Tenet, que chegou recentemente às plataformas de streaming (Apple TV, Now, Google Play, YouTube, Vivo Play, Sky Play e Oi Play), foi vendido por Hollywood como o símbolo da retomada das salas de exibição em meio à pandemia de coronavírus. Mas o que o filme simboliza é o gigantesco tombo, comercial e artístico, e a arrogância do diretor Christopher Nolan, que chegou a bater pé com a Warner: ele queria que a produtora mantivesse a data do lançamento mundial, 17 de julho — dia em que os Estados Unidos acabariam registrando um recorde de 65,1 mil casos novos de covid-19.
Verdade seja dita, o britânico Nolan, 50 anos, cinco vezes indicado ao Oscar, é um dos raros cineastas cujo nome é suficiente para atrair público. Claro que contar com um personagem como Batman ou um ator como Leonardo DiCaprio ajuda, mas foram sua concepção de cinema e suas charadas narrativas (desde Amnésia, de 2000, e O Grande Truque, de 2006) que arregimentaram uma legião de fãs, ávidos pela saborosa mistura de diversão e papo-cabeça proporcionada por Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), A Origem (2010) e Interestelar (2014). Com os US$ 525 milhões de Dunkirk (2017) nas bilheterias, chegou aos US$ 4,7 bilhões arrecadados com 11 longas-metragens — é o sétimo no ranking encabeçado por Steven Spielberg (US$ 10,5 bilhões).
Mas esse era o mundo antes do coronavírus. Depois da pandemia, com a imposição do distanciamento social, o fechamento dos cinemas e disseminação do medo de contágio, os grandes estúdios passaram a adiar sucessivamente a estreia de suas principais apostas. Viúva Negra, por exemplo, estava previsto para abril deste ano e agora só sairá em maio de 2021. Mulher-Maravilha 1984 permaneceu em 2020 por uma questão de dias — no Brasil, entrou em cartaz no dia 17 de dezembro. A Disney até desistiu dos cinemas nos casos da versão com atores de Mulan e do novo desenho animado da Pixar, Soul, ambos com lançamento direto no streaming.
Nolan achou que poderia salvar o mundo, como o protagonista sem nome de Tenet (interpretado por John David Washington, de Infiltrado na Klan e filho de Denzel Washington). Fez a Warner nadar contra a corrente, a exemplo do que acontece com os personagens da trama, que experimentam uma realidade paralela reversa — se você pegar fogo, pode ter hipotermia (Confuso? Calma que fica mais confuso ainda). O filme estreou no final de agosto e arrecadou US$ 362 milhões. No contexto da covid-19, é um número alto. Mas a gente tem de descontar os US$ 200 milhões do custo de produção, os estimados US$ 100 milhões usados na divulgação (sim, um absurdo) e aplicar a regra básica de que, para um filme dar lucro, precisa fazer o dobro de suas despesas. Ou seja, Tenet ficou devendo.
Do ponto de vista artístico, a dívida é maior. Tenet é, sem dúvida, um filme de Christopher Nolan: ambicioso, grandiloquente, mirabolante e cheio das suas obsessões temáticas, como o tempo, a memória, o controle e o próprio ofício cinematográfico. Mas ao contrário do que ocorre em seu filme irmão, A Origem, vê-se poucas camadas de reflexão por baixo das cenas de ação. Há impacto, sim,mas não substância.
Se para Nolan o cinema é um espetáculo para grandes audiências, então que o filme comece com os músicos de uma orquestra se preparando para um concerto diante de uma plateia lotada na Ópera Nacional da Ucrânia, em Kiev. Mas este é um filme do diretor de O Cavaleiro das Trevas e O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), então logo explode a ação — aqui, temperada pela tensa trilha sonora composta pelo sueco Ludwig Göransson, vencedor do Oscar por Pantera Negra (2018) e do Emmy por The Mandalorian (2019), que quase sempre fará tudo em Tenet parecer mais interessante do que realmente é. Terroristas invadem o palco e atiram em alguns instrumentistas, mas o ataque é apenas uma distração para um sequestro. Nesse meio tempo, surge o personagem de Washington, agente de um batalhão que, aparentemente, tem como objetivo central somente resgatar o alvo dos sequestradores.
— Vivemos na escuridão — repete Washington ao sujeito, à espera da contrassenha ("Sem amigos no crepúsculo").
Dá-se um enrosco não muito compreensível e, por fim, o protagonista acaba capturado e torturado, mas sobrevive para servir a uma causa maior: "Estamos tentando evitar a Terceira Guerra Mundial", diz a ele uma cientista interpretada pela francesa Clémence Poésy.
— Nuclear? — indaga o protagonista.
— Algo pior.
A ameaça é uma tecnologia que tem alterado a entropia dos objetos, fazendo com que a munição das armas, por exemplo, seja reversa. Não é que a bala vá para trás, não é que o tiro saia pela culatra. É mais como um disparo feito no futuro que agora está chegando ao presente (ou o passado). Ou, para conseguir visualizar: a bala se descrava de um vidro e volta para a pistola.
Essa cientista mostra ao protagonista um enorme arquivo com peças mecânicas que voltaram de algum lugar no tempo. São os restos de uma guerra futura. É ela quem também aconselha Washington e o público sobre o que vem pela frente:
— Não tente compreender. Sinta.
Sempre acusado por seus detratores de ser expositivo demais, explicativo em excesso, desta vez Christopher Nolan, em um arroubo de sinceridade, parece admitir que Tenet é muito confuso com suas citações sobre física quântica e radiação, cidades secretas russas que não aparecem nos mapas e os portos livres dos aeroportos, contra-ataques bitemporais e algoritmos apocalípticos. O negócio é se recostar na poltrona do cinema, com todos os protocolos de segurança sanitária, e tentar se entreter ao longo das duas horas e meia de projeção.
