Ler Cinco Mil Anos equivale a enfrentar desafios do tipo "Tente não rir": por mais que você se esforce, uma hora vai acabar se estrebuchando. Eu, enquanto virava algumas páginas, ficava a todo instante cutucando o colega que senta ao meu lado – "Olha essa, Dani!" –, e ríamos juntos.
Com um design classudo, o livrão de 352 páginas (e preço de R$ 129,90) lançado pela Companhia das Letras reúne centenas de tiras, cartuns e histórias em quadrinhos publicadas por Antônio Carlos Tironi Galhardo, o Caco Galhardo, ao longo de mais de duas décadas na Folha de S. Paulo e em outros veículos da imprensa. O cartunista, roteirista e dramaturgo paulistano de 51 anos é o criador de uma porção de personagens e séries, como os Pescoçudos, Chico Bacon, Lili, a Ex, El Diablo, Julio & Gina, Pequeno Pônei e Conjugal Fighters.
Seu olhar é astuto e impiedoso ao que temos de ridículo, mesquinho, carente, obsessivo, frágil, autocentrado – ou seja, o que nos faz humanos. A vida amorosa (ou quase isso) é um prato cheio para Caco. Lili, por exemplo, está sempre à espreita do ex-marido, importunando e avacalhando seus novos relacionamentos. Já velhinhos, Julio e Gina vivem diante da TV, resmungando um com o outro, a ponto de praticamente aniquilarem as raras oportunidades de romance ("Sai com esse pé gelado!", ralha Gina em uma tira). Em Conjugal Fighters, o quadrinista emprega uniformes e cenas de gibis de super-herói para retratar casais que travam discussões corriqueiras – da queixa de um pela demora da outra em se aprontar à bronca por causa da troca de senha no Facebook.
As redes sociais, aliás, e nossa relação de dependência com elas são outro alvo recorrente, assim como psicanalistas, filósofos, artistas, críticos e toda sorte de intelectuais. Políticos, pelo menos nesta coletânea, passam quase incólumes. Os motivos, Caco Galhardo conta na entrevista a seguir, concedida por telefone.
O título do livro, Cinco Mil Anos, faz referência a uma tira da dupla Julio & Gina, mas também denota a sua longa carreira – já são mais de 20 anos produzindo para a Folha de S. Paulo, por exemplo – e, ao mesmo tempo, pode passar uma ideia de cansaço. Fazer humor dá trabalho?
Eu fiz as contas: estou fazendo tiras diárias há 22 anos. Dá mais de 5 mil dias. Todo dia você acorda, toma um café e faz uma tira. Que depois vira embrulho de peixe, porque é mesmo muito descartável. A parte legal de montar uma coletânea é essa: você vê o que realizou nesse tempo, tem uma outra percepção do trabalho, não é mais descartável. Tem uma obra.
A antologia não segue uma ordem cronológica. O que pautou a organização do livro?
Foi um súper trabalho de edição da Companhia. Deram um sentido de ordem em um material que é caótico. No Brasil, a gente faz tira com muita liberdade. Os gringos criam o Garfield, por exemplo, e vão fazer o personagem a vida inteira. Nós, não. Comecei com os Pescoçudos, depois parei e fui inventar outros, o que dava na telha. Quando fomos editar, decidimos não fazer cronologia, e sim por personagens, mas sem seguir ordem. Uma coisa curiosa é perceber que o meu traço mudou muito, evoluiu.
Chico Bacon, que tem a honra de abrir a obra, é capaz de citar a Crítica da Razão Pura, de Kant, numa tira e logo depois arrancar um verdadeiro gambá do nariz, que será sorrateiramente grudado embaixo da mesa de um bar. Conte, por favor, como surgiu o personagem?
Comecei com os Pescoçudos, que, por serem assim, não enxergavam direito quem estava a sua frente, ficavam olhando para o próprio umbigo, não conseguiam interagir. Era um trabalho crítico em relação à sociedade, apontando dedo. Depois de um tempo, me cansei dessa visão e disse que estava a fim de me divertir. Daí, surgiu o Chico Bacon, que, como diz o (escritor) Reinaldo Moraes no prefácio, nem pescoço tinha. Não tem superego também, pode fazer tudo o que quiser, mudar radicalmente, é um libertário.
O Pequeno Pônei é uma sátira à juventude que não tem ou não teria muito contra o que se rebelar, ao contrário de gerações passadas?
No humor, o contraste funciona. O Adão (Iturrusgarai, cartunista gaúcho) tinha os caubóis gays, por exemplo. Pônei é o bicho superfofo, mas que, na minha tira, quer ser o poeta underground, o punk, algo que ele nunca vai ser. É um traço cômico da própria humanidade, essa aspiração ao impossível.
