A primeira aventura solo do terceiro Homem-Aranha do cinema é a atração do Festival Ano Novo desta segunda-feira (4), na RBS TV. Apresentado ao público do universo Marvel em Capitão América: Guerra Civil (2016), o ator inglês Tom Holland tem um filme inteiro para desfilar seu carisma em De Volta ao Lar (2017), em cartaz a partir das 22h45min.
E o longa-metragem mostra, logo em seu início, a visão do Aracnídeo sobre os eventos que levaram o adolescente Peter Parker a se envolver na luta entre os Vingadores na Alemanha, em Guerra Civil. O vídeo, gravado em celular, estabelece o tom de comédia que pauta a obra e que a distancia dos cinco filmes anteriores — os três estrelados por Tobey Maguire entre 2002 e 2007 e os dois com Andrew Garfield, em 2012 e 2014. Esses títulos também tinham o humor intrínseco ao super-herói dos quadrinhos criado em 1962 por Stan Lee e Steve Ditko, mas não da forma como De Volta ao Lar se entrega ao gênero. Seu espírito é o da cena em que o Homem-Aranha, correndo à noite em meio às casas de um subúrbio de classe média, vê em uma TV o personagem Ferris Bueller em uma semelhante carreira no clássico juvenil Curtindo a Vida Adoidado (1986).
O Peter Parker de Tom Holland é, justamente, um adolescente que quer curtir a vida adoidado — no caso, a vida de super-herói. Enquanto espera ser chamado para uma nova missão com os Vingadores, enquanto entope de mensagens de voz e de texto o celular de Happy Hogan (Jon Favreau), o braço-direito de Tony Stark/Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), ele se divide entre o tédio e as mancadas — como confundir o dono de um carro com um ladrão. Na escola, onde tem como melhor amigo o nerd Ned (Jacob Batalon, engraçadíssimo) e é alvo constante do bullying praticado por Flash Thompson (Tony Revolori), também está ansioso: quer convidar Liz (Laura Harrier) ao baile, sem perceber que ali ao lado há uma garota que tem mais a ver com ele, MJ (Zendaya).
Parece o típico enredo de uma comédia romântica adolescente com um toque de drama sobre amadurecimento, né? Mas o diretor Jon Watts consegue tecer uma teia em que há espaço para a ação, é claro, para o drama sobre amadurecimento (os anseios e as angústias da faixa etária, o desejo de aprovação junto a seus pares) e até para o comentário político.
Parafraseando o lema dos gibis do Homem-Aranha — "Grandes poderes trazem grandes responsabilidades" —, o vilão da história é consequência direta do primeiro filme dos Vingadores. A empresa de Adrian Toomes (papel de Michael Keaton, o Batman dos filmes de Tim Burton e indicado ao Oscar por Birdman) era encarregada de limpar a cidade após o combate de Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Hulk, Viúva Negra e Gavião Arqueiro contra os invasores chitauri, mas a operação é assumida por parceria entre o governo dos Estados Unidos e o bilionário Tony Stark. Revanchista, Toomes se torna o Abutre, usando peças da tecnologia alienígena para desenvolver e comercializar armas avançadas.
Para muitos críticos americanos, o Abutre foi o primeiro supervilão da era Donald Trump, que vencera a disputa para a presidência americana um ano antes, em 2016. O personagem, um trabalhador/empresário branco, tem o ressentimento contra o Estado que caracterizou boa parte do eleitorado de Trump. O próprio Michael Keaton disse que Adrian Toomes se vê como uma vítima, apesar de ter prosperado e de todos os seus privilégios. Ainda assim, é um pai de família amoroso, preocupado com o futuro, é o homem comum que, costumeiramente ignorado pelos políticos mais tradicionais, não raro acaba seduzido pelo canto de sereia de candidatos populistas.
A interpretação de Keaton, que busca escapar do caricatural, só contribui para tornar esse cara malvado alguém com quem as plateias podem se identificar, e essa ambiguidade é uma das chaves do sucesso de De Volta ao Lar junto à imprensa: tem 92% de avaliação no Rotten Tomatoes. Junto ao público, o filme arrecadou US$ 880 milhões, sendo a terceira maior maior bilheteria arcanídea. Perde para Homem-Aranha 3 (2007), de Sam Raimi, com US$ 895 milhões, e para Homem-Aranha: Longe de Casa (2019), com US$ 1,1 bilhão, obra em que o diretor John Watts voltou à carga política ao escalar como vilão Mysterio. Eis um personagem que manipula a realidade, empregando um discurso e uma prática que expõem nossa facilidade de acreditar em fake news, de se deixar iludir em nome de nossas crenças, de nossos preconceitos e de nossas ideologias.