Em Cherry: Inocência Perdida (2021), que estreou recentemente na Apple TV, os diretores voltam a trabalhar com Tom Holland, o ator que encarnou o Homem-Aranha em três desses filmes (além dos dois títulos da franquia solo). Mas o colocam em uma enrascada talvez mais sofrida do que enfrentar Thanos, o genocida esclarecido.
O filme é uma adaptação do romance homônimo que Nico Walker escreveu enquanto cumpria pena em uma prisão federal, lançado no Brasil pela editora DarkSide. Cherry é o apelido que recebe, a certa altura, o protagonista encarnado por Holland - aqui, como manda o figurino dos atores jovens em busca de afirmação, procurando descolar de si a imagem de bom moço produzida ao longo de cinco filmes da Marvel. Talento não falta a este inglês de apenas 24 anos, como já demonstrara logo na estreia, O Impossível (2011), e no recente O Diabo de Cada Dia (2020). Mas em Cherry seus recursos artísticos ficam diluídos em meio à jornada autodestrutiva do personagem e, principalmente, aos maneirismos dos irmãos Russo.
Com tintas da vida do próprio Nico Walker, Cherry é uma história de amor que vira uma história de guerra e depois se transforma em uma história de vício e, por fim, uma história de crime. O personagem principal é um calouro universitário que, depois de levar o fora da namorada, Emily (Ciara Bravo), alista-se no exército dos Estados Unidos para atuar como paramédico na guerra do Iraque, iniciada em 2003. Ao retornar, com estresse pós-traumático, ele torna-se dependente químico e passa a roubar bancos para financiar os ansiolíticos, os opioides e a heroína.
Dito assim, parece que contei todo o filme. Na verdade, o prólogo revela boa parte dos episódios e dos conflitos que serão desdobrados em duas horas e 20 minutos, divididas em quase uma dezena de capítulos. Em cada um, os Russos lançam mão de uma espécie de catálogo estilístico.
Tem narração em off, tem quebra da quarta parede, tem filtros que tiram ou dão cor às cenas, tem letreiros, onomatopeias e inscrições humorísticas (a placa de "Dr. Whomever, Dr. Quem Quer que Seja, na consulta ao médico, o autoexplicativo painel Bank Fucks America em uma instituição financeira...). Tem câmera lenta, tem imagem distorcida, tem grua (ou drone, ou dolly), tem panorâmica que resume passagem de tempo. Tem também uma sensação de déjà vu, tanto pelas situações vividas por Cherry quanto pela forma com que são mostradas. Nos segmentos militares, por exemplo, logo vêm à mente filmes como Nascido para Matar (1987), de Stanley Kubrick, Soldado Anônimo (2005), de Sam Mendes, e Redacted (2007), de Brian De Palma.
Mesmo sob a direção vaidosa e exibicionista dos manos Anthony e Joe, Tom Holland consegue encontrar momentos mais íntimos, silenciosos, nos quais brinda o espectador com a sensibilidade do ator e as fragilidades do personagem. Mas sua entrega não é suficiente para descolar, agora do filme dos Russo, a imagem de um filme mais preocupado com a embalagem do que com o conteúdo. Não por acaso, Cherry vem recebendo críticas negativas na imprensa mundial. No Rotten Tomatoes, onde a avaliação é de 37%, há sínteses como a de Jake Wilson, do The Age, da Austrália: "Em vez de gerar empolgação, a insistência no impulso a todo custo faz com que o filme se assemelhe a uma série interminável de comerciais de TV encadeados". E há esta pérola de Kristy Puchko, do Crooked Marquee: "Bons filmes têm um tempo de duração. Filmes ruins nunca terminam. Cherry é eterno".