O que faz do herói um herói? Quais são os limites éticos? Por que alguns fraquejam, sucumbem, tornam-se vilões? Alguém nas fileiras do mal pode vir para o lado do bem?
Essas são algumas das questões que permeiam os gibis de Mark Waid, desde que adquiriu fama, no começo dos anos 1990, ao escrever Flash e Capitão América. Profundo conhecedor da mitologia dos super-heróis, o roteirista americano costuma conjugar sua faceta reflexiva com dinamismo narrativo e abordagens que trazem frescor a velhos conhecidos do leitor. Ao assumir o título do Demolidor em 2011, por exemplo, ele deu um basta em três décadas de histórias sombrias e violentas e resgatou a jovialidade colorida e com alguma galhofa dos primórdios do personagem, em 1964 – nas suas mãos, o Homem Sem Medo também não temia ser ridículo.
Waid, hoje com 57 anos, gosta de chacoalhar os super-heróis e combater a mesmice. Em A Vingança do Submundo (1995), personagens da DC foram tentados por um demônio, Neron: em troca de suas almas, poderiam realizar seus desejos – ao Lanterna Verde, por exemplo, ofereceu-se a ressurreição da namorada. No ano seguinte, para a mesma editora, o roteirista assinou com o artista Alex Ross sua obra mais celebrada, a minissérie O Reino do Amanhã. A história se passa em um futuro distópico, no qual um envelhecido e aposentado Superman precisa voltar à ativa por causa da inconsequência e da violência dos atuais superseres. Já na década de 2000, para a Marvel, o autor mostrou na saga Ações Autoritárias o Quarteto Fantástico sendo corrompido pelo poder ao tentar libertar o tiranizado povo da Latveria – país fictício do Leste Europeu comandado pela mão de ferro do Doutor Destino. Mais ou menos naquela época, Waid lançou um quadrinho chamado Império, em que nem há mais heróis: o mundo foi conquistado por um supervilão, Golgoth, que enfrenta algumas resistências internas.
Todos esses gibis culminaram na série Imperdoável, publicada originalmente entre 2009 e 2012 e editada no Brasil pela Devir. Dois volumes já saíram, O Poder do Medo e O Lugar Mais Seguro da Terra, e o terceiro, No Limiar da Destruição, chega em novembro, todos com tradução de Marquito Maia, mais ou menos 256 páginas e cada um com duas versões – capa dura a R$ 89,90 e capa cartão a R$ 69,90. Em um universo ficcional inteiramente criado por Waid, com arte de Peter Krause e Diego Barreto, acompanhamos uma espécie de "O que aconteceria se o Superman enlouquecesse?". O Superman, no caso, é o Plutoniano, um alienígena que também se disfarçava de jornalista. Outrora o maior herói da Terra, hoje ele é um facínora capaz de aniquilar milhões de pessoas sem remorso – e faz isso duas vezes, apenas no primeiro dos cinco volumes previstos.
O que provocou sua terrível transformação? "O Plutoniano é um personagem cujo coração foi envenenado, cuja crença na bondade essencial da natureza humana se desfez em fiapos graças às doses homeopáticas de insinuação, desprezo e crítica", afirma, no posfácio de O Poder do Medo, o lendário roteirista escocês Grant Morrison. "O que pode acontecer a um super-herói que não consegue deixar de ouvir o quão ele é odiado e ridicularizado pelas pessoas a seu redor? E qual seria o resultado se tantas inimizades, invejas e mentiras finalmente destruíssem a sua alma?"
Imperdoável responde à pergunta de forma frenética. A ação e o suspense são incessantes desde a sequência de abertura, em que o Plutoniano incinera a família de um ex-colega na defesa dos fracos e dos oprimidos. A partir daí, a trama faz viagens no tempo, para mostrar o passado do vilão novo, e no espaço, para retratar os esforços desesperados e um tanto erráticos dos remanescentes da Paradigma. Trata-se de uma equipe à la Vingadores e Liga da Justiça, que busca encontrar um meio de deter o déspota. Entre seus integrantes, estão os poderosos gêmeos Caribdis e Cila, um guerreiro milenar, Gilgamos, o gênio Qubit, que se comunica com máquinas e computadores, e Bette Noir, que teve um caso com o Plutoniano.
Esse núcleo da Paradigma revela-se um incômodo na HQ. Supostamente, eles são os mocinhos. Mas os personagens carecem de carisma (os desenhos, sem muito charme e com certo excesso nas cores, não colaboram) - Waid parece se divertir mais escrevendo as atrocidades cometidas pelo vilão, que, por sua vez, emprega o discurso de que tudo o que sofria justifica o sofrimento que agora impõe. Reitera-se que é um incômodo, não necessariamente um problema, pois, dessa maneira, Waid também nos alerta que o mundo não é em preto e branco, da dificuldade que temos de colocar as diferenças de lado para nos unir, dos riscos do poder, da infâmia e do silêncio.
Talvez ciente de que não tivesse à mão um elenco de heróis para o qual torcer, Mark Waid criou um spinoff, uma série derivada de Imperdoável: Incorruptível, também já lançado pela Devir (tradução de Marquito Maia, 232 páginas, R$ 89,90 na versão capa dura e R$ 69,90 na capa cartão). Trata-se do reverso da moeda. Max Destrutor é um supervilão com uma lista de crimes que vai de homicídio a terrorismo. Diante da nova ordem mundial estabelecida pelo Plutoniano, ele resolve mudar de lado. Passa a agir como um herói o mais nobre possível, a ponto de desfazer o envolvimento romântico com a Ninfeta, já que ela é menor de idade.
A trama é menos reflexiva do que a de Imperdoável, com mais cenas de ação – nada de encher os olhos, pois a arte é bastante insossa na metade inicial, a cargo do brasileiro Jean Diaz, e cartunesca demais na segunda, pelo argentino Horácio Domingues. Apesar de ter menos texto, a leitura revela-se mais cansativa, como se Waid estivesse rodando em volta do mesmo lugar.
Mas há pontos positivos. Um deles é a reflexão proposta pelo autor. Max decidiu fazer o certo, e fazer o certo cobra um preço. Todos nós estamos dispostos a pagá-lo? Sabemos dos riscos?
O outro é o ataque virulento aos supremacistas brancos americanos, os principais bandidos do gibi. Waid foi premonitório: a Gangue do Diamante entende a postura agressiva do Plutoniano como uma autorização para perseguir grupos étnicos, tal qual, se diz nos Estados Unidos de hoje, as declarações e medidas de cunho racista do presidente Donald Trump, contra negros e hispânicos, dão licença para massacres como o de El Paso, no Texas, onde um jovem fez postagem ofensivas aos mexicanos antes de matar 22 pessoas.