Uma piada recorrente entre leitores de quadrinhos sugere que Jeff Lemire dispõe de um exército secreto de assistentes, dada a frequência com a qual anuncia projetos. Parece que a cada quinzena ficamos sabendo de um novo gibi do canadense, que, aos 43 anos, já ostenta uma carreira de veterano. Seus títulos chegam ao Brasil aos borbotões: desde maio de 2017, foram 52, contando livros, encadernados, republicações e histórias com sua assinatura nas revistas mensais. Ou seja: um a cada 15 dias!
O mais notável é que essa produtividade se faz acompanhar por versatilidade: Lemire trafega entre os super-heróis da DC e da Marvel (como Arqueiro Verde, Cavaleiro da Lua, Velho Logan e Gavião Arqueiro) e as obras mais autorais (como Condado de Essex e Nada a Perder).
O mais notável, parte 2, é que essa produtividade se faz acompanhar pelo reconhecimento crítico – já ganhou um prêmio Eisner e foi indicado outras duas vezes – e do público, geralmente arrebatado pela carga dramática de HQs como Sweet Tooth e O Soldador Subaquático e de personagens que precisam lidar com eventos traumáticos, desafios emocionais e tragédias apocalípticas.
O mais notável, parte 3, é que essa produtividade não se limita ao lado "fácil" da criação: enquanto um roteirista pode estar envolvido com vários títulos simultâneos, um artista da indústria norte-americana é monogâmico, fazendo de uma a duas páginas por dia. O canadense, além de escrever, desenha – é um autor completo, como visto nas já citadas Sweet Tooth, Condado de Essex e Nada a Perder, além de Trillium, da inédita Royal City e de O Ninguém (que sairá em junho pela Pipoca & Nanquim), gibis em que exibe seu traço peculiar, "feio", para alguns, perfeito para traduzir um íntimo fragilizado, na minha opinião.
Dois de seus quadrinhos mais recentes e consistentes, ambos ainda em andamento no mercado norte-americano, acabam de ter novos volumes lançados no Brasil. A Intrínseca publicou Era da Destruição – Parte 1 (136 páginas, R$ 44,90, tradução de Fernando Scheibe), o terceiro Black Hammer, série em parceria com o artista Dean Ormston e o colorista Dave Stewart que já derivou outras HQs e não tem hora para acabar. Pela editora Mino, saiu Pecados Originais (136 páginas, R$ 69,90, tradução de Dandara Palankof), o segundo livro dos três previstos para Gideon Falls, em que Lemire tem a companhia do italiano Andrea Sorrentino na arte e novamente de Dave Stewart nas cores.
Black Hammer retrata um grupo de super-heróis que estão há 10 anos exilados em uma cidadezinha rural, onde precisam esconder seus superpoderes e se sujeitar à monotonia e ao tédio. Os personagens reciclam e problematizam perfis característicos dos gibis do gênero.
Abraham Slam é o herói urbano que depositava seu capital nos músculos – agora, parece um tiozão decadente, mais interessado em outro tipo de corpo a corpo: o dele com a garçonete Tammy. O marciano Barbalien usa na Terra o nome Mark Markzz (uma citação explícita a J'onn J'onzz, o Caçador de Marte da DC) e enfrenta o preconceito por ser um alien em um mundo heteronormativo. Inspirada no Shazam, a Menina de Ouro tornou-se uma mulher envelhecida e rabugenta aprisionada em sua forma infantil. O Coronel Weird é um astronauta amalucado que tem como fiel assistente a robô Talky-Walky. A Madame Libélula alude aos personagens de terror surgidos na década de 1970, como o Monstro do Pântano.
Gideon Falls é o nome da cidade coabitada por dois personagens cujas histórias se cruzam sem que eles se conheçam. Aqui também, Lemire retrabalha clichês. Como visto em vários quadrinhos, filmes e seriados de horror e suspense, temos um protagonista com problemas mentais que não sabe se está fazendo o certo ou se está sendo controlado pela doença – Norton Sinclair é um jovem arredio que nutre uma obsessão por um lendário Celeiro Negro. Logo ele passa a contar com o apoio de sua psiquiatra, a Dra. Xu.
