Esta é uma história em que o passado ressurge no presente para apontar um futuro. Esta é a história de como se cruzaram os caminhos de um rei e de um príncipe – o primeiro, hoje parece reinar apenas na nostalgia de seus súditos, já não tão confiantes na sua capacidade de inventar e impactar; o segundo, alçado à corte mais rapidamente do que poderia imaginar ou assimilar, agora parece disposto a retomar seu posto. Esta é a história um duplo retorno: o do americano Frank Miller, 62 anos, ao universo de Batman: O Cavaleiro das Trevas e o do gaúcho Rafael Grampá, 41, ao mundo dos quadrinhos.
Quando Miller lançou O Cavaleiro das Trevas, em 1986, não influenciou apenas um batalhão de roteiristas. Estes, siderados por aquele Homem-Morcego envelhecido, algo amargo e durão (e também por Watchmen, publicado por Alan Moore e Dave Gibbons a partir daquele mesmo ano) e preocupados com a possibilidade de a Guerra Fria evoluir para uma guerra nuclear (o que se reflete em cenários onde imperam o medo e a desconfiança e onde o indivíduo precisa prevalecer sobre o Estado), passaram a produzir quadrinhos de super-heróis com temáticas mais adultas. Sombrios e violentos, os gibis deram início ao que se convencionou chamar de grim and gritty: os personagens tornaram-se cruéis e raivosos, até escorregarem, ali pela metade da década de 1990, para o caricato e o ridículo.
A arte de Miller na HQ inspirou na mesma medida uma série de aspirantes a desenhistas, jovens ou ainda piás, fascinados pelo traço veloz, pela ação brutal, pelos personagens cartunescos, pelas onomatopeias exageradas, pelo jogo de luzes e sombras que evoca tanto o cinema noir americano quanto o expressionismo alemão e os mangás (os gibis japoneses) e pela diagramação que fugia do padrão: O Cavaleiro das Trevas usa uma escala de 16 quadros, em vez dos habituais quatro, seis, oito ou nove, o que, ao mesmo tempo, imprime um sentido de urgência e dá profundidade à narrativa, pois permite mais conteúdo, visual e textual, por página.
Esse foi o quadrinho que consolidou o reinado de Miller, depois de sua célebre e transformadora passagem pelo Demolidor, na Marvel, e antes de trazer ao mundo duas obras que transcenderam o meio e chegaram ao cinema, Sin City e Os 300 de Esparta. Mas a época dos louros já está distante no tempo: a última vez em que uma HQ sua mereceu um Eisner, o principal prêmio do mercado americano, foi em 1999 (300 valeu os troféus de melhor série limitada e melhor roteirista/desenhista).
Dezenas, centenas de roteiristas e artistas poderiam se intitular filhos de Miller, mas só um gaúcho de Pelotas teve a chance de trabalhar lado a lado com o ídolo. Rafael Grampá é o desenhista da HQ The Dark Knight Returns: The Golden Child (O Cavaleiro das Trevas: A Criança Dourada), que sai nos Estados Unidos em 11 de dezembro, pela DC Comics. No Brasil, o gibi de 48 páginas será lançado pela editora Panini em data que deve ser anunciada no bate-papo do qual o americano e o brasileiro participarão, em 8 de dezembro, em São Paulo, no encerramento da Comic Con Experience, a CCXP 19, o maior evento de cultura pop da América Latina, com início marcado para o dia 5.
The Golden Child é a quarta volta do quadrinista americano ao universo futurista criado por ele – antes, houve O Cavaleiro das Trevas 2 (entre 2001 e 2002), a parte 3, chamada A Raça Superior e publicada entre 2015 e 2016, e o especial A Última Cruzada (2016), definido como um preâmbulo da trama original. Ainda que tenha ilustrado gibizinhos acompanhantes de A Raça Superior, Miller praticamente só emprestou o nome a essas duas últimas obras, escritas de fato por Brian Azzarello e com arte, respectivamente, de Andy Kubert e John Romita Jr.
Colorizada pela premiada Jordie Bellaire, The Golden Child traz de volta Carrie Kelley, a Batwoman, e Lara Kent, a filha de Superman e Mulher Maravilha. Enquanto a primeira expandiu seu papel como nova guardiã de Gotham City, a segunda dedicou-se a compreender o que um ser humano é. "Quando um terrível mal retorna a Gotham", diz a sinopse, "Lara e Carrie se juntam contra essa ameaça, mas com uma arma secreta": Jonathan Kent, o filho caçula do Superman, a Criança Dourada do título, dona de um poder "nunca visto no mundo".
Embora já estivesse na casa dos 30 anos quando surgiu nos quadrinhos, Grampá é ele próprio uma espécie de Criança Dourada. Sua ascensão foi meteórica. Ex-diretor de arte na RBS TV e de animação no estúdio Lobo/Vetor Zero, estreou em uma coletânea de faroeste, Gunned Down, de uma pequena editora dos EUA. Com o trabalho seguinte, a antologia 5, de 2007, ganhou um Eisner – o gaúcho e os gêmeos paulistas Fábio Moon e Gabriel Bá tornaram-se os primeiros brasileiros a receber o prêmio americano. Em 2008, lançou a graphic novel Mesmo Delivery, que, no Exterior, recebeu elogios de nomes respeitados da indústria, como os roteiristas Brian Azzarello e Mark Millar e o artista Bill Sienkiewicz, e, no Brasil, venceu o Troféu HQMix, o equivalente nacional ao Eisner. Dear Logan (2010), um conto de oito páginas sobre o Wolverine, foi considerado pelo site especializado Comic Book Resources como "a história quintessencial" do personagem. Rafael Grampá era o nome do momento. Mas, de repente, sua assinatura em gibis foi ficando restrita às capas que produzia. Em um intervalo de cinco anos, de 2009 a 2013, desenhou apenas três histórias, todas curtas. E então entrou em um hiato que só acaba agora, com The Golden Child.
Os motivos desse afastamento – período durante o qual ele atuou na publicidade, dirigindo, por exemplo, curtas de animação para a Nike e para a vodka Absolut – e de seu retorno Grampá explica nesta entrevista, concedida por telefone de São Paulo, onde mora e onde fundou em 2018 o Handquarters, um estúdio de desenvolvimento e produção de conteúdos gráficos e audiovisuais. Para marcar e aproveitar comercialmente este comeback, como ele define na conversa, também está de volta ao mercado Mesmo Delivery, em uma edição de luxo, com sketches e textos de apoio, lançada pela editora Mino (88 páginas, R$ 89,90).
Grampá inspirou-se em memórias da própria infância – o cotidiano do pai, que era caminhoneiro, o fascínio despertado pelo violento filme Comboio (1978), de Sam Peckinpah – para criar uma trama sobre dois desconhecidos, o jovem e grandalhão Rufo e o veterano e mirrado Sangrecco, que precisam transportar uma carga desconhecida em um cenário típico do interior dos EUA, povoado por bêbados e prostitutas.
Trata-se de uma aventura brutal e sangrenta, cheia de citações à cultura pop (o cineasta Quentin Tarantino é outra referência assumida), em que a ausência de profundidade e de uma discussão, digamos, mais filosófica é equilibrada por uma narrativa visual e por um talento artístico realmente assombrosos, além de um engenhoso uso dos flashbacks, que jogam luzes diferentes aos acontecimentos. Ou seja: curiosamente, essa também é uma história sobre o encontro de dois homens, um mais velho e experiente que sente falta dos aplausos de outrora para sua arte, o outro, mais moço e com uma espécie de conta a acertar consigo mesmo; e também é uma história em que o passado ressurge no presente para apontar um futuro.