Rafael Grampá surgiu no mundo dos quadrinhos como um meteoro. Logo no seu segundo trabalho, a participação na antologia 5, de 2007, o gaúcho de Pelotas ganhou um prêmio Eisner, o principal do mercado dos Estados Unidos. Um ano depois, lançou sua primeira graphic novel solo, Mesmo Delivery, que foi elogiadíssima por nomes respeitados da indústria, como os roteiristas Brian Azzarello e Mark Millar. Em 2010, um conto de oito páginas sobre o Wolverine, Dear Logan, foi considerado pelo site especializado Comic Book Resources como "a história quintessencial" do personagem.
Isso tudo criou uma expectativa monstra em torno do nome de Grampá e de alguns projetos que nunca aconteceram. Seis anos depois da publicação de sua última história, ele está de volta, e em grande estilo: assina os desenhos de The Dark Knight Returns: The Golden Child, nova investida do quadrinista americano Frank Miller no universo ficcional de Batman: O Cavaleiro das Trevas (1986).
Por telefone, de São Paulo, onde mora e onde fundou em 2018 o Hanquarters (um estúdio de storytelling), Grampá, 41 anos, conversou com GaúchaZH sobre presente, passado e futuro de sua carreira nos quadrinhos.
Vamos começar pelo presente: que tal trabalhar ao lado de um ídolo, um gigante da estatura de Frank Miller?
Considero Frank Miller o maior artista de quadrinhos de todos os tempos. Obviamente, admiro vários outros, como (Robert) Crumb, sei o valor e o impacto de cada um desses artistas no mundo pop e na indústria do entretenimento. Mas a influência do Miller na minha vida e na cultura que veio logo em seguida ao lançamento de Cavaleiro das Trevas e de Sin City foi muito disruptiva. Li Cavaleiro das Trevas quando era criança. Foi a obra que me deu a vontade de querer fazer HQs. Aquela arte brutal, as roupas cheias de dobras. No meu desenho, nas minhas escolhas narrativas, na escolha dos personagens, ele sempre foi um mentor sem que eu o conhecesse. A loucura é que hoje ele é mesmo meu mentor. A gente se conheceu em 2015, em um jantar em São Paulo, e em 2016 ele me fez um convite para trabalharmos juntos. Eu já estava satisfeito de ele conhecer meu nome! Nunca sabemos o que a vida prepara para nós.
Na prática, como foi a parceria?
The Golden Child é 100% escrita por Miller e desenhada por um fã (com cores de Jordie Bellaire). Mudei meu traço para me adequar bastante ao universo do Miller. Estudei soluções dele, busquei inspiração em outras obras dele, como Sin City e Elektra Vive, na narrativa e no design das páginas. Tive muito cuidado. As pessoas vão sentir prazer em ler, porque é o Miller no seu ápice. Ele tem uma voz autoral mais difícil de engolirem. Muitas obras das quais as pessoas não gostam hoje daqui a um tempo serão consideradas clássicas. Se ele fosse um músico, diria que está fazendo um lance experimental agora, e quem curtia o rock dele estaria chorando de saudade. Gênios são assim. Me emocionei muito quando li o roteiro pela primeira vez. E foi muito prazeroso o processo de criação tipo o que o Stan Lee (1922-2018) fazia: Miller me deu um plot e liberdade total para criar cenas, sem interferência. Depois ele escreveu o texto todo.
Como você situa The Golden Child na carreira de Miller?
Acho que o Miller criou O Cavaleiro das Trevas para chegar aonde chegou agora. Ele sempre está à frente do seu tempo. Muitas de suas personagens originais são mulheres: Carrie, Elektra, Martha Washington... Isso nos anos 1980. Hoje em dia, a gente vê um movimento das mulheres lutando por seus direitos, vê garotas de 16 anos, como a Greta Thunberg, virando ativistas (a adolescente sueca é um símbolo da luta contra o aquecimento global). The Golden Child surge em um momento oportuno, mas não é uma história oportunista, porque Miller já havia estabelecido suas bases lá atrás. O Cavaleiro das Trevas, na verdade, é sobre a Carrie se transformando no Robin, que depois se transformará na Batwoman. E Golden Child também tem a Lara Kent (filha do Superman e da Mulher Maravilha nesse universo paralelo), que surgiu em Cavaleiro das Trevas 2 (de 2002).
Ao mesmo tempo que esse protagonismo feminino indica um lado progressista, Miller costuma ser criticado por sua postura política. Por exemplo, pelo que fez na HQ Terror Sagrado (2011), que, como uma resposta tardia aos atentados do 11 de Setembro, propaga ódio aos muçulmanos e investe em estereótipos e preconceitos.
Tenho muita empatia pelas pessoas. O estúdio do Miller era do lado do WTC (o World Trade Center, prédio destruído nos ataques de 2001). Ele diz que sentiu cheiro de gente queimada durante meses. Eu não sei o que se passa na cabeça de alguém quando enfrenta um terror desses. Aquilo o contaminou. Por anos. Miller disse que não faria uma HQ dessas hoje. Disse que estava motivado por raiva, e nada motivado por raiva dá coisa boa. Mas ele tem o direito de ter produzido e tem direito de ser criticado. Ele aprende com as críticas. Em The Golden Child, ele meio que se retrata um pouco. A coisa mais bonita que existe é um ser humano mudar de ideia.
Ainda falando em política, uma arte promocional de The Golden Child foi usada nos protestos populares de Hong Kong. O que você acha disso?
