O lançamento de Tenet nos cinemas convida a revisitar a carreira do diretor Christopher Nolan. As plataformas de streaming exibem oito de seus 10 longas-metragens anteriores, desde Amnésia (2000) a Dunkirk (2017), passando por A Origem (2010) e Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008), que entrou em cartaz na Netflix em outubro e, diferentemente do que sugere o título, é um filme do Coringa – muito antes do filme Coringa (2019). Quem começa dando as cartas é justamente o vilão, em interpretação tão magnética e tão ofuscante de Heath Ledger que permite comparar com o Marlon Brando de Uma Rua Chamada Pecado ou Apocalypse Now. Por sua vez, a primeira aparição do Homem-Morcego chega a ser chocha, apesar de Christian Bale imprimir a voz grave e tenebrosa que o personagem dos quadrinhos pede.
Christopher Nolan dirigiu duas horas e meia de um pesadelo sombrio e vertiginoso. Mais acelerado – e mais coeso – do que Batman Begins (2005), O Cavaleiro das Trevas estabeleceu um novo paradigma para o gênero ao conjugar ação e reflexão. Entre combates corporais e perseguições automobilísticas, entre exibições de bat-utilidades e explosões de prédios, discutem-se temas perenes (o que é um herói e o que separa o Bem do Mal, por exemplo) e dilemas modernos (como os riscos de combater o crime com extremismo).
Merecia ter concorrido ao principal Oscar, mas, no fim das contas, apesar dos 10 anos de intervalo, foi ótimo que o primeiro filme de super-herói indicado à mais cobiçada estatueta tenha sido Pantera Negra (2018) e sua colorida explosão de representatividade e africanidade. Coube à segunda parte da bat-trilogia angariar US$ 1 bilhão nas bilheterias, valer um Oscar póstumo a Ledger – morto em janeiro de 2008, antes mesmo da estreia da superprodução, vítima de overdose acidental de remédios – e disputar outros sete troféus: melhor fotografia, edição, direção de arte, efeitos visuais, maquiagem, mixagem de som e edição de som (também premiada).
A trama tem início com um assalto a banco, orquestrado pelo Coringa, que vai deixar fulos da vida os mafiosos de Gotham City – filmada sobretudo em Chicago, dentro da leitura realista proposta pelo diretor britânico Christopher Nolan, avesso a truques digitais. Paralelamente, Batman, o ainda tenente Gordon (Gary Oldman) e o incorruptível promotor público Harvey Dent (Aaron Eckhart) se unem para limar da cidade os criminosos.
O enredo e o tom sóbrio, quase noir, bebem bastante de três dos melhores gibis do super-herói da DC Comics: Batman: Ano Um, de Frank Miller e David Mazzhucchelli, O Longo Dia das Bruxas, de Jeph Loeb e Tim Sale, e A Piada Mortal, tour de force do Coringa com roteiro de Alan Moore e arte de Brian Bolland.
Nolan não chega a explorar a origem do vilão, como faz A Piada Mortal, mas, no filme, o personagem alude ao dos quadrinhos quando reinventa aqui e ali o seu passado – uma tática declarada pelo Coringa na HQ. É como se zombasse daqueles que buscam uma explicação lógica para a maldade.
Cinema e quadrinhos se encontram sobretudo na abordagem da dualidade de Batman (um herói com impulsos negativos) e na tese do Coringa de que basta um dia ruim para transformar o mais íntegro dos cidadãos em um lunático, basta o caos para nivelar bons e maus.
— Insanidade é como gravidade — afirma o Coringa de Heath Ledger. — Basta um empurrãozinho.
Não é por acaso que O Cavaleiro das Trevas acompanha o surgimento de outro vilão essencial: o Duas-Caras. Ele é o símbolo tanto do lado escuro de Batman quanto da proposição do Coringa (que, a certa altura, diz para o herói: "Você me completa!").
Não é por acaso que, na cena em que o Homem-Morcego suspende o psicopata de ponta-cabeça, Nolan movimente a câmera de modo a igualar a posição dos dois interlocutores. Um não é mais o inverso do outro, mas seu espelho.