E por muitos instantes isso é possível, graças ao carisma e ao talento de John David Washington e de Robert Pattinson, na pele de Neil, que se junta ao protagonista em Mumbai, na Índia. O filme passeia ainda por Londres (onde Michael Caine, mordaz como de costume, faz sua oitava colaboração com o cineasta), pelo Mediterrâneo, pelo aeroporto de Oslo, na Noruega (palco para Himesh Patel, de Yesterday), pelas ruas de Tallinn, capital da Estônia, pelo litoral do Vietnã e pela Sibéria, e essas escalas à la James Bond também contribuem para manter o espectador desperto.
Desperto, porém não envolvido. Em Tenet, um calcanhar de Aquiles de Nolan torna-se um elefante no meio da sala: o parco desenvolvimento de personagens (as exceções foram ou mérito dos atores, como o Coringa de Heath Ledger, ou filmes em que a abordagem tinha de, necessariamente, ser mais intimista, caso de Dunkirk). Os diálogos pontuados por conceitos científicos, algumas tiradas espirituosas ("Esnobismo não é um monopólio dos britânicos", diz Washington a Caine) ou a milésima explanação sobre o paradoxo do avô das viagens no tempo impedem momentos de introspecção ou de exibição do lado emocional do protagonista e de Neil. A ideia é que nós sentíssemos a mesma empatia que Washington demonstra pela esposa do vilão, Kat (encarnada por Elizabeth Debicki, a princesa Diana da quinta temporada de The Crown). Só que dirigir atrizes nunca foi o forte de Nolan, e Debicki se perde em uma atuação em que ora é a vítima resignada, ora a "vaca vingativa".
E o vilão? Bem, Kenneth Branagh deve ter se divertido fazendo o sotaque russo de Andrei Sator, magnata e traficante de armas urdido pelo manejo de dejetos radioativos, e fazendo ameaças do tipo "vou fazer um furo no meio da sua garganta e depois tapá-lo com seus testículos para ver você morrer em agonia". Mas sua motivação para querer o fim do mundo não oferece a ressonância daquilo que movia Ra's al Ghul em Batman Begins (2005) ou Bane em O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Os conflitos de ideias de Tenet carecem do alcance visto em obras anteriores, ainda que a possibilidade ou não de reverter o tempo possam gerar discussões acaloradas entre especialistas em física.
Se a trama é confusa, se não há envolvimento emocional, se os debates são rasos ou restritos, restam a Tenet a pirotecnia e o jogo de referências a ser decifrado. Não à toa, Nolan escolheu para o título uma pirotecnia linguística, um palíndromo, palavra que pode ser lida de frente para trás e de trás para frente (e que, no caso, pode ser traduzido como princípio religioso, dogma, mandamento).
O jogo nem é tão difícil (mas se você achar que é SPOILER, dou uns segundos para você decidir se pula este parágrafo), pois tenet é o eixo — a cruz — do mais antigo palíndromo, o chamado quadrado mágico. (Se você continuou lendo, agora é por conta e risco.) Encontrada durante escavações em Pompeia, na Itália, e também em Roma, na Inglaterra e na Síria, entre outros sítios arqueológicos, essa inscrição na pedra reúne também as palavras em latim sator/rotas e arepo/opera. Segundo alguns estudiosos, uma leitura possível é "O Criador governa os trabalhos cíclicos com um processo inverso", e o quadrado também aludiria ao Apocalipse.
É isso o que almeja e faz o Sator de Kenneth Branagh — aliás, todas as palavras do quadrado aparecem no filme: além de Sator e da ópera de Kiev, temos uma empresa de nome Rotas no aeroporto norueguês e um falsificador de obras de arte chamado Arepo.
Mas também Nolan pode ser o Criador que governa os trabalhos cíclicos com um processo inverso. Tenet nada mais é do que um thriller de espionagem internacional com carga de ficção científica — um trabalho cíclico em Hollywood — feito em um processo inverso: revisitamos os mesmos cenários de cenas capitais (quase como um aceno a Brian De Palma, um mestre nessa arte) e adentramos um mundo onde os pássaros voam para trás e os carros andam de marcha ré. A trilha de Göransson, novamente, é muito feliz em traduzir esse conceito, como se fosse um disco rodando no sentido contrário. As sequências de ação filmadas pelo suíço Hoyte van Hoytema (indicado ao Oscar de melhor fotografia por Dunkirk) conseguem fascinar, tanto os combates corpo a corpo quanto os duelos automobilísticos, mas chega um momento em que até elas passam a ser confusas: como reconhecer os personagens se todos estão de capacete? Quem eles estão combatendo, quem os está atacando? No fim, o que eram mesmo os artefatos que estavam buscando? Para que serviriam exatamente?
Bem, Nolan nos disse que não era para tentar compreender. Que era para sentir. Pois o sentimento pode ser o de que acabamos de ver uma brincadeira extravagante e muito cara, um exercício vazio de complexidade cinematográfica, ou seja, um ato de exibicionismo em meio à pandemia. Essa impressão é reforçada pelo que o cineasta afirmou sobre Tenet:
"A grande beleza da câmera é que ela realmente vê o tempo. Antes de a câmera de cinema existir, não havia como as pessoas conceberem coisas como câmera lenta ou câmera reversa. Então, o cinema em si é a janela para o tempo que permitiu que este projeto se concretizasse. É literalmente um projeto que só existe porque a câmera de cinema existe".
Enamorado de sua própria câmera, Nolan não olhou bem para seu filme e acabou tropeçando feio.