No apagar das luzes de 2020, o Corujão, da RBS TV, exibe um filme feito 20 anos atrás que se passa justamente em 2020. É Missão: Marte, em cartaz na virada desta quarta-feira (23) para quinta, à 1h25min.
Seu diretor é Brian De Palma, 80 anos comemorados em 11 de setembro. Trata-se de um dos grandes cineastas americanos, talvez mais amado na França do que em seu país. Nunca concorreu ao Oscar, embora alguns de seus títulos tenham sido indicados e até premiados. O Fantasma do Paraíso (1974) e Trágica Obsessão (1976) disputaram na categoria melhor música. Carrie, a Estranha (1976) teve Sissy Spacek e Piper Laurie na briga pelas estatuetas de melhor atriz e atriz coadjuvante. Os Intocáveis (1987) valeu a Sean Connery o troféu de ator coadjuvante e foi indicado também a direção de arte, figurinos e música.
De Palma tampouco é um rei das bilheterias. Seu único filme a chegar perto do meio bilhão de dólares mundialmente foi Missão: Impossível (1996), mas claro que a presença de Tom Cruise como protagonista e o valor afetivo da revitalização do seriado dos anos 1960 foram os chamarizes para arrecadar US$ 458 milhões. Missão: Marte, curiosamente, é o segundo colocado nesse ranking, com US$ 111 milhões.
Se o Oscar o ignorou, o Framboesa de Ouro, infelizmente, não. O prêmio de galhofa indicou De Palma cinco vezes como pior diretor da temporada (nunca "venceu", pelo menos isso): Vestida para Matar (1980), Scarface (1983), Dublê de Corpo (1984), A Fogueira das Vaidades (1990) e Missão: Marte.
Em compensação, os críticos da prestigiada revista parisiense Cahiers du Cinéma elegeram O Pagamento Final (Carlito's Way, 1993) como o filme da década de 1990 (empatado com As Pontes de Madison, de Clint Eastwood) e Redacted como a melhor obra de 2007. Outros longas-metragens apareceram no top 10 anual da publicação: Missão: Impossível (oitavo lugar em 1996), Olhos de Serpente (nono em 1998) e o próprio (quarto em 2000). Seu cartaz na Europa inclui um Urso de Prata por Greetings (1968), no Festival de Berlim, e um Leão de Prata por Redacted, no Festival de Veneza.
Cultuado pelos cinéfilos, De Palma é um diretor autoral mesmo sendo referencial. Suas citações e homenagens a clássicos de Sergei Eisenstein, Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni e Francis Ford Coppola tornaram-se uma assinatura própria. Do primeiro, pegou a famosa sequência da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin (1926) para montar o tiroteio final de Os Intocáveis. Do segundo, bebe direto e seguidamente. Dublê de Corpo retoma a trama de Janela Indiscreta (1954), Trágica Obsessão tem como base Um Corpo que Cai (1958) e Vestida para Matar é uma celebração de Psicose (1960). Por fim, o excelente Um Tiro na Noite (1981) mistura elementos de Blow-Up (1966), de Antonioni — o título original, aliás, é Blow-Out —, e de A Conversação (1974), de Coppola.
Há outras marcas características. Com um pendor para o thriller psicológico (nos quais trabalha com temas hitchcockianos: sexo, culpa, voyeurismo, obsessão) e para a violência gráfica, De Palma também tem uma sádica afeição por personagens que estão sendo manipulados. É um modo de espelhar o próprio jogo de manipulação do ofício cinematográfico.
De fato, em muitas obras o cineasta aborda o duplo (e o ator não deixa de ser um duplo) e a representação da verdade. Desde o protagonista acossado por múltiplas personalidades de Síndrome de Caim (1992) até Redacted (2007), no qual simula um documentário construído por imagens de câmeras amadoras, webcams, celulares e circuitos de vigilância, reencenando a história real de soldados americanos no Iraque que estupraram e assassinaram uma garota de 15 anos — o título faz referência à censura pela qual passam documentos oficiais dos Estados Unidos antes de serem divulgados.
Esses temas levam à identidade visual (uns diriam maneirismo) de seus filmes, como a angulação da câmera para aludir a distúrbios, a divisão de tela para mostrar dois eventos que acontecem simultaneamente e a desconstrução e reconstrução de uma mesma cena sob diferentes pontos de vista — exemplos clássicos podem ser encontrados em Um Tiro na Noite, Olhos de Serpente, Femme Fatale (2002) e Dália Negra (2006).
Se Brian De Palma é um cineasta de outro mundo, fora de série, Missão: Marte é um título de outro mundo na sua filmografia. Única ficção científica, imaginava, no ano 2000, que em 2020 já estaríamos no início dos voos tripulados a Marte. Os atores Gary Sinise, Tim Robbins e Don Cheadle interpretam astronautas a bordo das primeiras missões. Depois que a primeira equipe desaparece após o pouso, um segundo time é enviado para resgatar os demais, descobrindo — como num típico filme de De Palma — a misteriosa verdade.