Lili, a Ex é um grande sucesso, a ponto de ter estrelado um seriado de TV, do canal GNT. Será que é por que, no fundo, todos somos possessivos e obsessivos?
Laerte me disse, quando surgiu a Lili, que eu tinha pego uma veia boa. Criar tiras é um trabalho muito intuitivo. Todas as amigas da minha esposa tinham se separado, elas ficavam falando ao telefone com ela sobre os ex-maridos, e eu achava um saco, mas comecei a perceber: que loucura isso, essa obsessão. Às vezes, você faz um personagem e na quinta tira não tem mais ideias. Com a Lili, não, tinha 30, 40 ideias. Fiquei muito feliz com a adaptação para o GNT, com a Maria Casadevall, porque a gente costuma dizer que cartunista não deu certo se não vai para a TV ou o cinema (risos).
Julio & Gina são o futuro de qualquer casal que resolve se aguentar até a velhice?
(Risos) Julio e Gina são um casal de velhos que estão há 5 mil anos juntos, ele fica querendo ver televisão, ela fica enchendo saco. É menos um lance de previsão do futuro amoroso do que uma observação sobre geração passada, de avôs e de tios, numa relação quase doentia, mas ao mesmo tempo engraçada.
Na mesma linha, Conjugal Fighters é a representação gráfica de todas as pequenas e às vezes veladas agressões que cometemos em um relacionamento amoroso?
Assim como as obsessões femininas são um tema quase infinito, o casamento também é. A gente passa a dividir as manias de cada um, as pessoas começam a enlouquecer com essa relação, essa guerrinha. Você não quer falar falar mal, fica segurando, aí chega uma hora em que explode.
Em uma das Short Cuts, você monta um mapa-múndi de acordo com as mulheres que te dão tesão: Pamela Anderson nomeia o território do Canadá, Maria Sharapova e Yelena Isinbayeva representam a Rússia, Vera Fischer é o Brasil e Shakira o resto da América do Sul. Não sei de quando é a tira, mas hoje ela poderia despertar alguma crítica, não?
Com certeza. Feministas não iriam gostar de se visualizar o mundo pelas mulheres. Eu sou a favor de todo o discurso feminista, mas cresci vendo filmes do Truffaut, do Godard, do Fellini... São todos sobre homens brancos, heterossexuais, foi a minha formação. O mundo mudou e tomou outras formas, mas as vozes precisam vir de todas as partes. Não acho legal que, de repente, todo mundo tem de falar a mesma coisa. Gosto de desenho erótico, mas desenhar mulheres hoje é um problema: "Como um homem faz isso?".
Em uma entrevista ao cartunista Rafael Spaca, você se queixou que "desenho erótico virou machismo" e disse esperar "essa onda careta passar". Não vê coisas positivas nela?
Acho que a gente está vivendo um momento de estar perto de alguma transição bem expressiva na sociedade. Não chegamos nem nos anos 2020. Se você olhar para o século 20, para os os anos 1920, 1922, percebe que é quando a coisa começa a mudar. É uma ruptura que está por vir. A produção cultural cada vez mais quer romper com o que já foi feito. Mas, por enquanto, vivemos uma histeria de redes sociais, sem saber muito bem aonde quer chegar, mas acho que podemos chegar. É um processo.
Na mesma entrevista ao Spaca, você diz que lê muito teatro. Inclusive já escreveu duas peças, Meninas da Loja, em 2010, e Flutuante, em 2017, e fez uma HQ em homenagem ao dramaturgo e ator americano Sam Shepard. O que fascina no teatro e como uma arte influencia a outra?
Então: os quadrinhos já são uma arte intermediária, o cruzamento de vários meios, tem narrativa, tem desenho... O teatro para mim é uma paixão, sempre sonhei em escrever uma peça, fazer com atores, gosto muito de conviver com eles, são pessoas muito loucas, legais. Adoro entrar em trabalhos coletivos, gosto de me juntar a uma trupe, porque o cartunista é muito solitário. O Millôr, um cara que todo cartunista admira, também fazia teatro. Nos Estados Unidos, tem uma quantidade boa de roteiristas que são cartunistas. O cara que faz uma HQ tem uma cabeça de roteirista, porque ele já está lidando com a imagem, diferentemente de um escritor, mais atento à semântica das palavras. Quadrinhos são síntese. Às vezes, é legal expandir, ir para uma narrativa mais longa, se aprofundar, mesmo que seja fazendo comédia. É o que o teatro possibilita. Inclusive, já estou escrevendo uma nova peça, sobre uma mulher que acorda feliz e não sabe por que e o que fazer com isso.