A arte foi criada em 2018, muito antes de as revoltas em Hong Kong acontecerem. Quando recebi a notícia de que a arte havia viralizado na China, fiquei surpreso. Os protestantes acharam que a DC havia criado aquela arte exclusivamente em apoio às revoltas em Hong Kong, quando na verdade a editora havia postado uma arte promocional errada, sem os nomes dos autores, sem o título da HQ e sem a data de lançamento. Eu, particularmente, apoio qualquer manifestação popular em favor da liberdade de expressão.
Agora, vamos falar do seu passado. Já faz um bom tempo desde sua última HQ, Into the Circle, para uma antologia do Batman de 2013. Por que você ficou seis anos sem fazer uma HQ?
Gosto muito de quadrinhos. Eu não parei de fazer. Eu parei de publicar. Eu escrevi... Nem vou te dizer o número porque, toda vez que falo, as pessoas me cobram depois. Agora eu escolho muito bem o que vou publicar. Decidi fazer um comeback ao mundo dos quadrinhos. Em um plano de carreira muito definido que tenho, onde quadrinhos e cinema convergem, estava esperando o projeto certo para voltar. Coincidentemente, veio o convite do Miller, que abre para mim uma possibilidade legal de um público maior querer ver o meu trabalho. Sempre teve gente gente pedindo para ver mais, mas agora, enfim, já fiz coisas que queria ter feito, desbravar carreira na direção (de filmes e animações), ser dono de um estúdio. Ter conquistado essas coisas me torna menos ansioso para poder fazer quadrinhos com mais alegria.
Essas obras verão a luz do dia?
Eu pretendo lançar tudo, mas não quer dizer que vou desenhar todas ou escrever todas as histórias. Algumas podem virar animações, séries de TV, filmes. São uma gaveta, um baú que acabei enchendo. Aí entra o estúdio de storytelling, onde a gente cria histórias para outras plataformas e marcas. Sou esse cara que fica o tempo todo criando histórias, pensando em outra enquanto faço uma. Penso em muitas coisas ao mesmo tempo, mas preciso fazer uma de cada vez. A década dos meus 30 anos foi quando aprendi a lidar com meus talentos e com o jeito de usar cada um deles.
Você ascendeu rapidamente, com o Eisner para 5 e a recepção de Mesmo Delivery e de Dear Logan. A alta expectativa criada em torno de seu nome foi frustrada quando alguns projetos não foram adiante. Que fim levou a série em quadrinhos Furry Water and the Sons of The Insurection, por exemplo, que você faria com o escritor Daniel Pellizzari? E a versão cinematográfica de Mesmo Delivery, que chegou a ser cogitada? O que houve com Rafael Grampá?
Comecei tarde nos quadrinhos, mas quando estava me sentindo pronto. Não esperava todo esse reconhecimento. Agora que tenho 41 anos, consegui me entender. Vou te dar um exemplo: você queria muito ir para a Disney. Daí, quando chegou lá, as pessoas trancaram a porta e não deixaram você sair. Eu queria fazer outras coisas. No momento em que vira uma expectativa, sua cabeça fica confusa. Eu queria me explorar em outras coisas. Queria fazer quadrinhos, mas tinha outras perguntas naquele momento. Será que consigo fazer filmes com roteiros longos? Ser dono de estúdio? Tinha todas essas perguntas para responder, e as pessoas ficaram desapontadas. Acabei não fazendo Furry Water, vou fazer, mas não sei quando, nem como. Não virou uma prioridade. A história do filme da Mesmo Delivery não está nas minhas mãos, está com o Rodrigo Teixeira (brasileiro que produziu os longas americanos Frances Ha, A Bruxa e Me Chame pelo seu Nome). Nossa última conversa foi boa. Ele se disse pronto, agora, para tocar.
Sobre Mesmo Delivery: olhando a HQ com a a maturidade de hoje, você mudaria alguma coisa?
Eu não mudaria nada. Se eu fizesse hoje, ela seria completamente diferente, porque eu sou uma pessoa diferente. Na época, não sabia se sabia fazer, cada página era um universo novo. A única coisa que sabia era que ela seria um statement (uma declaração) de como eu achava que queria ser encarado como artista. Queria provocar as pessoas a olharem para algo e verem outros valores naquilo, sem julgar pela capa. Mostrar que histórias interessantes não acontecem só com pessoas boas. Queria fazer o leitor pensar: por que estou sendo atraído pela violência? Por que estou vendo o belo no feio? Arte é isso: você olhar para algo e não entender por que aquilo está mexendo contigo, quem sabe até se sentir culpado por estar gostando de algo que você nem sabia que poderia gostar. O monólogo do (personagem) Sangrecco expressa como eu me sentia um pouco como artista, a necessidade de ter reconhecimento. Muitos artistas têm vergonha de assumir, mas eu não tinha. Enquanto um ator ruim pode ser celebrado, um artista muito bom nunca é reconhecido.
Como você lida com a expectativa ou pressão dos fãs por novas HQs?
Não posso postar um desenho no Instagram que as pessoas já me cobram: "Pô, quando é que tu vais desenhar uma história de novo?". É uma certa forma de expressar carinho. É tipo o que acontece quando um amigo fica prometendo visitar tua casa, mas nunca vem e você acaba xingando ele.
No futuro, você vai visitar essa porção de amigos?
The Golden Child me abre uma porta muito grande dentro da DC. O futuro vai ser bem divertido.