Na outra ponta da trama, está o padre que perdeu a fé e, não por vontade própria, vai parar em uma pequena cidade. Fred chega carregando problemas com alcoolismo e o celibato, aos quais se soma seu envolvimento em um caso de assassinato. Ele logo passa a contar com o apoio de uma policial, Clara, que tem um trauma de infância: o desaparecimento de seu irmão, Danny. Norton e Fred não são super-heróis, mas também usam "uniformes": o jovem cobre o rosto com uma máscara contra germes, e o padre veste a batina.
Era da Destruição – Parte 1 e Pecados Originais trazem algumas respostas para os mistérios engendrados por Lemire, mas provocam novas perguntas. Em Black Hammer, finalmente ficamos sabendo o que aconteceu, 10 anos atrás, com os heróis no combate ao Antideus, uma espécie de Thanos. Mas o epílogo do volume abre um infinito de possibilidades. Em Gideon Falls, finalmente as trajetórias de Norton e Fred se conectam, mas o epílogo do volume reembaralha tudo.
De fato, há muitos pontos em comum entre as duas séries. Em ambas, Lemire desenvolve alguns de seus temas favoritos – seus detratores o consideram repetitivo ou monotemático, mas também pode-se ver nisso um quadrinista comprometido com sua visão de mundo e sua coesão artística. Estão lá a paternidade turva e seu duradouro impacto emocional sobre os filhos; a paisagem inóspita e o bucolismo opressor; o questionamento sobre o que é real e o que é ilusão, delírio ou paranoia; os personagens que empreendem uma arqueologia – concreta ou psicológica – para desvendar enigmas e, quem sabe, alcançar a redenção; os roteiros que conjugam uma estrutura engenhosa, cheia de idas e vindas no tempo, com um certo didatismo sentimental.
A diferença é o tom. Em Black Hammer, Lemire permite-se empregar o humor, a começar pelos desenhos mais caricaturais de Ormston. O terceiro volume chega a ser paródico, com direito a uma banda infernal que imita os Ramones, diálogos que emulam os dilemas e paradoxos das grandes sagas de super-heróis e divertidas citações a dois clássicos da DC: Sandman, de Neil Gaiman, e Starman, de James Robinson.
Em Gideon Falls, a coisa é bem mais séria, a começar pela arte claustrofóbica do italiano Sorrentino, com sua diagramação nada convencional – cada virada de página reserva uma surpresa, com fragmentações, espelhamentos, espirais e outras pirações –, embelezada pela soturna colorização de Stewart.
Lemire permite-se sair um pouco da sua zona de conforto. Em geral, o leitor de seus gibis sofre por saber o que está acontecendo, sendo capaz até de antever a emoção que vai sentir. Em Gideon Falls, o canadense pretende que seu público sofra por ignorância e por ansiedade. A exemplo dos melhores momentos de seriados como Lost e True Detective, a HQ nos estimula a pensar, a elaborar, a juntar pontas. Acaba gerando um efeito agregador: como aconteceu com as séries, há um senso de comunidade entre os fãs, que passam a compartilhar suas dúvidas e suas sensações.
Tanto faz quais são as minhas, o objetivo deste texto não é jogar spoilers aos incautos, mas convidar os retardatários a visitar Gideon Falls, abraçar seus mistérios e mergulhar no estonteante trabalho artístico de Sorrentino e Stewart. Algumas cenas são confusas, as expressões não são tão nítidas, o vermelho aturde, mas tudo parece atender a um propósito: bagunçar nossas percepções, aguçar nosso ouvido para os diálogos e as entrelinhas, fazer, como os bons filmes de terror fazem, com que a gente se sinta tateando no escuro. Gideon Falls é um gibi sensorial.