Entre suas influências quando começou a fazer quadrinhos, estavam Angeli e o americano Matt Groening, o criador de Os Simpsons. E hoje, quais são os autores que você acompanha? Quem se destaca na nova geração?
Hoje leio muito pouco quadrinhos. Parei um pouco no que consumia até meados dos anos 2000. Nem vale a pena citar, porque são tão específicos, como Tony Millionaire (cartunista americano). Minha influência mesmo sempre foi Los 3 Amigos (série dos anos 1980 e 1990 que reunia os cartunistas paulistas Angeli, Glauco e Laerte). Eu fazia faculdade (de Comunicação), que era muito chata, aí comprava o gibi e tinha tudo de que precisava. Era muito contundente no retrato do Brasil e da sociedade, influenciava todo mundo com um raio-X exato do que a gente estava vivendo. Depois, descobri o Groening, mas não pelos Simpsons, e sim por Life in Hell, tira que me chapou totalmente. Hoje, no cartum e na charge, seguimos bem, sempre fomos bons nisso. Mas a gente tem uma geração de quadrinistas que não estão atrelados ao humor. Há os desenhistas que fazem super-heróis para a Marvel e a DC e há autores fazendo quadrinhos sérios. É uma galera que conseguiu chegar ao nível dos gringos que a gente admirava.
Nos cartuns de Umberto Ego e Gilberto Gideleuze (trocadilhos com os filósofos Umberto Eco e Gilles Deleuze) e de El Diablo, você tira sarro da alta cultura e do mundo da arte. O que os torna tão atraentes para a piada?
É um universo ridículo. Você tem o amigo que só por ser artista acha que está em um grau mais alto do que um quadrinista. Eles conversam com o divino, e tudo o que é mundano está fora. Essas tiras do El Diablo em que ele resolve transformar o lugar em uma faculdade de arte já são antigas, foi legal rever o trabalho.
Uma das tiras de Umberto Ego e Gilberto Gildeleuze mostra a sex-shop dos personagens, que inclui uma boneca inflável da Simone de Beauvoir. Como a turma reage?
Eles são inteligentes, sabem reconhecer uma boa piada.
Fazer humor sempre foi uma forma de resistência política. Em Quando parei de me preocupar com canalhas, você conta que resolveu mandar tudo à merda e decidiu se alienar politicamente. De fato, em suas tiras praticamente inexiste o comentário sobre a política nacional, ainda que numa delas apareça Darth Vader diante do Congresso, em Brasília. Por quê? Não fazer piada sobre política também é uma forma de resistência?
Nessa coletânea, não quis botar política para ter um caráter atemporal. É a diferença entre a charge e o cartum. Cartuns dos anos 1950 ainda podem ser atuais. A política eu odeio, detesto os políticos. Fiz essa HQ que você citou na época do mensalão (escândalo da compra de votos de parlamentares no Congresso, entre 2005 e 2006), mostrando como aquilo estava tomando conta de nossas vidas de um jeito inútil. Ficamos em discussões e deixamos de fazer coisas mais interessantes. Hoje, a minha alienação é impossível, porque os políticos tomaram conta da nossa existência.
A vida cotidiana, marcada atualmente pelas redes sociais e pela "problematização", também é um de seus temas. Como você vê a sociedade contemporânea?
Certa vez, Ralph Steadman, ilustrador que fez com o jornalista Hunter S. Thompson aquela viagem louca a Las Vegas nos anos 1970 (retratada no livro e no filme Medo e Delírio em Las Vegas), foi questionado sobre os sonhos da geração dos anos 1960: "E aí, vocês conseguiram mudar o mundo?". Ele respondeu que sim, conseguimos: o mundo está muito pior. As redes sociais expõem o traço ridículo do ser humano. Noutro dia, eu estava na praia e vi uma uma mulher muito mal-humorada. De repente, ela tira o celular da bolsa, faz uma pose maravilhosa para uma selfie e depois volta para a cara de bode. Na minha época, fazer marketing pessoal, ficar se vendendo, era uma coisa brega. Hoje, normalizou. Se você não fizer, é um babaca. Isso tudo está relacionado a esse governo, essa direita, esse caos, esse comportamento infantiloide nas redes sociais está interligado ao que aconteceu na política. Uma hora a gente acorda e aprende a lidar com isso, a olhar menos. Tomara que no futuro a gente olhe para trás e diga: "Foi uma fase".